O fim do mundo

O fim do mundo

Alexandre Santos*

Jason acordou no meio da noite com uma sensação estranha. Estava suado e ofegante. A seu lado, conhecendo o marido como conhecia, lembrada de que, entretido num festim regado a vinho e sexo no aposento das concubinas e escravas, recolhera-se tarde, Martha não demonstrou qualquer preocupação. Como de outras vezes, ele devia estar bêbado ou ressacado. Nada que uma jarra de água fresca não pudesse resolver no dia seguinte. Virou-se e fingiu-se dormindo.

Não conseguiu manter a farsa muito tempo, pois, agitado, Jason a chamou.

- Deus me apareceu em sonho e avisou que o mundo vai acabar sob fogo e água - e, assustando a mulher com detalhes do desastre anunciado, contou que, dali a três luas, uma grande explosão brotaria o Egeu, espalhando fogo e fazendo o mar se movimentar em colunas destruidoras com mais de cem metros de altura para distribuir sofrimento e destruição por toda Tira - Precisamos sair daqui, Martha.

Aquela não era a primeira vez que Jason tinha visões. De fato, já há muito tempo o futuro não lhe era completamente desconhecido. Em outras ocasiões, desde o nascimento dos filhos varões, sempre visitado por anjos e mensageiros, ele recebera avisos sobre tempestades e ataques vindos das bandas de Creta. Dessa vez, no entanto, fora diferente, pois o próprio Deus trouxera a notícia. Não havia o que discutir. Tão logo o sol rompesse o horizonte e começasse a tomar lugar no firmamento, pegaria os filhos e bastardos, as mulheres, os escravos, os animais e, levando tudo o mais que coubesse nos barcos, iniciaria a mudança de Kalliste em busca de um lugar seguro, se é que havia esse lugar.

Coincidência ou não, naquele momento, no outro lado da Ilha, a alguns quilômetros da costa e bem abaixo do nível do mar, a grande caldeira de sustentação de Tira começou a ferver, fazendo borbulhar o fundo do oceano ao longo do Arco Egeu - um claro aviso de que a fúria de vulcões adormecidos há muito estava prestes a despertar. Como Jason já sabia, o desastre era inevitável, sendo apenas uma questão de tempo o espocar das primeiras explosões no arquipélago.

Jason não perdeu tempo. Na manhã seguinte, junto com os primeiros raios de sol, sem sequer esperar o desjejum, depois de tentar, sem sucesso, alertar vizinhos sobre a iminente tragédia, embarcou a bagagem possível e pôs-se em movimento rumo ao oeste. Estranhamente, fora os ventos de sempre, o mar estava calmo (pelo menos assim mostrava na superfície), como se nada estivesse revolvendo as entranhas da Terra.

Mesmo driblando ilhotas sabidamente amaldiçoadas pelo destino e amargando ânsias de terror a cada marola mais ousada, a travessia ocorreu sem percalço. Em apenas sete dias e sete noites, a pequena frota singrara o Egeu, dobrara o limite dos mares helenos e cruzara parte do Jônico para aportar Ítaca - ilha que, embora marcada pelos constantes enfrentamentos com as demais da região, especialmente as da banda leste do Peloponeso, diante daquilo que Jason sabia estar pela frente, parecia ser o lugar mais seguro da Hélade. Jason foi cuidadoso com os gestos e palavras. Esmerando sorrisos e generosidade àqueles com quem conversou, presenteando-os com mimos valiosos, Jason conseguiu migração e o compromisso de que, obedecendo as leis locais, pagando os impostos, respeitando a vontade do Rei e reverenciando Gaia, poderia se instalar e trabalhar como se ali tivesse nascido. Foi um momento de decisões. Rechaçando ofertas para se instalar numa pequena gleba à beira mar em Vathí, Jason escolheu lugar longe da água, ao norte, bem no alto do Monte Nirítos, quase no topo da ilha.

Fez bem. Uma semana mais tarde, quando Jason começava a desconfiar de que fora iludido ou compreendera mal a mensagem de Deus, veio o desastre. Uma explosão abafada, como se ocorrida no ventre do Planeta, seguida de tremores com diferentes graus de intensidade, abalou não só os mares e as terras da Hélade, mas, também lugares distantes como Tell el Dab'a no Egito, Macedônia e Pérsia, dando início ao maior cataclismo já ocorrido até então no mundo de Deus.

Nas primeiras horas, ao tempo que, como causa ou consequência da revolta dos deuses, coberto de cinzas, o céu escurecia, iluminado apenas por efêmeras galhadas de raios acompanhadas de trovões ensurdecedores, vulcões de todos os tamanhos irromperam o fundo do mar, jorrando lava para ampliar o arquipélago e, em contraponto, engolir ilhas inteiras. No momento seguinte, o sacolejo no fundo do mar girou redemoinhos que tragaram tudo o que flutuava e, enquanto isso, empurradas por rajadas inéditas, as águas do Egeu formaram ondas, inicialmente pequenas, mas que, pressionadas pelas forças da natureza, progressivamente, ganharam mais força e fúria até atingir terras firmes em tsunami gigantesco que espalhou destruição nas regiões costeiras por todo o Egeu, poupando, apenas, os grandes montes.

Quando as rochas e os mares acalmaram, quinze dias mais tarde, tudo estava diferente. Um rastro de ruínas abatera a Terra, moldando uma nova realidade a partir do fim do mundo de muitos. À beira mar, a morte estava por todos os lugares como se os domínios de Hades tivessem transbordado pelo mundo dos vivos. Pedras fumegantes eram prova da grande erupção que despedaçara e criara ilhas, modificando o arquipélago para sempre. Cidades inteiras tinham sido varridas do mapa, levando com elas moradores, chegando, mesmo, a extinguir povos, como aconteceu com os minoicanos de Creta. Embora mais devastadora no mar Egeu, a erupção fez-se sentir por toda a Terra, atingindo todo o mundo de Zeus. Para se ter ideia da amplitude da desgraça, cumprindo a maldição profetizada no início dos tempos, mesmo fincada em rocha ao largo dos pilares de Héracles, Atlântida desapareceu, arrastada para o fundo do mar por um redemoinho de fogo, levando consigo, não só o ouro, prata, cobre e o ferro que faziam sua riqueza, mas também o segredo do brilho incandescente do oricalco que fazia o poder dos atlantes.

Na sua nova morada, no alto do Monte Nirítos, em Ítaca, vendo e tomando notícia da destruição causada pelo fogo e pela água em todo o mundo, Jason só retomou à rotina quando, em outro sonho, Deus avisou ter passado o perigo. Desde então, até o fim dos seus dias, convicto de que fora poupado para realizar um desígnio de Deus e disposto a cumprir aquilo que lhe fosse ordenado, Jason, sempre a espera de algum sinal ou mensagem, diariamente, ao nascer e ao por do sol, junto com agradecimentos pela chance que lhe fora dada, ditos e repetidos em voz alta, fazia oferendas e sacrifícios. Não deixaria que nada colocasse em dúvida a sua fé, o seu agradecimento e a sua disposição de servir a Deus. Muitos anos mais tarde, sem jamais ter recebido novo aviso ou sinal, Jason alcançou a grande inflexão da vida e, com o espírito leve, foi ao encontro do Senhor.

O tempo passou.

Em 25 de dezembro de 2004, dia de Natal, o professor Dale Dominey-Howes, professor da Universidade de Kingston, que desfrutava férias com a família na ilha de Samatra, na Indonésia, teve sobressalto parecido àquele que acordara Jason 3.500 anos antes. Da mesma forma, Deus aparecera em sonho e o avisara sobre o fim do mundo. Ao contrário de Jason, no entanto, o geólogo Dale - que acabara de participar de um congresso sobre terremotos e maremotos, onde palestrara sobre a quase destruição de Santorini e todas as ilhas no seu entorno, por volta de 1680 a.C., quando, atiçadas por uma gigantesca erupção, as águas do mar Egeu ergueram enormes ondas na costa leste da Grécia, recobrindo-as (as ilhas) com depósitos piroclásticos de centenas de metros de espessura - resistiu a vontade de compartilhar a angústia com a mulher e, mesmo incomodado por uma sensação de desconforto, continuou na cama, virando de lado pelo restante da noite sem conseguir dormir.

Fez mal.

Horas mais tarde, às 08h00 do dia seguinte, o professor Dale ainda estava deitado quando um terremoto na costa oeste da ilha deu início ao fim do mundo em boa parte da costa do Oceano Índico. Com efeito, placas tectônicas romperam um imobilismo de séculos a cerca de 30 km de profundidade entre Simeulue e Samatra e, durante mais de dez minutos se arranharam violentamente, fazendo tremer tudo em volta - um cataclismo replicado rapidamente em muitos outros lugares, tão violento que fez o planeta vibrar centímetros, alterando a posição do Polo Norte em 2,5 centímetros para tornar a Terra mais arredondada e, fazendo-a girar mais rápido, encurtar o comprimento dos dias em 6,8 microssegundos. Tendo alcançado magnitude de 9,2 na Escala de Richter, o terremoto de Sumatra-Andaman desencadeou tsunamis, cujas ondas, com mais de vinte metros de altura, atravessaram o Índico para provocar destruição e morte.

Naquele dia, por não ter compreendido ou acreditado na mensagem encaminhada pelo Senhor, Dale Dominey-Howes disperdiçou a chance que, 3.500 anos antes, fora dada a Jason e, por conta disso, juntamente com outras 300.000 pessoas espalhadas por quatorze países banhados pelo Oceano Índico, alcançou a grande inflexão da vida para conhecer a glória daquele que dá vida e fim ao mundo de cada uma das suas criaturas.

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural