Capítulo 18

(...) Num espetacular êxtase, fui levado a uma grande avenida, no meio de uma grande cidade. Na grande avenida uma multidão incontável marchava exaltada, com expressões ferozes e segurando cartazes elevados sobre suas cabeças. Inclinando-me, pude ler e ouvir as mais diversas reivindicações:

— Chega de mentiras!

— Abaixo a depravação!

— Sem mais roubos!

— Fora homicidas!

— Queremos liberdade! — dentre tantas outras palavras de ordem.

Olhando para onde a multidão se dirigia, ao final da avenida, um trono erguido no alto uma grande pirâmide detinha um homem, sentado. Ele possuía em suas mãos os sinais do poder dos homens daquela terra.

Assim que a multidão acercou-se da pirâmide, principiaram a escalá-la, não tardando a alcançar o homem. Com grande fúria destronaram-no e empossaram outro em seu lugar. Este novo homem era muito semelhante ao primeiro. Com grande aclamação foram-lhe entregues os símbolos de poder tomados do antecessor. Depois, a multidão se foi.

Ao fim de tudo isso, sobreveio a noite e pude ouvir uma voz ao meu lado, inquietando-me:

— Que dizes que ocorreu aqui, filho de homem?

— Ora, meu senhor, não faço ideia. Penso que sabes mais do que eu.

— Pois explicar-te-ei. Esta grande cidade é a cidade dos homens. A grande avenida é onde se manifesta a vida e os anseios dos homens. Vistes a multidão? Pois bem, todos aqueles que protestavam são habitantes da cidade. Tudo o que reivindicavam nos cartazes e nas vozes é o que dizem ser o supremo bem e que deve ser prerrogativa do soberano.

“Porém, cada indivíduo daquela multidão clama por algo que eles mesmos não cultivam ou acreditam. Vistes os cartazes e ouvistes as palavras de ordem? Mentirosos reivindicando verdade, depravados reivindicando castidade, ladrões reivindicando honestidade, homicidas reivindicando a vida, tiranos reivindicando liberdade. Ao final, são todos humanos reclamando uma sobre-humanidade desacreditada.”

— Mas, meu senhor, se são todos assim, por que clamam por algo que não cultivam nem acreditam? — Perguntei, instigado por saber mais sobre minha visão.

— Filho de homem, pois são humanos. Cativos dos sentidos da carne, são guiados por eles. E esses sentidos os fazem marchar pela grande avenida, sublevando o que for preciso para dar-lhes vazão.

“Vistes o soberano destronado? Ele era tão homem quanto eles, saído do meio deles, e o substituíram por outro tão humano e tão semelhante a eles quanto o antecessor. Os primeiros dias do novo soberano serão plácidos, porém logo esta mesma multidão estará farta de sua humanidade e ele terá a mesma sorte de seu antecessor.”

Após ouvir a voz, o mundo girou vertiginosamente numa inumerável sucessão de dias e noites até que nova multidão despontou no começo da avenida, com os mesmos cartazes e gritos enfurecidos, rumando contra a pirâmide. Estavam prontos para empossar outro homem nascido e criado no meio deles, por eles e como eles, no lugar daquele que haviam entronizado (...).

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 07/04/2021
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