Depois do Natal: Um conto para não ser lido à noite (cap XII - A CASA DO SAPATEIRO)

A casa do sapateiro era lá pra baixo. Do outro lado da ladeira.

Era lá para baixo, como é para baixo toda imaginação de coisa negativa. Coisa baixa, coisa ruim, como a própria imagem do inferno que se imagina não uma situação, mas um lugar, lá embaixo.

Talvez nessa ideia de “lá embaixo” ainda se possa ver a presença do Hades, mundo dos mortos, da mitologia grega; aquele mundo subterrâneo incorporado ao credo cristão como a “mansão dos mortos”; a morada do capeta, para onde irão todos os maldosos que teimaram em não seguir os bons conselhos de mestre Jesus.

Lá embaixo, onde também ficam os que morrem, ao serem enterrados. Talvez nisso se identifique as coisas negativas com o fato da morte e o hábito do enterro, pois o defunto acaba ficando “embaixo de sete palmos” como afirma a visão popular do sepultamento.

O fato é que a casa do sapateiro era lá embaixo. Bem mais abaixo da rua de baixo, escura, nas noites escuras. Mas naquela noite havia a luz do luar como a iluminar o desespero.

A casa do sapateiro, antes de ser uma casa, era um rancho. Entretanto é bom que se diga que era um ranchinho muito bem cuidado.

Um lugar muito bem limpo. Asseado. Apesar de gozar de má fama quanto às suas maluquices, o sapateiro gozava o prestígios de ser caprichoso. Único naquela cidadezinha. Um excelente profissional.

É verdade que depois que começou a onda de sapatos de marca a profissão de sapateiro entrara em crise e em crise também ficaram muitos sapateiros. O preço do sapato artesanal não tem como competir com esses “de fábrica”.

O bom do progresso não é o progresso mas as crises que ele gera: o desemprego que leva alguns a aprender a “se virar”; a falta de postos de trabalho que gera a delinquência ou o empreendedorismo em busca de alternativas. Outros, simplesmente perdem a noção da ética e da civilidade.

O progresso faz nascer a sociedade do “cada um por si”. Nela manifesta-se a face mais verdadeira do ser humano que é sua perversidade, sua animalidade. Mas são aspectos e características do ser humano que a civilidade conseguiu disfarçar e ocultar nas regras de boa conduta e de boa convivência. Regras que mantêm a vida urbana: só assim o ser humano conseguiu idolatrar o tumulto que é a vida na cidade; e demonizar o que chama de sofrimento que é a vida rural.

Enfim, o progresso, que é uma das caras e característica humana, provoca a desinstalação. Pelo progresso o homem saiu das cavernas para morar nos caixotes empilhados que são os apartamentos. Na verdade o progresso provoca.

Mas neste caso o velho sapateiro, mesmo com suas esquisitices, permanecia bem aceito, como profissional, na cidade. Era bom de serviço, um artesão, um artista da profissão. A crise, para ele havia sido benéfica: valorizou seu trabalho artesanal. Fabricava peças únicas e exclusivas

Por outro lado, mas essa era a sua vida particular, todo mundo sabia, por suposição, que ele era um abusador. Todo mundo tinha certeza, por suposição, que ele era um mau caráter. Mas, também, todos tinha uma certeza: deviam deixá-lo quieto em seu canto…

Todos sabiam, por suposição, que ele era estuprador e, com certeza, estava envolvido no desaparecimento das crianças. Qual outra explicação para um velhote daqueles aparecer na praça, pelado, como muitos diziam que ouviram dizer que era a mais pura verdade? Os que diziam que ouviram falar, diziam que, em altas horas ele, pelado na praça, procurava os cantos escuros para fazer aquilo... Mas se a polícia não tomava providências...

Já que a polícia não tomava providências, mais de uma vez algum grupo um pouco mais exaltado tentou se organizar para linchar o velho. Mas a polícia, sempre a polícia, agira em defesa do velhusco. Sem provas, nada feito! E mesmo com provas, o bandido tem direito à defesa, da mesma forma que o inocente tem direito a uma bala perdida, quando anda pela rua ou no meio de um dia de trabalho.

E nada se podia provar contra ele. Todos sabiam só por suposição. Afinal quem é que não desconfia daquilo que não entende? E como entender um camarada tão esquisito? Principalmente porque vivia numa casinha, lá embaixo, na parte baixa da cidade...

(Continua na próxima semana...)

Neri de Paula Carneiro

Rolim de Moura – RO

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