Depois do Natal: Um conto para não ser lido à noite (Cap X - O SAPATEIRO)

Como era de se imaginar, o sapateiro era um tarado.

E, é claro, na cidade todo mundo sabia disso, mas ninguém falava nada sobre o assunto. Era como se esse fosse um assunto tabu. Havia, como que um clima em que se misturavam conivência, suspeita e medo.

Na realidade, ninguém da cidade tinha certeza de nada. Alguns estupros aconteciam, de vez em quando. Entretanto o estuprador sempre agira com o rosto encoberto por um capuz preto. Daquele tipo que os bandidos usam nos filmes. E até parecia, mesmo, cena de filme, pois sempre aconteciam em locais muito pouco recomendados.

Talvez por isso as vítimas, também, nunca registraram ocorrência, na delegacia.

Medo.

Vergonha.

E depois, quem poderia identificar o dito cujo, que sempre agia com o rosto encapuzado... em lugares ermos... pouco iluminados... Lugares de má fama. Lugares nos quais confessar ter estado lá já era confessar o inconfessável.

Mas agora era diferente.

Era um casal de turistas, de uma cidade grande. A provável vítima uma criança...

Também é verdade que outras crianças já haviam desaparecido, depois de terem sido vistas pela última vez, caminhando ao lado do sapateiro, em direção à sua casa...

Na verdade sempre houvera suspeita – certeza para a população que tem o boato como prova.

O disse que disse entre a população era uma evidência e evidenciava a culpa e a safadeza do sapateiro. Quanto a isso não havia dúvida. Tanto que nenhuma mulher o procurava. Pelo menos nenhuma falava que o havia procurado. Seus clientes eram somente homens. Talvez, também por isso, a boataria aumentava.

Bem a boataria também poderia ser explicada pelo fato dele ser um homem de pouca conversa, e por morar em um lugar ermo e afastado do centro da cidade.

O fato é que ele era visto como uma pessoa estranha.

As pessoas que não se comportam como a maioria sempre são mal vistas. São vistas como estranhas. Só porque são diferentes e não se comportam como a maioria. Como se a maioria fosse o pomo da verdade.

Ninguém questiona os comportamentos idiotas, da maioria. Comenta-se e condena-se, o comportamento de quem age e se comporta com os próprios critérios, como se ter caráter e opinião própria fosse um crime; como se seguir a maioria fosse prova de inteligência e não de burrice. A propaganda explora isso de forma muito eficiente querendo que cada um seja igual a todo mundo…

O fato é que o sapateiro era uma pessoa estranha.

Muito embora, para com os homens que frequentavam sua oficina, o sapateiro nunca tivesse mostrado o menor sinal de desrespeito ou destrato. Sempre se mostrava muito cortês e atencioso. Aliás sempre se mostrara um excelente profissional.

Por seu lado a polícia sempre trabalha com provas materiais e nunca encontrou nada que provasse alguma ligação entre o sapateiro e os estupros ou as crianças desaparecidas...

Como a cidade era de beira de estrada... a consciência de todos mandava dizer que as crianças poderiam perfeitamente ter sido raptadas por alguém, de passagem...

Mas depois que ele comprara aquele antigo “fuscão” amarelo, parece que ficara mais ousado. Onde se viu um velho dirigir só de cueca pelo centro da cidade?

Se a polícia não podia provar nada contra o sapateiro, a população tinha certeza...

O velhote era louco!

Era um animal!

Um tarado!

Mais de uma vez fora visto, tarde da noite, naquela praça de má fama, pelado, masturbando-se...

Quando isso acontecia a população se perguntava se esse fato já não seria prova de que o velho sapateiro era culpado de alguma coisa?

Mas quem se arriscaria a confessar ter estado nesses lugares, altas horas, para ver o que viu?

Quem se arriscaria a ser identificado pela sociedade como alguém que vai àqueles lugares, frequentados por muitos e que todos sabem a que se destinam?

Quem seria capaz de admitir que faz o que faz e que todos sabem ser feito mas ninguém tem coragem de comentar… nem de admitir ter feito?

Quem seria capaz de superar a hipocrisia para dar cabo de algum problema social e que beneficiasse a todos?

Quem seria louco de se sacrificar pelo bem de todos?

(Continua na próxima semana...)

Neri de Paula Carneiro

Rolim de Moura – RO

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