Não me enfrente!

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Saíra de casa com capa e guarda chuvas. O dia amanhecera carrancudo, de mau humor, prenunciando cair um aguaceiro forte. Estava prevenido, não teria problema em enfrenta-la caso ocorresse.

Iniciou o seu trajeto caminhando pela rua com passos largos e fortes. Olhava para o alto constantemente monitorando o clima, sempre instável e imprevisível naquela época do ano. Sentia-se confiante. O percurso era longo.

Cruzou com alguns conhecidos comentando da chuva bruta que se anunciava, o que ele concordou, respondendo-lhes amigavelmente. Com o seu andar decidido e guarda-chuvas em punho, ia em frente impetuoso. Nada o impediria.

O bairro onde morava era distante do centro da cidade, com suas casas baixas, de telhados descorados, paredes caiadas e janelas escuras, todas fechadas naquela manhã, sem nenhuma particularidade, como ele.

De repente, o vento começou a cantar forte, atravessando e vergando as árvores, chocalhando forte as suas folhas fazendo-as cair. Sibilava alto e agudamente por entre os fios nos postes, açoitando-lhe frontalmente em lufadas densas e possantes, parando-o por instantes. Não se intimidou, com o corpo à frente, continuou.

Um vigoroso estrondo de trovão irrompeu próximo, como um alerta dos céus. Seguiu determinado. Ninguém nas ruas, somente ele com seu intuito.

Em dado momento, com esse cenário violento anunciando a tempestade, parou olhando curioso para um detalhe que se delineava nas nuvens cinza escuro, quase negras como noite, provocando o acendimento das luzes da iluminação das ruas. Algo era desenhado ou escrito nelas. Escrito? É possível o que vejo?

Não me enfrente – leu em letras brancas, gordas e desuniformes perfeitamente legíveis, destacadas no negrume da tempestade imediata.

-Não é possível! É miragem. Vou aguardar se desfazer.

Permaneceu parado encostado no portal da entrada de uma das casas iguais da sua rua, fugindo da feroz ventania. Ficou ali por algum tempo, observando as letras sumirem como previra. Sentiu certo alívio, espantado.

-Uma miragem, com certeza. Que loucura hein?

O vento amainou, dando-lhe condição de aumentar suas passadas. Tinha que chegar cedo ao trabalho, pois ocorreria naquela manhã uma importante e decisória reunião para o seu futuro na empresa, uma promoção talvez. Voltou a andar apressado, mesmo com a tempestade se formando mais forte a cada passo. Mas, tinha o seu amigo defensor seguro fortemente na sua mão que o protegeria até lá.

Ao virar em uma esquina, letras novamente.

-Não acredito! Estou enlouquecendo? O que será agora?

Não me enfrente – escritas com a mesma caligrafia no preto retinto das nuvens tempestuosas, com clarões dos trovões ao fundo como moldura. Uma cena bíblica!

-Mas não a estou enfrentando! Só tenho que chegar ao meu trabalho para a reunião mais importante da minha vida. Porque me persegue? Estou delirando?

Então, como se uma cachoeira se abrisse no céu, uma enorme e fortíssima enxurrada de agua desabou sobre ele. Tentou abrir o seu guarda chuvas, instantaneamente arrancado da mão pelo vento, voando desenfreado na noite que se tornara o dia. Um vulto fantasmagórico perambulando pelos céus. Uma cena de terror.

Estava indefeso . Tinha a sua capa de chuva, mas era tanta agua que já lhe encharcara as roupas e o corpo. O vento lhe impelia para trás fortemente, desestimulando-o.

-Não posso desistir! Tenho que chegar ao meu trabalho, custe o que custar. Tenho que achar uma saída – pensou aflito.

Resolveu usar de inteligência para enganar a tempestade: dar-se por vencido. Ardilosamente, abrigou-se sob a marquise de um edifício, mostrando que não continuaria com seu intuito. Aguardou a tempestade acalmar.

Aparentemente cessara a sua violência, tornando suas nuvens mais claras de imediato. O vento abrandara também. Ela o aguardava, com certeza, para uma nova batalha. Esperta pensou.

Ouvia-se o correr das águas pelas ruas como caudalosos rios, com densos feixes líquidos caindo dos telhados alimentando-os, como se após a tempestade, prenunciasse a bonança. Será?

Era a sua deixa. Sairia correndo até a estação do metro ali perto, onde não conseguiria lhe barrar. Olhou no relógio de pulso, tinha ainda quase uma hora para o seu evento. Venceria. Preparou-se.

Disfarçadamente, começou a andar de volta, como que vencido. Olhava de soslaio o céu, que a cada passo, mais claro ficava. A chuva e o vento pararam. Perfeito, como imaginei.

Subitamente, virou-se e começou a correr desenfreadamente para a estação pela rua alagada e escorregadia , vendo que a tempestade voltava a pretejar o céu, o vento a assoviar forte e violento e raios estourando ao seu lado. Uma guerra de fato se avizinhava rapidamente.

Ela não lhe teve piedade. Foi seu corpo vergado com o descarregar de caudalosa tromba d’água. O forte vento derrubou-o, arrastando-o pelo rio que corria sobre o asfalto, impedindo-o definitivamente de seguir.

Ele lutava. Deitado e rolando violentamente na enxurrada sem destino ou controle, visualizou a entrada do metro. Minha chance. Estava perto da guia da calçada indo em direção a uma boca de lobo.

A enxurrada ficou mais forte junto à abertura estrangulada da captação da água na sarjeta. Um enorme redemoinho se formou. Ele começou a rodar alucinadamente junto com todo aquele volume d’água – ele subia e descia oscilante como em um ciclone líquido. A tempestade era mais forte e violenta ainda, demonstrada pelos raios e trovões incessantes. Ele girava loucamente como em um liquidificador. Impossível sair dali. Ela o vencia.

Subitamente cessou a tempestade e a força da enxurrada, fazendo-o cair no piso encharcado, batendo com a cabeça na sarjeta. Desacordou sobre o escoar rápido das águas pela boca de lobo.

Acordou atordoado com forte dor na cabeça, sem entender o que ocorrera ou onde estava. Teria sido um sonho?

- O senhor me vê? – perguntou-lhe uma voz masculina.

Viu um vulto disforme de branco inclinado sobre ele. Era um médico.

-Vejo o seu vulto.

-Tudo bem, o senhor teve uma leve concussão na cabeça, mas esta bem. Fizemos todos os exames. A visão voltará gradativamente. O senhor terá que ficar aqui em observação por setenta e duas horas, por precaução.

- Que horas são?

- Quatro horas da tarde. O senhor foi encontrado deitado desfalecido junto a uma boca de lobo na rua, quase afogado. Parece que escorregou e bateu a cabeça na guia.

- Não acredito! Perdi a chance da minha vida no trabalho! Tudo culpa da maldita tempestade que me fez cair! Ela me perseguiu, escreveu frases nas nuvens dizendo-me para não enfrenta-la... – falava balbuciante e inconformado ao médico.

- Certo senhor, eu entendo, eu entendo sim. Por isso temos que observá-lo por esse período – disse-lhe o médico consolando-o ceticamente.

Continuou balbuciando baixinho voltando o seu olhar para a janela, onde ainda pairava os resquícios da tempestade.

Então, viu atônito novamente escrito nas agora brancas nuvens como algodão:

Não me enfrente!

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 10/12/2021
Reeditado em 12/12/2021
Código do texto: T7404532
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