O QUE É PIOR: A REALIDADE OU O PESADELO?

O que é e onde se encontra o sagrado, a paz, o belo, o bem, o mal, o pior e o melhor? Creio que em nós mesmos, tudo dependerá sempre de nossa perspectiva.

A casa de madeira muito simples tinha uma cor acinzentada, por conta da tonalidade das tábuas secas e velhas que a compunham. Possuía dois cômodos: uma cozinha e um quarto, separados por uma varanda. O chão era feito de tábuas, tais quais as da parede, porém o assoalho era de um vermelho vivo e brilhante, efeito direto da cera misturada a um corante dessa cor, chamado popularmente de vermelhão. Única cor que destoava do cinza estampado na casa e na vida da família que ali residia. Forração não possuía. Olhando para o teto enxergava-se as telhas de barro apoiadas na estrutura de madeira (tesouras) por onde durante os dias, ou nas noites de lua penetravam os raios de luz, lembrando que ali qualquer coisa poderia adentrar sem muita dificuldade. Portas e janelas também de madeira fechadas por pequenas tramelas.

Bem em frente à residência, aproximadamente a cinquenta metros dela, havia um lago abandonado, não sei se era natural, ou artificial, mas tinha aquele aspecto de abandonado com muito capim e outras vegetações rasteiras em todo o seu entono e até mesmo dentro da água turva, nas partes mais rasas e próximas da margem a vegetação se fixara. Parecia um receptáculo de águas mortas, não se escutavam sapos ou rãs a entoar seu canto respetivo e enjoado naquele local, a água era parada e silenciosa como um espelho negro, onde parecia se camuflar um portal.

Aos fundos da casa existia a famosa patente, uma casinha de madeira, com um assento sanitário também de madeira, coberta por telhas, ou às vezes por tábuas. Essa construção era instalada sobre um buraco de um metro quadrado de largura, com cerca de dois metros ou menos de profundidade. Era nesse local onde se depositavam as fezes ali evacuadas. Vale a pena ressaltar, que se excrementos já possuem um odor não muito agradável, quando vão se acumulando e se decompondo, formando um lodo cheio de larvas brancas, que com seu movimento de fervilhar parecem dar vida a massa putrefata é muito mais fétido.

Há aproximadamente cinquenta metros do sanitário corria uma pequena sanga, riacho com cerca de três metros de largura de uma margem a outra, com um metro e meio de profundidade, todo envolto em capim, que começava em suas margens indo até o fundo de seu leito. Suas águas límpidas e transparentes possuíam um gosto leve de capim. Sua vazão era caudalosa e forte. Para chegar ao local existia um pequeno carreiro, que atravessava o córrego auxiliado por um pontilhão de madeira e seguia até uma estrada que ficava a frente. Como última informação sobre o riacho é importante destacar, que a origem da água era desconhecida, bem como, o que afluía nela pelo caminho, mas era testada e aprovada pela população do local. Era garantido que água transparente daquele jeito, só podia ser sinal de água limpa e poderia ser bebida tranquilamente. A família que residia na casa acima descrita usava essa fonte para cozinhar, beber, lavar roupas e tomar banho naquelas bacias gigantes de alumínio.

Tudo era deserto, quase sem vegetação (além do capim e das plantas rasteiras, que pareciam estar ali à duras penas). Esses poucos exemplares tinham aquele aspecto morto.

Existiam outras casas, similares à descrita, espalhadas por todo local. Em tempo de calor era insuportável, fervia o sangue, quando era frio ele congelava nas veias. Lugarzinho sem meio termo era aquele: o extremo era a regra.

Na casa em questão vivia uma família de quatro pessoas: o casal composto do pai e da mãe, dois filhos, sendo um menino mais velho, com cerca de quatro anos de idade e uma menina com poucos meses de vida. Sobreviviam como dava. Com pouca variedade de comida, as refeições eram compostas de um café da manhã preto adoçado com açúcar cristal e de pão feito em casa às vezes lambuzado de um pouco de margarina (gordura de origem vegetal). No almoço, quase nunca faltava arroz e feijão, às vezes ovo frito e muito raramente tinha-se o acompanhamento de carne. O jantar seguia os moldes do almoço.

O financeiro, como narrado acima, não era muito abastado, porém a vida familiar, moral e emocional daquelas pessoas, essa sim, era muito pior. Pai dependente de álcool, pouco estudo, rude e sem nenhum apreço pela esposa e filho. Muitas traições, agressões, brigas e instabilidade. Nisso eram abundantes.

A mãe por sua vez não era de todo mal, mas quando tinha acessos de raiva batia principalmente no filho mais velho sem escolher parte do corpo, como se diz popularmente: do pescoço para baixo é tudo canela. Também contava com pouco estudo, uma moralidade duvidosa, muita falta de controle quando o assunto era raiva e frustração.

Somado a tudo isso, ambos os pais aprenderam em suas respectivas famílias, que filhos eram educados na base da bordoada. Dessa forma, tudo era motivo para educar principalmente o mais velho.

A menina recém-nascida, por obvio, não poderia contribuir nos afazeres domésticos, mas um baita piá com quase cinco anos de idade ficar sem trabalhar e comer de graça, era uma vergonha!

Dessa forma o filho ajudava em algumas tarefas. O menino era magro. Mais muito magro! Cabelos castanhos claro, com orelhas e cabeça que se destacavam, por conta de sua magreza. Uma pele clarinha. Seus olhos eram amendoados, às vezes puxando para o verde. Um sorriso bonito, apesar de sorrir pouco. Era quieto e introspectivo, fraco, mas queria ser forte. Mesmo naquela situação vivida temia perder a família e ficar só no mundo. Pensava que não sobreviveria sem eles. Mal sabia ele que continuava vivo apesar deles.

Dentre as tarefas que o garoto exercia buscar água era a que mais gostava. Apanhava em cada uma das mãos um galão de tinta, desses de três litros e meio. Saía os balançando pelo carreiro que dava acesso ao pequeno córrego. Para aquele menino imaginativo (buscava na fantasia uma fuga daquela realidade) andar por aquele local deserto, com capim alto por todos os lados, era uma excursão até uma floresta. Onde pequenos e fantásticos seres se escondiam em meio à vegetação rasteira, para observá-lo. Quem sabe um dia poderia até encontrar um valioso tesouro escondido em algum lugar. Em poucas palavras: uma grande aventura.

Em uma dessas excursões, que fazia até aquele grande rio caudaloso, com cerca de um metro e meio de profundidade e três metros de largura. Saiu pelo carreiro com os dois galões vazios na mão esquerda, em sua mão direita levava um pedaço de madeira, que um dia fora um galho de laranjeira, com o qual entrava em combate com o mato mais alto que existia ali. Depois de algum tempo chegou à sanga e ao pontilhão que a cruzava. Soltou o pedaço de madeira, segurou com a mão direita, pela alça de um dos galões, se ajoelhou sobre o pontilhão, projetou o corpo para baixo até que o galão pudesse alcançar a água. Como criava suas brincadeiras naquelas coisas comuns para a maioria das pessoas, percebeu que o barulho produzido quando a lata batia na água, fazia um som diferente e começou a bater com a lata na água em um movimento de vai e vem.

Em um desses golpes desferidos, o riacho que já cansara aquela altura, das agressões sofridas, encheu o recipiente com sua água, A lata pesou, o garoto foi pego de surpresa e não soltou a alça do galão. Foi puxado para dentro d’água. Era pouca e não muito profunda para alguém que tivesse mais de um metro e meio de altura, mas para ele era um oceano. Gritou até cansar! Debateu-se até cansar! O riacho não se cansou. Foi o levando por diante em rodopios frenéticos. Ele só pensava na coça, dessa forma não largava o galão. Começou a sentir a paz e a leveza de sono tranquilo em cama aconchegante e, deixou que o rio o conduzisse.

A mãe escutou os gritos e correu pelo caminho (apesar de seus pesares era mãe) buscando saber o que acontecia com o garoto. No meio do caminho encontrou o filho que vinha aos berros, descalço, molhado dos pés á cabeça e com os dois galões cheios de água nas mãos. O susto havia passado. Uma trovoada de palavrões e xingamentos saíram da boca da mãe, só para anunciar a chuva de bofetões que caíram torrencialmente sobre o sobrevivente.

O riacho conduziu o menino pelo seu leito por cerca de nove metros, ponto exato onde ele conseguiu sair na margem oposta, com uma das latinhas na mão. Veio seguindo a margem até o pontilhão e antes que pudessem detê-lo o atravessou de volta. Apanhou a segunda latinha a encheu de água e seguiu aos berros para casa.

A vida continuou daquele jeitinho. Sempre igual àquilo que foi. O menino fazia suas tarefas e recebia educação. Um dia ficou responsável pela irmã que começou a chorar. Logo pensou: é fome! Correu, apanhou um pedaço de pão seco e o colocou na boca da menina. A mãe que lavava roupas na parte externa da casa percebeu que a filha se engasgava, correu para ver o que acontecia e se deparou com a boca da menina obstruída pelo pedaço de pão. Ficou descontrolada. Apanhou a filha nos braços e saiu porta a fora.

Em uma noite o menino deitou em sua cama. Daquelas que tem o colchão feito de tiras de borracha preta, entrelaçadas e pressas a um quadro de madeira, recobertas por espuma e tecido. A noite era de lua cheia e a luz entrava pelas frestas do telhado. Não sabe se dormiu. Mas repentinamente se viu em um lugar lamacento. Com estradas lamacentas, que subiam e desciam. Local ermo sem nenhuma vegetação, com casas iguais a sua, porém sem o vermelho do chão. Naquele local estranho só o cinza prosperava. O tempo era cinza com o céu fechado, como se fosse dia de inverno que se firmara logo depois de algum tempo de chuva.

Estava parado em frente a uma casa e sentia muito medo. Ao longe avistou mulheres vestidas de preto (pareciam bruxas). Elas não caminhavam, marchavam em sua direção pelas subidas e descidas do caminho. Uma delas se destacava a frente das demais: cabelos longos e grisalhos, nariz aquilino, olhos negros com um rosto que não era feio, era normal, vestida de preto com um capuz da mesma cor cobrindo a cabeça. Ele soube imediatamente que seria capturado e levado dali por elas. Não pensou duas vezes, entrou na casa e fechou a porta com uma tranca de madeira. As mulheres cercaram a construção e começaram a murmurar algo copiosa e continuamente. Batiam nas paredes, nas janelas e forçavam a porta. O menino gritou por socorro. Foi acordado com o pai que o segurava pelo colarinho e gritava:

- Djanho! O que é isso? Cale a boca coisa loco!

Depois disso foi deixado sozinho e chorando na cama. Acabando por fim a adormecer.

Certo dia, quando acordou, percebeu que a casa estava rodeada de água. Era uma grande enchente que se iniciara. A mãe encaixotava os poucos pertences que possuíam de forma apressada, segurando a filha no colo. O menino saiu e foi até a beira da água que circundava o local. Viu um minhocão que fugia da inundação, pegou um graveto de madeira e começou a brincar com o animal que se contorcia. Ficou ali de cócoras durante algum tempo cutucando o bicho com o gravetinho.

Depois de certo tempo decidiu chamar a mãe para ver o animal que encontrara. Adentrou apressado ao interior da residência e gritou:

- Mãe adivinhe o que eu achei?

Como não obteve resposta prosseguiu:

-Achei um minhocão na beira da água! Acho que quer entrar aqui em casa. Venha ver.

Saiu correndo para fora e voltou ver o animal.

A mãe saiu apresada com a filha nos braços e foi apanhar as roupas que estavam no varal. Quando olhou para beira da água gritou:

-Meu Deus! Socorro! Vizinho acuda! Uma cobra.

Os vizinhos que também se preparavam para abandonar suas casas, antes que o nível da água não mais permitisse, saíram em auxilio da mulher, mais nada encontraram. Acabaram por concluir que os gritos deveriam ter afugentado o animal.

Depois desse fato o menino ciente de suas obrigações apanhou seus galões de tinta e foi até o córrego, apanhou a água e retornou. Ficou surpreso, um tanto quanto desolado quando encontrou a casa vazia e rodeada de água. Sem os pais, sem a irmã e despida da pouca mobília que ornamentava o local. Tudo deserto, como sempre o foi.

Olhou um pouco mais a frente, em direção ao lago abandonado, que agora tinha se juntado à água que invadia aos poucos o local. Percebeu então que a única pessoa que restara ali, parada à beira da água, vestida de preto, com aquele jeito de bruxa, com seus olhos negros e penetrantes fixos nele, era aquela mulher, que vinha a frente das demais, naquela noite de pesadelo. Porém nessa ocasião não o amedrontava, pelo contrário, lhe transmitia um sentimento de conforto, de segurança e de afeto nunca por ele sentido antes. Olhou para ele e estendeu-lhe a mão direita, como quem diz:

- Venha caminhar comigo!