Ourobouros

Alice estava cansada da vida que levou. Abusos, vilipêndio, descaso, desprezo, abandono, depressão. Decidida a por um fim ao seu proprio sofrimento, Alice decide dar cabo da própria vida atirando-se do último andar do edificio onde trabalhara. "Não vão nem sentir a minha falta. Claro, não sou homem, se talvez eu fosse, eles sentiriam". Desde cedo ela enfrentou dificuldades. Sua mãe morrera ao lhe dar a luz. Seu pai roubara-lhe a inocência com seguidos abusos sexuais. Seu namorado ciumento, lhe batia com frequência. Alice era menosprezada no trabalho, onde via seus colegas subirem de cargo enquanto ela não saía do lugar. A gota d'agua para ela decidir pôr fim a tudo foi o anuncio da sua demissão. Ao lembrar das dívidas que possuía, do aluguel atrasado e todo o sofrimento pelo qual passou, ela decidiu tomar as rédeas da própria desgraça e declarar, assim como fizera Nietzsche, que Deus está morto e tornar-se a sua própria deusa, senhora da vida e da morte, e dar para si mesma um final rápido e misericordioso. Alice pulou do alto do prédio, tal como um mergulhador olímpico faz numa piscina. A brisa violenta batia no seu rosto obrigando-a a fechar os olhos. Seu coração começou a acelerar como se ela estivesse correndo uma maratona. Seu cérebro desligou antes do seu corpo atingir o concreto e espalhar seus restos pela calçada. A consciência de Alice despertou com o sentimento da queda, ela sentia que caía, mas não sabia dizer pra onde, apenas não conseguia enxergar nada à sua frente. Alice pensou ter chegado ao chão quando sentira bater em algo. Estranhou a sensação de estar sendo puxada cada vez mais de encontro àquela "parede" resistente. Em um determinado momento aquele "chão" se abre e Alice sente-se sugada para o seu interior. "Pronto! O chão se abriu e me sugou, estou indo para o inferno", pensou ela quando começou a sentir que estava se partindo em mil pedaços. Não conseguia identificar o próprio corpo. "Será que estou no inferno? Que Deus é esse que além de não nos ajudar em vida, ainda nos condena a um sofrimento eterno depois da morte?". A sensação de despedaçamento deu lugar à sensação de constrição. Parecia-lhe que uma cobra se enroscara ao seu corpo e o comprimia, tal como alguem comprime um tudo de pasta de dentes pela metade. Alice começava a avistar, em meio a todo esse sofrimento e sensações, uma luz no final da escuridão que a cercava. Sentia-se pressionada e empurrada em direção a ela, numa espécie de túnel sufocante. Ao passar por ele, ela enfim conseguiu chorar e chorou copiosamente ao abrir os olhos e ver o rosto vil e repugnante do seu pai abusador. Ela ainda lembrava do que vivera e sabia que nascera de novo, para viver a sua antiga vida mais uma vez.