OS OLHOS DO RATO

Durante sua passagem festiva pelo carnaval de Salvador, Renato pulou, brincou, beijou e foi feliz. Foram momentos tão breves e talvez por isso tão inesquecíveis. Mas nada, nem o beijo daquela adorável desconhecida mascarada que apareceu de repente, foi mais marcante do que o que aquela mesma noite de terça-feira ainda reservaria para ele.

Depois que os blocos se dispersaram e a folia deixou as ruas para, já cansada, queimar o fogo quase extinto de suas brasas esbranquiçadas em suas casas e vizinhanças, os três amigos, Sônia, Cláudio e Renato foram para um bar, onde conversaram e animados retrospectaram o que foram aqueles três dias e como a amizade dos três, que durava 10 anos, ainda era forte e bela mesmo com o passar dos anos. Era inegável que o vigor dos tempos em que cursaram a faculdade não era o mesmo, mas o resto ainda podia ser sentido. A cumplicidade, as risadas e os momentos que passaram em companhia um do outro, tudo estava ali, como há 10 anos.

Mas tudo acaba e foi quase no alvorecer que os amigos se separaram. Sônia voltaria para o Rio de Janeiro, Cláudio para São Paulo e Renato voltaria para a sua vidinha pacata em Vitória. A loja de antiguidades esperava por ele para abrir as portas na quinta-feira e receber os amantes de quinquilharias.

Tropeçando, bêbado, ele seguia pelas vielas escuras e sujas. O lixo dos foliões se espalhava tão esparso como a própria chuva que caía. Um fedor de mijo e peste se espalhava. O fez refletir por alguns segundos. Se a peste tivesse cheiro seria como aquele. Impossível de ser descrito. Era como vômito misturado com merda e o fedor de vinte mendigos que não tomavam banho há vários dias. O frio que parecia subir pelos bueiros, como uma névoa sobrenatural também causou desconforto e medo. Calculava o tempo que levaria para chegar na pensão da senhora Júlia. Mais um quilômetro, calculou, estaria seguro, no seu quarto.

De repente aquele barulho, um ruído. Guinchos. Eram ratos. Mas não via nenhum desses bichos asquerosos. Mesmo assim os sons pareciam aumentar de intensidade e martelarem fixamente como um tambor ritmado e aflitivo, que machucava os seus tímpanos e latejavam na sua cabeça, mais ainda do que a enxaqueca provocada pela bebida em excesso.

Sentia-se, ele próprio, como um saco de carne sobre ossos, cujos os movimentos não eram mais articulados por ele mesmo, mas obra de um maestro malvado que o usava como queria para atingir seus propósitos sádicos. Era possível que a qualquer momento desmaiasse ou mesmo desse seu último suspiro, se agarrando a qualquer parte sua ainda humana que resistisse. O frio aumentara ao ponto das suas juntas doerem e do pulmão parecer ter pedras dentro ao invés de ar. A névoa já escalava as paredes e em alguns momentos parecia esticar seus tentáculos oscilantes para fazer contato com ele.

Quando encarou a luz, projetada da parede, que momentaneamente o cegou, ele já se sentia fraco demais. Viu uma portinha pequena como um rodapé crescer até ficar do tamanho de uma porta normal, de uma casa e aquela luz vacilante que aumentava e diminuía em ondas como as vagas do mar, o desorientavam ainda mais. Assim que a porta ficou estática em seu tamanho final, de dentro dela saiu um ratinho, um camundongo. Esse rato, tal como a porta crescia, até ficar do tamanho de um cão de grande porte (como um Dobermann).

Diante de tudo isso, caído, sentado no chão, Renato, estupefato, encarava aqueles olhos amarelos como se visse o próprio demônio na sua frente. O rato gigantesco batia com seu rabo longo na parede e o som pareciam chicotadas. E começou a arranhar os paralelepípedos.

Ele nunca soube de fato se o rato disse aquelas palavras ou se isso não passava de coisa da sua cabeça. Embora se lembre, tão vivo ainda na memória como aquelas paredes verdes do hospital, as palavras. “Olhe pra mim, homem. Olhe para mim. Não desvie o seu olhar”.

A voz era como a de uma criança birrenta e soava arrogante e endiabrada como a de um palhaço sem graça. Quando acordou no hospital teve de ser imobilizado por dois enfermeiros até que lhe aplicassem o sedativo. O tempo todo ele dizia: “Os olhos, aqueles olhos. Os olhos. Os olhos. Eu vi a morte eu vi. Nos olhos. Eles revelavam o futuro. Eram a morte. A morte. Todas as mortes. Todas as vidas. Os olhos. Aqueles olhos”!

CEIFADOR
Enviado por CEIFADOR em 01/08/2021
Reeditado em 21/11/2021
Código do texto: T7311926
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