O jardim suicida

Lua caminhava ao redor de sua nova casa, a engenharia era decrépita e munida de marcas escurecidas; ao fitar tal estrutura, a garota sentiu certa frieza e distanciamento. O espaço possuía infiltrações que aparentavam acumular as úlceras mais fundas do tempo, eram como abismos emparedados, que evidenciavam a fragilidade do que antes mostrava-se sólido. A casa transpassava certa insegurança à Lua, representava tudo, menos um lugar seguro, pois

algo no corpo instável daquele espaço, pulsava um senso de alerta, como se o morador ao despir suas fraquezas no interior da casa, pudesse faze-la desabar sob a própria cabeça; o lugar soava-lhe como uma armadilha óbvia.

Lua havia acabado de chegar até a sua nova moradia de aparência predatória, seus pais estavam satisfeitos, e logo desempacotaram todos os itens e adereços enquanto ela andava, desconfiada, e passava pelos cômodos antigos; Lua então, entrou no que seria seu novo quarto.

Sua mãe logo emitiu que ela deveria desempacotar o restante dos brinquedos e desenhos, um pouco avessa a ideia, Lua começou a abrir as caixas; e em meio ao processo, a garota sentiu falta de sua antiga casa consumida pelas chamas, ela passou a se lembrar do conforto de seu quarto anterior e da sensação de estar protegida no lugar mais aquecido e centrado na face da

terra, embora nunca houvesse exatamente sentido algo perto da compreensão por parte das pessoas que a rondavam, a engenharia do lugar parecia-lhe segura e familiar. Seu antigo lar havia pegado fogo, e no dia do ocorrido, ela estava em seu quarto consumida por fortes

tensões mentais; a mente de Lua era sempre bombardeada por asteroides imaginativos e contrações densas de pensamentos incontroláveis, ela sempre orbitava um corpo de maior enfoque, fosse uma emoção, dúvida ou problema. E uma dessas crises manifestou-se pouco antes do acidente; a garota foi totalmente ocupada por uma forte ansiedade e experienciava uma espécie de prenúncio não identificado, sozinha em casa e atônita, ela começou a sentir um cheiro forte de madeira queimada, quando levantou e correu até a sala, notou os móveis serem devorados por uma enorme chama intensamente viva e pulsante; o fogo alastrou-se rapidamente, e a garota viu -se cercada e com certa paralisia corporal; sem reação, retornou ao quarto e fitou seus ursos de pelúcia já chamuscados; Lua via seus ursos como organismos

vivos, dotados de sensibilidade e percepção, ao ver tais figuras em deterioração, sentiu forte angústia e vontade de salva-los de tamanha dor, não obstante, o pânico a paralisava e embaçava a órbita de seus sentidos, ela sentia-se queimar por dentro, Lua aos poucos foi

perdendo a consciência e desmaiou; seus pais chegaram a tempo de tira-la da casa. Boa parte da moradia se dizimou, mas algumas poucas coisas foram recuperadas, assim como, outras foram compradas, enquanto eles se hospedavam em um hotel da cidade. Ao rememorar o evento traumático enquanto organizava seu novo quarto, a garota sentiu um estranho isolamento do mundo, como se não pertencesse a lugar algum, e de fato, era isso

que ela constatava com frequência. Lua era uma menina introvertida, dotada de olhos grandes e dispersos, sua imaginação sempre fora intensa e por vezes dava forma a mundos assustadores. Seus pais e grande parte das pessoas, mostravam certa incapacidade de

compreende-la, e a órbita de seus pensamentos sempre a deixava em um silêncio apreciativo e onírico. Com muita frequência, Lua era impulsionada a falar sobre a vida cotidiana em seus termos mais triviais, aspecto que a deixava um tanto quanto desconfortável e agitada em

quase todas as interações sociais, porquanto, sua atenção era atraída para o que geralmente era menos notável nas coisas; tornando-a sempre distante, como um ponto brilhante e apático.

Com o tempo as memórias de sua antiga casa se desintegrando, emaranharam-se ao esforço mental que ela estava expelindo no momento do incêndio, em sua lembrança, tal associação aparentemente ridícula, desenvolveu certo senso de culpa. Afinal, tua densidade imaginativa a confundia entre os limites da realidade e suas respectivas matérias. Lua nutria uma secreta

convicção de que havia provocado tal acidente, possuía a estranha sensação de que em sua mente não cabia tamanha intensidade, e que por vezes, tudo escapava de seu crânio, materializando-se em qualquer evento incontrolável, até mesmo em um incêndio.

Quando a garota terminou sua organização, estava nitidamente mais tensa por ter ruminado a memória de grande peso e culpa, ora, a qual lugar pertenceria agora? Seu maior espaço de acolhimento virara cinzas do passado, e seus ursos de grande importância afetiva, haviam também se desintegrado no espaço. Tudo parecia expulsa-la, pois não sentia proteção em lugar algum, e os outros, com não pouca frequência, confrontavam tua natureza dispersa. O deslocamento e a ausência de um verdadeiro lar era o que permeava a Lua, no entanto, sua

imaginação intrigante, criava os únicos universos capazes de acolher a garota, ainda sim, por vezes eles emergiam misteriosos e confrontavam a realidade de forma áspera e dolorosa. Eis o senso de inadequação.

A menina decidiu ir para o quintal da casa respirar ar fresco, sua cabeça latejava um pouco por

conta da lembrança funesta. Ao chegar lá, notou que o jardim continha certo nevoeiro espesso, tal vapor misterioso, parecia um devaneio amedrontador proveniente das raízes mais fundas da terra, a substância leitosa emanava das plantas e formava um enorme véu no

espaço; tal nevoeiro não aparentava ser natural, pois era mais grosso e possuía um cheiro pútrido que empesteava todo o ar de forma sufocante. Em meio a essa visão, Lua teve seus sentidos aguçados; a casa predatória aparentava guardar cultivos misteriosos, enraizados no tempo, e a névoa era como um sonho real em meio ao estado dormente das coisas, dado que, os elementos do jardim apresentavam certo sonambulismo, era como se fluíssem de uma existência latente, algo neles soava irregular e dotado de movimentos cegos se debatendo em

meio as trevas.

Lua geralmente era mais acolhida pelo contraste noturno, e naquele exato momento, sentia-se

fosforescente e nítida, não era ela que fitava os objetos, era a existência deles que a observava, mas a sensação não foi tão agradável, era a mesma sensação dos ursos varridos pelo fogo; o sentimento aterrorizante de impotência e paralisia. De repente, ela ouviu vozes

graves estourando junto aos ruídos noturnos, vozes ásperas que ela não conseguia identificar de onde vinham, tão pouco se saiam exclusivamente de sua própria cabeça; os sons se misturavam de forma alta e indefinida, eram de certo, vozes humanas, algumas pediam socorro, outras gritavam, Lua não era capaz de entender tudo o que estava sendo emitido de todas aquelas cordas vocais invisíveis, mas foi tomada pelo desespero e se escorou no muro

externo de sua casa, a parede parecia pulsar desenfreadamente, prestes a desmoronar. A garota entrou cheia de euforia, certa de que alguém a chamava, mas a casa estava emudecida e desconfortável como de costume; e o jeito que seus pais estavam posicionados e imersos em suas atividades, simplesmente evidenciava que não escutavam tamanho burburinho de vozeamentos assustadores.

Ela subiu até o seu quarto e as vozes continuaram a titubear nas extremidades da sua cabeça; Lua abriu a janela, e se deparou com o quintal ainda permeado pela névoa misteriosa, que pairava feito um medo incômodo, anuviando seu espaço craniano e afastando-a de qualquer

outra perspectiva. Através do vidro, ela fitava a palidez de seu rosto. A garota se contraia no estresse e em meio a tanta organicidade ao seu redor; não parecia existir lugar seguro, tão pouco uma luz silente e reconfortante, tudo a invadia de forma ensurdecedora. Nenhuma atividade, nem mesmo as que antes eram prazerosas, foram capazes de chamar sua atenção, pois o mundo estava oco e melancólico. Sem soluções, ela tapou os ouvidos e fechou os olhos enquanto procurava acalentar seu desespero.

De repente, as vozes cessaram, como num súbito tranquilizante espacial; e ao o olhar pela janela, Lua não via mais a névoa. As coisas pareciam inanimadas novamente, e a garota aproveitou-se desse estado de sono sem movimentos ou formas, para arriscar seu próprio

sono, pois sua cabeça ainda latejava, então, ela se deitou e exaurida de todo o pânico estressante, dormiu rápida e profundamente.

Em seu sonho, ela visualizou-se no jardim de sua nova casa, só que ele não parecia o mesmo, pois as plantas pendiam mortas, e na terra, ela viu crucifixos e covas abertas ao léu, ao fixar os olhos dentro de uma delas, Lua foi invadida pelo desejo de arremessar-se, mas junto a ele,

surgiu a angústia da escolha concreta: soterraria a consciência junto aos vermes ou cessaria para longe? A liberdade de apagar teus sentidos agitados a dividia e gerava uma intriga aterrorizante, pois tudo era muito arbitrário, mas ela não entendia bem o porquê daquela

sensação involuntária e tão autodestrutiva, de acabar consigo. Então, apenas continuou a percorrer o jardim que estava permeado por uma atmosfera mórbida. Enquanto caminhava, Lua observava o estranho comportamento da natureza que a rondava, as plantas não estavam

de fato mortas, estavam em lerdos movimentos de atrofiação, volvendo sua folhas e estraçalhando o caule na violência de quem de súbito, desiste do processo da vida; do céu, pássaros se estatelavam, mortos, formando uma verdadeira chuva de liberdade petrificada.

Lua notou que alguns abutres orbitavam uma pequena árvore ainda viva, eles sorviam a vida que havia nela, e não se interessavam pela quantidade enorme de matéria em decomposição no jardim, estranhamente, também não fitavam a menina, apesar dela aparentemente estar

dotada de vida. O ar estava consumido por miasma, pois tudo ali se deteriorava aos poucos; as coisas nasciam apenas para se aniquilar lentamente, como se germinassem o instinto da morte em sua genealogia primordial. Lua sentia-se como uma extensão daquele lugar, pois ao fitar as leis da natureza que ali se contorciam, percebia tal pulsão a governa-la; ela a identificava como

uma névoa cerebral que tendia a faze-la querer sumir, um ruído estreito e enraizado, que regava-se através da passagem dos dias, e lembrou-se que os seus médicos nomeavam-lhe, depressão. Nome que para a Lua, soava um tanto vago, mas o qual ela lembrava como consequência de sua natureza distante da dos demais seres, a velha névoa de sempre.

Enquanto associava todas essas sensações que tornavam o jardim demasiadamente familiar, a

garota caminhava e sentia certa letargia adentrando os seus nervos; a dificuldade de andar só se intensificava, e respirar tornara-se pesado e inflamável. Existir era como fundir sua carne ao negrume infindo da noite exposta, e quedar pesadamente sob um espaço disforme e sem

fundo. Assim, fora percebendo que, ao avançar pelo jardim, as leis autodestrutivas se mostravam cada vez mais fortes na natureza, ou o tempo ali realmente as ampliava, já não

sabia muito bem, pois sua mente ficava cada vez mais confusa e hiperativa; Lua sentia seus pensamentos devorarem a si mesmos em um canibalismo frenético de efervescer os neurônios; e misturava a anatomia de suas ideias numa quimera disfuncional e repetitiva, mas

continuava arfando em sua luta pela fragilidade de existir.

Finalmente pareceu ver outro ser humano, tentou se aproximar dele, era a silhueta de um homem, ao fita-lo de perto, Lua deparou -se com uma cena das mais grotescas, o homem estava paralisado, com a cabeça encostada em uma parede, entretanto, a parte superior de seu crânio, assim como, a frontal, estavam esfaceladas, ele aparentemente em desespero, bateu várias vezes com a cabeça na superfície da estrutura, e tentou rasgar a própria carne com as unhas, como que para se livrar de algum parasita cerebral, ou para aniquilar algum pensamento ruidoso demais; apesar de horrorizada, a garota por instinto de curiosidade, continuou olhando para a cena, algo a dizia que a morte do homem escondia-lhe mais do que

pensava. Mas, continuou a caminhar, e logo notou que o jardim era extensamente cíclico e traiçoeiro. Ela teve a impressão de já ter passado por aquele ponto, entretanto, sua cabeça não estava devidamente estruturada para fazer-se confiável. Lua fora intensamente acometida

por uma labirintite acompanhada de náuseas; já o espaço havia sofrido mudanças consideráveis, visto que, o desamparo de uma terra totalmente estéril e desértica já encobria boa parte do jardim. Lua foi ficando um tanto quanto ressequida e pálida, e teu humor, sanguíneo. Tua irritabilidade era proveniente da revolta contra a própria instauração da apatia em seu espírito, dentro de si, ocorria uma guerra, não obstante, ainda era sutil e abafada em

nuances de fundas respirações e largas passadas.

Ela ouvia vozes humanas derivadas de alguma distância considerável, mas isso não a gerava reações, sua posição era de sonambulismo mental, ela caminhava em um estado entorpecido e carregado de movimentos misteriosos, desses que a natureza incute no corpo humano

enquanto o cérebro fenece, mas ao lembrar de tal estado, a agitação novamente a emergia, reagindo das funduras do teu ser. Era o dilema de deixar-se ir como um tronco a flutuar nas águas do destino inconsciente, ou debater-se em teus movimentos mais genuínos de vida.

Lua distraiu-se por um momento, e notou um pequeno canteiro de flores mortas, mas o que realmente atraiu sua atenção foram as fagulhas de luz que, latejando dentro dessas flores, emanavam uma bruxuleante e obscena esperança. Ao se achegar, novamente percebeu que

não eram flores totalmente mortas, e sim, em estágio de apatia extrema, elas simplesmente ensaiavam para o eterno cessar das pulsões. Isso incomodava a garota de forma pavorosa; e o mesmo sentia com aquela terra, um ventre obscurecido por escamas sulfurosas, e violado

pelas cavidades do desespero; ele que guardara em si, a decomposição de inúmeros sonhos, esquecera-se da fertilidade que igualmente os gerava; a vida ali tornara-se um pesadelo cru. Provavelmente, a terra estava cega, e o único espaço que sentia abrir-se em si, era o das

sepulturas mais vis, pois ela abortava o menor sinal de vida, sucumbindo todos os fetos da consciência daquele jardim tão orgânico e pensante. Logo, tudo acabava por tremular no mais rígido embotamento.

Lua não pôde deixar de notar que a névoa espessa, tal como, uma membrana sórdida, cegava qualquer função de sobrevivência no local. O jardim enfermo, volvia tua consciência nociva em direção às próprias raízes; de novo o instinto canibal desnorteado, que na fome repressiva,

feria a si mesmo. Os gritos humanos munidos de desespero, palpitavam cada vez mais potentes, reverberando pelas plantas, como no inferno de Dante; Lua já não suportava assistir tua vitalidade se esvair e queria encontrar os indivíduos que estavam a gritar, pois ansiava

ardentemente por uma saída, decidiu por fim, entrar naquela casa que deveria ser a sua; as paredes estavam com infiltrações ainda maiores, o bolor encrostava cada canteiro da moradia, e uma estranha organicidade movia-se naquele lugar, que diferente do jardim, não demonstrava apatia, mas uma assustadora impetuosidade de quem luta. Dentro da casa, Lua sentiu uma enorme sensação opressiva, que apertou-lhe o peito, sorrateiramente; era uma

espécie de peso que rastejava feito cobra, de forma lenta, implacável e integral; e tudo no espaço possuía esse mesmo traço de vitalidade mórbida. A garota não podia evitar o sufoco ligado a uma estrutura de expressiva instabilidade; as rachaduras tomavam conta do lugar e prenunciavam uma queda, mas ela não via outra maneira de sair do ciclo vicioso, a não ser explorando seus padrões disfuncionais.

Lua podia sentir claramente um estado incendiário acender dentro de si, mas tentou ao máximo, controlar sua síndrome de deslocamento; alguns berros humanos se intensificavam, então, a menina observou com grande espanto, uma mulher surgir correndo compulsivamente

dentro da escuridão; uma luz fosca pulsava como um coração esmaecido dentro da cabeça dela, tal luz era muito semelhante com a que a garota havia percebido nos elementos do jardim; notou também, que o corpo da mulher parecia nítido por dentro, mas ela com certeza não o podia notar da mesma maneira, pois esbanjava um transe turvo e impiedoso; a miserável gritava e machucava a própria cabeça, na tentativa de dissipar as trevas de si, Lua

tentou impedi-la de ferir-se, no entanto, cega para a própria luz, a mulher subiu as escadas e saltou através da janela. A cena foi horripilante e trágica, ainda mais, com a trilha sonora dos gritos, eles eram emitidos por todos os lados, pelo assoalho, das rachaduras emparedadas, e até mesmo, mesclavam-se aos pensamentos noturnos da Lua, porém; nenhum outro ser foi avistado, apenas os rastros da agonia que titubeava como o coro da morte.

A garota ainda impactada pelo que acabara de presenciar, direcionou-se ás escadas e subiu ao

segundo andar; ela suava frio, com grandes borrifos de paranoia em relação a casa, foi quando notou uma sombra de esguelha em uma das portas, Lua aproximou-se lentamente, esforçando-se para reconhece-la, mas o ar naquele espaço era claustrofóbico, posto que, não

havia janelas, apenas portas, o que enfatizava a extensão e o isolamento; o local também possuía um tom funéreo e cômodos tão vazios quanto labirintos esquecidos; devido a tais traços de aprisionamento e sufoco, a garota duvidou dos teus olhos, pois estava visivelmente abalada, no entanto, a sombra na porta mexia-se e ganhava maior contraste conforme a garota a alcançava, foi quando sua forma convulsionou bem mais nítida, Lua a reconheceu, era

o seu amigo imaginário, o Narciso, não obstante, tinha algo de errado com ele, a criatura fantástica parecia disforme e possuía sérias queimaduras pelo corpo, Lua não o vira desde o incêndio em sua antiga casa, já não conseguia acha-lo em nenhuma parte, e embora o chamasse e forçasse sua mente a traze-lo de volta, ela sempre acabava sem êxito. Mas agora, ali estava ele, um dos produtos mais reconfortantes da consciência de Lua, no entanto, a

pobre criatura estava chamuscada e o seu rosto não aparentava ser o mesmo; parado naquele ambiente adoecido, Narciso parecia o reflexo monstruoso do isolamento da garota. “Quem sou eu?” Pensou ela ao olhar para aquela figura. Lua tentou se aproximar e se comunicar, mas ele apenas a fitava de forma fixa e reproduzia os movimentos corporais da menina, entretanto, a figura logo esbanjou vida própria e o seu corpo carbonizado foi alongando-se e tendo os membros atrofiados de forma repulsiva; ele passou a rastejar gelatinosamente; o ser

transparecia a fraqueza de um encarcerado, que adoece sem o ar exterior e sobrevive de uma nutrição estragada. Era horrível, Narciso estava decrépito e parecia uma matéria pastosa em decomposição, ele perdera parte de seus ossos; a sensação viciosa e cíclica do Jardim,

simplesmente retornou quando a menina bateu os olhos na criatura instável. Nem mesmo o seu amigo imaginário era o mesmo, e isso a fez arfar em uma forte sensação de desamparo.

O ar tornava-se cada vez mais denso e doentio, e a tristeza que ali pairava era febril. A garota mantinha os olhos vidrados em Narciso enquanto o rosto da criatura ganhava o formato de um redemoinho vertiginoso e morbidamente atrativo; tal abismo torvelinho, circulava de forma a puxar a atenção de Lua para o centro de sua face. Narciso costumava a atrair sua atenção antes, mas não daquela forma, tão traiçoeira e inevitável; e no fundo de si, ela desejava que ele voltasse a ser o que um dia fora, assim como um sem teto anseia por seu abrigo mais íntimo. Lua tonteava de forma nauseante entre os sulcos da criatura, e sentiu cada partícula de energia de seu corpo se esvair; a angústia era eminente. E o redemoinho no rosto de Narciso representava claramente, um estado mental vago e desordenado, com suas leis próprias, assim, Lua encontrava-se na vaguidão de uma casca vazia, e dentro de si, esqueceu que estava viva por alguns instantes; apenas cessou de lutar, mas isso não a impediu de nutrir uma

vontade íntima de arrancar os olhos das órbitas mediante a visão monstruosa de Narciso, pois não podia conceber a ideia de ter parido de sua mente, tamanha estranheza. E convenceu-se de que jamais conhecera a si mesma. A maior tormenta de Lua, no entanto, não era a sensação de estrangeirismo que Narciso a emitia, mas o medo cruel do que um dia pensara ter conhecido, era a sensação de abandono grotesco, que a desolava; o medo do desconhecido poderia excitar os sentidos ao sublime e espalhar uma dor poética mediante a própria insignificância, mas o medo do que um dia fora supostamente familiar, gerava uma dor

implacável de isolamento opressivo. Quanto mais a garota olhava para Narciso, mais nítido e disforme ele ficava, pois a criatura retribuía com um olhar abismático e hipnótico. Lua, entretanto, decidiu travar uma luta interior para livrar-se de sua mórbida obsessão em mirar Narciso, visto que, o corpo dela ficava cada vez mais frágil e exposto, mas ela sabia que no fundo relutava, porque desejava em vão, ter o teu maior lar imaginário de volta, torcendo por uma súbita transformação. Mas, por fim, a repulsa e a fraqueza venceram suas expectativas e ela subitamente afastou os olhos e distanciou-se; a criatura cada vez mais próxima já

queimava as narinas de Lua, com seu hálito pútrido; e apesar de ter afastado o olhar, a garota ainda visualizava o redemoinho pérfido, girar dentro de si; e em um desespero inconsciente, a menina fugiu do local carregando um instinto suicida muito intenso, ela desejava apagar

aquela memória de si, e ao pisar no jardim, visualizou a mulher que havia se atirado pela vidraça, a garota concluiu que talvez a forma no andar de cima houvesse instigado o suicídio da mulher, talvez Narciso fosse a própria forma monstruosa, que expulsava a sensação de pertencimento de qualquer ser que o olhasse, talvez ele fosse a materialização do desamparo. A garota ainda queria aniquilar-se, e apesar de se lembrar vagamente da luz que toda vida ali carregava, ela não conseguia tornar a sua tangível, e isso fazia da morte a maior das atrações.

Lua já estava tonta, e certa de que encerrar tuas pulsões seria a melhor forma de ter o controle e aniquilar sua dor; ela estava obcecada pelo fim das coisas, e apesar de fitar a

luminosidade escondida no restante do jardim autodestrutivo, não era capaz de visualizar a sua própria. Os gritos humanos soavam-lhe cada vez mais familiares e o jardim não lhe causava mais a menor repulsa, o local passou a encara-la intimamente com seu negrume imperioso; e a garota caminhava, seguindo os gritos de forma igualmente intima, até que chegou bem perto

de um canteiro amontoado por esqueletos humanos, alguns deles, exibiam uma corda no pescoço, e o crânio de cada um estava separado do corpo; a garota, sem mais delongas, percebeu que os gritos eram emitidos daquelas caixas cranianas atiradas em uma cova isolada.

Lua escorreu seu olhar perdido para dentro da cova empilhada por crânios, e deixou-se a vagar por entre eles; ela sentiu que cada ruído era o fantasma mais íntimo de algum cérebro que dali fora sorvido. Cada caixa óssea era um arsenal de pandora, contendo todos os males que

outrora se hospedaram apertados, dentro de algum ser, que aos poucos, tornou-se o monstro contra o qual lutava; as lembranças fantasmas agora viviam no lugar de cada ser vencido pela dor. Lua já sentia-se tão disforme quanto Narciso, e não demorou para ver que o plantio de

crânios suicidas, acabava por regar a natureza pérfida do jardim com o desespero fossilizado dos gritos; certo líquido escorria da cova e esterilizava todo o espaço, fazendo com que os elementos do jardim ficassem cegos e devorassem a si mesmos, era um ciclo vicioso, reforçado pela névoa e pela dor. Eis a receita do fim.

Lua sentia sua cabeça mesclar-se junto aos crânios na cova, e por um momento questionou se ela não seria meramente uma lasca deixada para trás; talvez seu crânio já estivesse seco e emitindo berros entranhados na terra, e ela então, seria apenas uma falha lembrança de si

mesma, pairando perdida entre os escombros e a fitar teus próprios restos mortais em total inconformismo. Esse pensamento fez com que Lua se transformasse em uma câmara de tortura existencial; teus pensamentos saltavam, desenfreados, e a dor em sua cabeça era tamanha, que assemelhava-se ao movimento de retroalimentação destrutiva; ela sentia o canibalismo de seu cérebro; e isso foi desesperador. No mesmo momento, Lua viu uma

serpente trocar de pele e devorar a própria cauda de forma muito calma, tal natureza deu contraste ao seu pavor, pois a garota podia sentir parte de sua cabeça ser dilacerada por dentro, mas não mais sabia, se era real ou não. Só conseguia projetar Narciso em sua frente, com isso, um grande instinto de tira-lo de sua cabeça surgiu. Ao fitar de novo a cova dos crânios, a garota rapidamente fez crescer o anseio de cair nos braços incertos da morte. Ela

fitou as trevas no buraco infindo e desejou virar mais um suprimento para aquele jardim, donde, teu Narciso era o jardineiro; posicionou os pés na beirada e inclinou-se para atirar-se ao nada, alguns reflexos surgiam em tua mente, e como uma mártir resignada, aceitou a sina que ela mesma criara. Lua estava prestes a saltar, quando sentiu tua luz germinar a vida mais pulsante; foi no momento em que fitou alguns crânio serem dilacerados pela pungência de

certas flores embebidas pelo aroma da vida, era como uma sutil revolução no jardim; e ela balbuciou: como algo ainda pode respirar em tais ventres ósseos? Em forte deslumbre, a menina quis a vida, mas ainda fraca, ela pensou em gritar pelo antigo amigo imaginário, mas por que gritar por Narciso se ele morrera dentro de si? De certo, ela queria dançar com as próprias trevas em direção a vida, porém, tudo parecia vazio em demasias.

Lua visualizava o eco de sua alma, proferir as memórias que Narciso deixara antes de queimar no tempo; e a falta de um lugar seguro a corroía, mas ela não queria morrer por um ser feito de memórias, tão pouco tornar-se uma delas; não obstante, a garota começou a reproduzir

internamente, os sons que os crânios emitiam, ela podia sentir os berros recônditos e confusos se entrelaçarem em seu silêncio interior. Banhada pela agitação, antes de finalmente se jogar na cova, Lua forçou tuas vistas para a luminosidade escondida em si, e acordou no meio do

jardim de sua casa, mas dessa vez, tudo parecia normal, ela sentiu-se um tanto quando congelada e em um estado vegetativo, mas logo moveu-se no império silencioso em que se encontrava; nada nunca parecera tão real e convidativo, a nitidez era rígida de forma aliviante;

tudo indicara que ela não jogou-se ao abismo e tal escolha, dissipou o mau agouro que pesava sob seus olhos deturpados. Ela agradecia por ter tido uma iluminação revolucionária. Mas tudo não parecia passar de um sonho assombroso.

Lua viu-se prateada em sua natureza mais obscura, então, levantou-se e deu-se conta de que não havia tido um simples pesadelo, mas que havia penetrado a substância espessa da tua desolação mais íntima através do sono; e que provavelmente caminhara num sonambulismo até o jardim. Por fim, entendeu o que dormia e convulsionava em suas crises mais profundas de deslocamento: um vasto jardim cego de si; então, em um despertar, a garota decidiu

cultivar a vida de forma externa a qualquer espaço sufocante. Viver soava-lhe mais revolucionário que a morte. Eis o enigma da jardinagem. Aérea, ela retornou para o quarto.

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 12/11/2020
Reeditado em 12/11/2020
Código do texto: T7109977
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