O Jardim

 

No início de uma tarde chuvosa em Porto Velho, capital do Estado de Rondônia, parada no “hall” do sanatório Abrigo São Lázaro, a Dra. Marthina Sthonievisck, agitava o guarda-chuva de um lado para o outro tentando escorrer a água. Vendo os esforços desajeitado da recém chegada, o Zelão, solicito auxiliar de serviços gerais, largou o rodo que usava para escorrer as poças d'água que inundavam o piso, e à guisa de cumprimento, desandou a falar:

 

-Dêxe cumigo, Dotôra! Num se apoquente naum e corra inté o banhêro e vá se secá! Cabei de colocá toalha de papel lá,num sabe?

 

-Obrigada, Zelão! Você, como sempre, muito gentil! -  e com passinhos miúdos e apressados, caminhou em direção à toalete.

 

A Dra. Marthina, psicóloga que prestava assistência voluntária aos enfermos, doentes terminais e familiares dos pacientes na casa de apoio, minutos depois voltou e passou direto para a enfermaria. Sua agenda estava cheia, e a chuva intermitente e o trânsito caótico a atrasara consideravelmente.

 

Na entrada da enfermaria, o enfermeiro Ofélio, um tipo caladão, taciturno e de maus bofes, respondeu ao “Boa Tarde!” da doutora com uns grunhidos quase ininteligíveis:

 

-Tem paciente novo. ‘Tá lá nos fundo!

 

A doutora apenas assentiu com um leve movimento de cabeça; depois, saiu caminhando por entre os leitos. Sorrindo, ora conversava brevemente com um enfermo, ora demorava um pouco mais com outro paciente. 

 

Em frente ao último paciente da agenda, um idoso portador de doença terminal, a Dra. Marthina ficou alguns minutos ouvindo, penalizada, os reclames de sempre. “Meu fio parecesque esqueceu d’eu, dotôra! Desde semana passada que num aparece!” - A psicóloga, para conforto do paciente, argumentou algumas possíveis justificativas para a ausência do filho ingrato e anotou uma recomendação na tabuleta pendurada na cama, que dessem um ansiolítico para atenuar a ansiedade do ancião.

 

Com o término das visitas agendadas, a Dra. Marthina concentrou a atenção no paciente recém chegado.

 

Ele estava lá, no último leito da enfermaria, isolado! Era como se o paciente fosse portador de uma doença extremamente contagiosa. Quando na verdade, o recém chegado, de longe e num rápido vislumbre, aparentava uma grave paralisia muscular. Os membros inferiores, encolhidos e caídos de lado, estavam inertes. Os membros superiores aparentavam certa rigidez, tendo as mãos com os dedos curvados como se fossem garras, semi-fechadas sobre o tórax. Duas mangueirinhas translúcidas, introduzidas nas narinas, auxiliavam a respiração.

 

Um frêmito de irritação eriçou-lhe os pelos da nuca. Ela nunca entendeu a razão do fenômeno. Quando se irritava, os pelos da nuca arrepiavam.

 

Com as sobrancelhas franzidas, um vinco na testa e os lábios contraídos, a Doutora fuzilou o enfermeiro Ofélio com um olhar furibundo. “Tipinho insensível!” - murmurou entredentes. Com passos silenciosos caminhou em direção ao enfermo. Antes de qualquer comentário, a doutora pegou o prontuário pendurado em um gancho na grade da cama.

 

Acima da relação medicamentosa e indicações de cuidados com o paciente, estavam os dados sucintos de identificação.

 

JOSÉ LINS PALHARES

Idade: 45 anos

Ingresso: 02.05.2017

Portador de E.L.A

Estágio: Rigidez Muscular Aguda / Dificuldade de comunicação e respiratória

 

Com extrema delicadeza a Dra. inclinou-se sobre o leito do enfermo para melhor observá-lo. E o que viu, contraiu-lhe o estômago.

 

O paciente, imóvel na cama e com o olhar fixo no teto, desviou os olhos para a mulher postada ao seu lado e ficou um longo tempo apenas fitando-a. A psicóloga olhou-o de volta nos fundos dos olhos. E o que viu, deixou-a consternada. O canto dos olhos do homem prostrado à sua frente estavam caídos. As bochechas lívidas da face formavam rugas do tipo "bigode chinês". A boca com os lábios contraídos, denotavam angústia, dor e desespero.

 

No entanto, o que mais chamou a atenção da psicóloga, foram as formigas que perambulavam sobre o peito, pescoço e narinas do paciente. Os insetos recolhiam migalhas de pão ou bolachas com que tinham alimentado ou tentado alimentar o doente.

 

O cuidador, enfermeiro ou auxiliar, sequer tinha se dado ao trabalho de limpar o pobre homem. O descaso era revoltante.

 

Piedosamente a Dra Marthina recolheu as formigas que infestavam o doente, limpou a sujeira dos restos de comida, ajeitou os travesseiros, retirou o lençol e sacudiu-o para espanejar as migalhas. Após a rápida higiene e acomodação do doente e do leito, a Dra voltou toda a sua atenção para o enfermo.

 

Dos cantos dos olhos do acamado, escorriam duas grossas lágrimas. A psicóloga, a despeito de todo o treinamento e experiência, sentiu o coração partir ao meio. E comovida, apresentou-se:

 

-Olá, José! Meu nome é Marthina Sthonievisck, sou psicóloga e meu trabalho aqui é para auxiliar a Casa de Apoio no tratamento dos hóspedes.

 

 O paciente, gaguejando, apenas murmurou um nome, quase inaudível.

 

-Pa.. pa.. palha…res!

 

A Dra. Marthina aproximou o ouvido da boca do paciente:

 

-Desculpe-me! Não entendi…

 

O enfermo, com extrema dificuldade para se expressar em razão do estado avançado da doença, respirou fundo e sussurrou um nome e uma pequena frase:

 

-Palhares… Me… me chame de… de Palhares!

 

-Palhares? Entendi! Você quer que eu o chame de Palhares? Ok!

 

O paciente piscou, num claro indicativo de assentimento.

 

Entabulada a comunicação inicial, a doutora postou-se ao lado da cabeceira da cama, e mais à vontade, iniciou a primeira sessão:

 

-Palhares, vamos combinar o seguinte… Ao que parece, hoje, você está com dificuldade de falar. Então, de início, vou fazer pequenas perguntas… Se você concordar, pisque uma vez; se não, duas vezes… Combinado? - o paciente piscou uma vez. - A doutora sorriu!

 

-Então, vamos lá… Você tem dificuldade de ouvir? Duas piscadas! Sua dificuldade de falar, é permanente? Duas piscadas! É ocasional? Uma piscada! - A doutora sorriu novamente.

 

Depois de mais algumas perguntas e respostas com uma ou duas piscadelas, a Dra. Marthina deu-se por satisfeita; e, antes de se despedir, informou que voltaria dentro de dois dias. O paciente fez um esgar a guisa de sorriso e piscou uma vez.

 

Depois dessa primeira sessão, nas semanas seguintes, criou-se a rotina de duas visitas semanais. Em alguns encontros, o paciente se comunicava apenas piscando “sim” ou “não”. Em outras, o enfermo, com extrema dificuldade, conseguia articular algumas frases mais longas. Com o tempo, a doutora aprendeu a se comunicar, mais por leitura labial do que por audição.

 

Ao longo das sessões, Palhares, que de início mostrou-se arredio, reservado e com nuances de depressão, certo dia externou o que mais o atormentava:

 

-Dra. Marthina, eu fui uma criança normal, obediente... Na adolescência, fui um garoto cordato e generoso. Adulto, nunca fiz mal a ninguém… Diga-me, Doutora! O que eu fiz de tão ruim para viver assim?

 

A doutora olhou com ternura para o paciente e buscou nos escaninhos da memória, no aprendizado de sua experiência e nos ensinamentos dos grandes mestres enfileirados nos livros de sua vasta biblioteca, palavras e atos de conforto para atenuar as angústias atrozes que fustigavam aquele ser.

 

Depois de aplicar algumas técnicas de relaxamento, o paciente deu a impressão de ter se acalmado. Fechou os olhos e não falou mais nada.

 

Depois desse desabafo, Palhares não retornou mais ao assunto.

 

Tudo transcorria relativamente bem, quando em certa sessão, Palhares fez um estranho pedido.

 

-Dra Marthina, a senhora pode me fazer um favor?

-Claro, Palhares! Se estiver ao meu alcance, é só pedir!

-Doutora, na próxima sessão a senhora traz para mim, um saquinho de "Formicida Tatu”?

-Uééé…!?!?!? Isso que você está me pedindo, não é veneno? Veneno para matar rato?

-Correto, Doutora!

-E para que você quer veneno de rato, Palhares?

-Para me libertar dessa prisão, Doutora! Para sair dessa cama e ser livre… Viver!

 

A Dra. Marthina franziu as sobrancelhas e semicerrou os olhos, intrigada ao último grau com o inusitado do pedido. Aquele paciente vivia angustiado com a sua condição de saúde e relutava sobremaneira na aceitação da doença; essa barreira emocional, impedia-o de obter algum conforto mental e espiritual, achando que a sua doença era um injusto castigo do Criador. No entanto, até aquele momento, nunca havia manifestado qualquer desejo pela eutanásia.

 

-Palhares, a tua enfermidade é terrível… Eu sei! Mas você está vivo, Palhares!

-Vivo como, Doutora? Preso neste corpo encarquilhado… Imóvel nesta cama? Doutora, o meu corpo já está morto… Morto!!!! - e prosseguiu - Doutora, a única coisa viva em mim, é a minha mente. E eu quero que a minha mente se integre ao Universo… - após uma pausa, como o olhar fixo na mulher estupefata que o olhava de volta, peremptoriamente, indagou - E aí Doutora, a senhora vai ajudar a me libertar…!?!? Vai sim, não vai, Doutora?

 

Doutora Marthina pigarreou, colocou as mãos sobre o colo e cruzou os dedos. - quando sentia certo embaraço ou nervosismo, o cacoete a ajudava a disfarçar - Depois, esboçou um sorriso, olhou para o relógio e falou:

 

-Palhares, infelizmente nosso tempo acabou. Mas vamos fazer o seguinte… Para a próxima sessão, vou pensar sobre o assunto e sugiro que você também o pondere… Combinado? Quem sabe a gente não consegue chegar a um acordo, não é?

 

Palhares anuiu piscando apenas uma vez. A doutora Marthina ajeitou os travesseiros e arrumou os lençóis novamente; com a ponta dos dedos retirou uma migalha esquecida no pescoço do enfermo, sorriu, e com um esforço sobrehumano para aparentar segurança, caminhou com passos firmes para a porta de saída.

 

-o-

 

Dias depois, um pouco antes da hora marcada para a sessão, Palhares com o canto dos olhos, vislumbrou a sombra da doutora Marthina se aproximando do leito.

 

Quando a psicóloga postou-se ao lado do leito, o sorriso que pairava em seus lábios desvaneceu-se. Novamente, o queixo, pescoço e peito do paciente estavam coalhados de farelos e restos de comida. Minúsculas formigas perambulavam pelo peito, pescoço e face do enfermo. Apurando a vista, a doutora percebeu que algumas formigas saiam-lhe das narinas.

 

Revoltada com o que viu, a psicóloga, pisando duro, caminhou em direção ao enfermeiro Ofélio. Instintos homicidas permeando seus pensamentos. No entanto, a meio caminho, percebeu que se desse as merecidas descomposturas no funcionário relapso e irresponsável, quem na verdade seria prejudicado seria o Palhares, uma vez que o energúmeno do servidor se vingaria abusando ainda mais do doente. O melhor seria solicitar que a Direção da Casa de Repouso o transferisse de setor - analisou.

 

Respirando fundo várias vezes para serenar a tempestade interior, Dra. Marthina se aproximou do leito, curvou-se sobre o doente, e pacientemente começou a limpeza. Primeiro foi recolhendo e esmagando as formigas uma a uma. Após o quê, limpou o peito e o pescoço do enfermo; em seguida, limpou e arrumou os lençóis. Imóvel como sempre, Palhares apenas olhava fixamente para o teto. A face imutável, contraída. Sua aparência era sempre a mesma; de alguém permanentemente mal humorado.

 

-Bom dia, Palhares! Tudo bem? - como resposta, a doutora recebeu de volta um olhar fixo e sobrancelhas contraídas; e para tentar descontrair, a doutora perguntou em seguida - E aí, Palhares, está conseguindo falar ou vamos bater um papo piscando?

 

A voz do paciente saiu gutural e baixa, quase inaudível:

-E aí, Doutora, tem uma resposta?

-Quase, Palhares! Mas antes vamos conversar sobre alguns assuntos, bem como fazer uns exercícios para acalmar sua ansiedade e prepará-lo para a passagem… E aí, quando eu decidir que você está pronto, concluímos o nosso assunto. Concorda?

 

Palhares ainda com o rosto contraído e sobrancelhas franzidas, ficou um longo tempo olhando fixamente para a psicóloga. Depois, comentou com voz cavernosa e carregada de sarcasmo:

 

-E existe outro jeito?!?!

 

Sorrindo candidamente, a Dra. Marthina começou a sessão explicando que o paciente, de início, teria que aprender alguns exercícios respiratórios para reduzir o ritmo cardíaco, e consequentemente, o estresse. E que essa condição o auxiliaria num sono mais tranquilo.

 

Palhares ouvia sem dizer nada. Apenas a olhava fixamente. Face contraída e sobrancelhas franzidas.

 

A Dra. Marthina se inclinou sobre o paciente e sussurrou:

 

-Palhares, como parte do nosso acordo, você concorda com essa nova fase da terapia? O  paciente assentiu piscando uma vez. -Ótimo!

 

A psicóloga continuou a explicação da nova fase terápica. Falou que para facilitar os  exercícios respiratórios fisioterapêutico, ele teria que efetuar uma Visualização Criativa. Diante do olhar interrogativo do Palhares, ela explicitou que a “Visualização Criativa” nada mais era que a projeção mental de um lugar ou local que lhe parecesse relaxante, confortável. Um ambiente que o deixasse à vontade e tranquilo, feliz até! Os olhos fixos na doutora piscaram uma vez.

 

A doutora prosseguiu dizendo que uma vez determinado o lugar, ele, Palhares, sozinho ou com a sua assistência, deveria passear, sentar ou deitar. Resumindo, tudo iria depender da formatação do ambiente escolhido, para então, emocionalmente tranquilo, mais uma vez efetuar, junto com ela ou sozinho, o expurgo de todo e qualquer desconforto emocional do seu EU…

 

O paciente com voz gutural e quase inaudível, quebrou o silêncio para interrompê-la:

 

-Doutora, o produto que pedi, dispensaria tudo isso!

-Palhares, temos um acordo ou não? - Uma piscada! - Então… O que eu estou fazendo com você, é tentar prepará-lo para a nova etapa da sua existência. Fazê-lo acertar as contas com seus desacertos, deixá-lo leve e tranquilo para viver em outro plano. Ou você quer levar algum resquício desagradável da sua atual existência? Duas piscadas!

 

Após a explicação com leve tom de repreensão, a Dra. Marthina prosseguiu com as instruções preliminares. Explicou que os exercícios respiratórios para controle do batimento cardíaco o ajudariam a fazer uma projeção astral, ou seja, o ajudaria a projetar o seu ânima e/ou alma, como era comumente conhecida, para o recanto acolhedor escolhido por ele. Finalizou explicando que era totalmente imprescindível a total dedicação e concentração nos exercícios respiratórios para auxiliá-lo na projeção. Recebeu de volta uma piscada.

 

-Muito bem, Palhares! Para começar, feche os olhos e inspire profundamente. Ótimo! Agora, solte o ar lentamente… Repita! Inspire e expire contando mentalmente até dez… Inspire, expire repetindo a contagem…

 

Com a face tensa e sobrancelhas franzidas, o paciente inspirava e expirava várias vezes durante alguns minutos sob a meticulosa orientação da psicóloga. Fazia pequenas pausas e reiniciava o exercício. Depois de algum tempo, a Dra. Marthina olhou para o relógio e falou:

 

-Ṕalhares, nosso tempo acabou! Antes de ir embora, eu preciso saber se o nosso acordo está de pé. Uma piscada! -Ótimo! Continue fazendo os exercícios para adquirir a prática. E num futuro bem próximo, juntos, vamos montar um lugar do seu agrado para projetar o seu ânima. E mais, Palhares, além do controle cardíaco, vamos dar os primeiros passos da iniciação de projeção astral. Ok?

 

Do rosto sempre tenso, a Dra Marthina recebeu uma piscada.

 

-o-

 

Os exercícios continuaram por três semanas. Na quarta semana, quando a Dra Marthina aproximou-se do leito do Palhares, ficou preocupada com o estado do paciente. Embora ainda continuasse com os músculos faciais contraídos e a testa franzida, o enfermo estava de olhos fechados e a respiração, sempre ruidosa, estava inaudível. Imediatamente a psicóloga segurou um dos pulsos para sentir o batimento cardíaco. Fraquíssimo!

 

Aproximou a boca do ouvido do paciente e falou pausadamente, em tom de pergunta:

 

-Palhares…?!?!? - lentamente o homem abriu os olhos e respondeu com voz quase normal.

-Siiiim!?!?!

-Cruz credo, Palhares! Pensei que você tinha partido e nem tinha me esperado para a despedida…

-Ainda não, Doutora! No entanto, desde a última sessão, tenho conseguido entrar em profunda concentração… Aliás, isso tem me permitido dormir com razoável normalidade.

-Palhares, devo confessar… Estou muito surpresa com você. Confesso mesmo! Não esperava um progresso tão grande. Seu batimento cardíaco estava quase zero. Esse estágio era para acontecer somente entre seis a doze meses… Você conseguiu em apenas três semanas, Palhares! Incrível! Maravilhoso! Fantástico!

 

Não bastasse a agradável surpresa do incrível progresso de seu paciente, a Dra. Marthina percebeu que não existia mais farelos e restos de alimento sobre o peito do Palhares. Os lençóis estavam limpos e arrumados. Os travesseiros, então… Adequadamente posicionados.

 

-Ué??? O que aconteceu com os eternos farelos espalhados pelo seu peito, Palhares?

-Os exercícios respiratórios, Doutora! Eles permitiram-me falar com razoável nitidez. Então, pedi para o outro enfermeiro chamar o Diretor e reclamei. As coisas nos últimos dias ficaram melhores. O Ofélio não gostou… E daí?

-Tudo bem, Palhares! Então, vamos começar a próxima fase do nosso acordo. Ok?

 

Palhares preferiu piscar uma vez.

 

Compenetrada, a psicóloga perguntou ao paciente se ele estava, realmente, disposto a começar o treinamento para a Projeção Astral. Recebeu como resposta, uma piscada! Muito bem, a doutora exclamou. Então, ela explicou que o ideal seria o Palhares, após as orientações iniciais, começar os exercícios na madrugada do dia seguinte, posto que ele necessitava de silêncio, paz e estado de dormência ocasionado pelo sono. Mais uma piscada.

 

A Dra. Marthina então, explicou os exercícios iniciais:

 

-Palhares, comece pelos exercícios respiratórios. Feche os olhos, inspire e expire contando até dez como sempre. Depois, imagine e concentre-se no seu corpo totalmente estendido. Procure esquecer os músculos contraídos pela doença e tente visualizar sua forma corpórea começando a relaxar - uma piscada -, e comece pelos ombros… Descontraia-os! Em seguida, desça para os braços e prolongue pelos antebraços, mãos e dedos - mais uma piscada -, em seguida, relaxe o tórax, o abdome e a pelve. Continue descendo e visualize os músculos das coxas, panturrilhas e solas dos pés. Por fim, os dedos!

 

Palhares piscou uma vez e em seguida comentou.

 

-Vou tentar, Doutora! Vou fazer exatamente como a senhora está orientando. Vou tentar!

-Palhares, esse exercício é o início de uma série que vamos fazer. Por isso, eu preciso saber se você vai estar comprometido com ele… Você vai estar, Palhares?

 

Desta vez o paciente não piscou. Apenas olhou fixamente para a psicóloga e comentou lacônico:

 

-Estou!

-Muito bem… Como consequência do exercício respiratório em junção ao relaxamento, daremos início à segunda fase. Essa etapa consiste na projeção inicial de uma parte do seu corpo astral. Pode ser a mão, o pé ou os dedos da mão ou do pé.

 

A Dra. fez uma pausa para beber água e continuou:

 

-Sugiro que comece pela mão, Palhares! Me parece mais fácil… E lembre-se, essa parte exige concentração total. Vais ficar em estado sonolento, quase hipnótico. Isto posto, concentre-se no membro escolhido até conseguir visualizá-lo, ainda que continue de olhos cerrados. Se conseguir, fixe sua atenção apenas nele e limpe sua mente de todos os outros pensamentos. Com a mente limpa e concentrada, tente um movimento. Se conseguir, tente abrir e fechar os dedos. Mova a mão de um lado para o outro até que lhe pareça que é a sua mão inerte sobre o seu peito que está se movendo. Isto feito, expanda a projeção para o restante do corpo.

-E se eu conseguir, Doutora? Qual o próximo passo?

-O próximo passo é levá-lo para o lugar que você escolheu para lhe acolher. Nele, você pode livrar-se de todo e quaisquer empecilhos que possam turvar a limpidez de sua aura astral. Depois disso, Palhares, creio que você estará pronto para partir… Concorda?

 

A Dra. Marthina recebeu como resposta, apenas uma demorada piscada; olhou o relógio e deu por encerrada a sessão.

 

-Acabou o nosso tempo, Palhares! Na próxima visita, vamos analisar o seu progresso, ok? Mais uma piscada. Desta vez, quase sutil…

 

-o-

 

Na semana seguinte, a Dra. Marthina fez uma viagem inesperada e não houve sessão. Na segunda semana, a terapia ocorreu ao final da tarde.

 

A Dra. Marthina cumprimentou o novo enfermeiro - Boa Tarde! O senhor é novo aqui, não é? O novo funcionário olhando para o crachá da inesperada visitante, respondeu:

 

-Sou sim,  Doutora! E o meu nome é Licurgo José, mas pode me chamar de Zé. É mais fácil, Dra. Marthina!

-Ok, Seu Zé! Eu costumo fazer minhas visitas no horário matutino, à exceção de hoje. E então, Seu Zé, estão todos bem, alguma novidade durante a minha ausência?

-Não, Doutora, tudo na mesma! Uns melhoraram, outros pioraram… Mas continuam vivos que é o que importa, não é, Doutora?

-Correto, Seu Zé! Bem… Vou começar minhas visitas!

 

Depois de conversar por alguns minutos com todos os pacientes, a psicóloga se aproximou do último leito da enfermaria. O paciente estava do mesmo jeito da última visita. Face severa, testa enrugada, sobrancelhas franzidas e rugas tipo “bigode chinês”. Como da outra vez, o tórax do paciente, sempre agitado em busca da respiração, estava parado. A psicóloga, preocupada mais uma vez, aferiu a pulsação e a respiração. Estavam quase inaudíveis.

 

A Dra. Marthina inclinou-se, aproximou a boca do ouvido do paciente e chamou, murmurando:

 

-Palhares… Palhares… Estais me ouvindo, Palhares?

 

O paciente fez um espasmo imperceptível no pescoço e tremelicou as pálpebras. Após alguns segundos que pareceram minutos, por fim, abriu os olhos, virou as pupilas em direção à psicóloga e piscou uma vez.

 

-Santo Deus, Palhares! Virou costume, agora? Assim você vai acabar me matando de susto, viu?

 

Palhares apenas a olhou fixamente e piscou duas vezes.

 

-E aí, Palhares, Estais podendo falar ou hoje vamos nos comunicar por sinais e linguagem labial?

-Dra, os exercícios respiratórios estão ajudando… Posso falar… Devagar, mas posso!

-Ótimo! Então me conta… Conseguiu algum progresso com os exercícios que eu indiquei. Respiração e projeção?

 

Então o paciente, falando devagar mas constante, disse que os exercícios respiratórios o haviam ajudado a dormir e suportar as dores que o acometiam. Falou que tinha iniciado os exercícios de projeção e que já estava conseguindo projetar a movimentação dos braços, pernas, mãos e pés. Não tinha conseguido ainda projetar o corpo astral para fora do corpo carnal; mas, deitado, conseguia esticar e movimentar os braços e pernas do corpo astral.

 

A Dra. Marthina, de olhos arregalados, estava deverasmente surpresa com o extraordinário progresso do paciente. Perguntou-lhe como era que ele havia conseguido aquele progresso em tão pouco tempo. Ao que o Palhares, com uma inusitada ponta de humor, respondeu que no período de ausência da doutora, não havia perdido tempo em festas ou peladas de futebol. Na falta do que fazer, passava os dias concentrado nos exercícios. Parava somente quando o novo enfermeiro, o Zé, trazia-lhe as refeições e o alimentava. E em seguida o limpava e ajeitava lençóis e travesseiros. Falou também que após o bom enfermeiro retirar-se, retornava aos exercícios respiratórios e astrais. O resultado era o que ele estava informando.

 

Com um sorriso de satisfação, a Dra Marthina puxou um banquinho, sentou-se ao lado do leito e comentou, sempre sorrindo:

 

-Então, meu estimado e dedicado Palhares, podemos começar a procurar o lugar para onde você vai projetar o corpo astral. Esse recanto vai ser montado por você. Você que vai construir o lugar mais aprazível que você puder imaginar. Exemplo: pode ser nas estrelas, pode ser uma ilha, um resort no Caribe, nas Ilhas Polinésias, pode ser até o Éden… Não importa onde seja. O importante é que você se sinta bem… Confortável… Livre para fazer o que quiser… Dê asas à sua imaginação!

-Doutora, eu não quero nada disso. Eu quero, ou melhor, eu imagino um lugar simples… Um lugar parecido com um jardim. Nesse jardim, o ambiente é formado por um gramado pontilhado de flores de todas as cores… Nele tem uma árvore exótica… Um flamboyant enxertado com ipê amarelo. É primavera e o flamboyant está florido; sua copa vermelha está pontilhada de flores amarelas. Embaixo dessa copa extraordinária, tem um banco de madeira pintado de branco. Ao fundo, tem um bosque com uma cascata que jorra sobre um lago. Dá para ouvir o marulhar das águas. O céu é límpido e pássaros gorjeiam e voam por todos os lados. E no meio desse Éden, eu posso andar, correr ou simplesmente deitar e dormir uma soneca. É assim, Doutora, que eu me imagino livre desta prisão!

-Fantástico, Palhares! Que lugar lindo, esse que você descreveu… Uma curiosidade! E o banco? É para seu descanso, ou você espera encontrar ou levar alguém para desfrutar esse paraíso junto com você?

-Doutora, neste pequeno recanto, quero ficar sozinho! Apenas eu e minha liberdade… Nada mais! Estou criando este lugar para, na santa paz dele, expurgar ou incorporar de vez todos os meus fantasmas.

 

A Dra. Marthina ficou um tempo sorrindo e olhando para o Palhares, pensando… Por fim, perguntou:

 

-Palhares, você gosta de animais? Ao que o paciente respondeu que gostava de cães.

-Cães?

-Sim, Doutora! Mas não esses cães domésticos, amestrados, submissos!

-Pitbull? Você gosta de pitbulls?

-Não, doutora! De pitbull, não! Eu gosto dos lobos… São selvagens, livres e indomáveis!

 

Mais uma vez a Dra. Marthina sorriu e falou.

 

-Palhares, você sabia que todos nós temos dois lobos em nosso interior?

-Sério, doutora?

-Metaforicamente falando, sim! Essa história remonta a um antigo conceito cheyenne, uma tribo indígena norte americana. Eles acreditam que todos os homens e/ou mulheres têm dentro de si dois lobos e/ou lobas, no caso. Um representa a Luz e o outro representa as Trevas. Eles estão sempre em disputa pela predominância. Vence o mais forte. Ou seja, aquele que você mais alimenta.

-Como assim?

-As emoções que sentimos é o que os alimentam, Palhares! Bons sentimentos, generosidades e afins, deixam o Lobo da Luz mais forte, o inverso, fortalece o Lobo das Trevas. E isso, Palhares, reflete em nossas ações e atitudes.

 

Palhares, sempre de testa enrugada e sobrancelhas franzidas, ficou olhando fixamente para a psicóloga por um longo tempo; depois, desviou os olhos para o teto e perguntou:

 

-Meus lobos, Doutora, qual deles a senhora acha que está prevalecendo?

-Essa pergunta, Palhares, você e somente você pode responder. Claro, se você refletir seriamente sobre a questão, não concordas?

 

Após a resposta, a Dra. Marthina olhou para o relógio, levantou do banquinho, pegou a bolsa e ajeitando-a no ombro, falou à guisa de despedida:

 

-Palhares, pena que nosso tempo acabou!. E Palhares… Semana que vem, infelizmente, não vou poder fazer sessões, nem com você e nem com os outros. Tenho um congresso que vai tomar todo o meu tempo durante a semana. De qualquer forma, espero que no meu retorno você tenha conseguido montar o jardim à sua maneira e tenha conseguido executar a projeção.

 

Já a caminho da saída, a Dra. Marthina parou por um momento, pareceu refletir, retornou para o paciente e fez alguns comentários:

 

-Palhares! Tenho percebido que cada vez mais você reduz o batimento cardíaco, por isso, lembre-se! Existe uma linha muito tênue… De qualquer forma, acredito que em breve você poderá sentar-se no seu banco do Jardim, não é mesmo?

 

Em seguida, a Dra. Marthina, com seus passinhos miúdos, passando pela porta de saída, cumprimentou o enfermeiro novato.

 

-Até mais, Seu Zé! - e na calçada, a caminho do estacionamento, recomendou - E cuide bem dos meus pacientes, viu?

-Deixe comigo, Doutora!

 

-o-

 

Primeiro ele fechou os olhos e foi eliminando um a um todos os ruídos que lhe chegavam aos ouvidos. E à medida que mergulhava no silêncio, o batimento cardíaco ia reduzindo… Daí a algum tempo, senhor do seu ânima, ele começou a projetar o Corpo Astral. Após movimentar as mãos, abriu e fechou os dedos várias vezes. Em seguida, alongou os braços ao longo do tronco e esticou as pernas, movimentando os pés de um lado para o outro. Satisfeito com o progresso inicial, apoiou as mãos na cama e inclinou o corpo para frente num ângulo de quarenta e cinco graus; e, lentamente, virou as pernas para fora da cama. Sentado na beirada do leito, sorriu com satisfação. Depois, sempre com os olhos fechados, saiu da cama.

 

As pálpebras foram abrindo lentamente… E o que ele viu, o deixou maravilhado. Ele não estava mais na enfermaria lotada de gente gemendo e resmungando… Ele estava no seu Jardim. O encantador jardim que ele criara!

 

Estava lá.... O flamboyant enxertado com o ipê amarelo, copa de flores vermelhas com pontilhados de flores amarelas brilhando como pepitas de ouro ao sol primaveril. À sombra da exótica árvore, o banco de madeira pintado com uma tinta branca tão alva que resplandecia os raios de sol que conseguiam penetrar na densa cortina de flores da copa. Atapetando o solo, o gramado finamente aparado, estava salpicado aqui e acolá de flores rubras e douradas ondulando de um lado para o outro ao sabor de uma leve brisa que refrescava aquele recanto. Todo o lugar era guarnecido por arbusto cobertos por flores multicores umedecidas pela tênue névoa soprada pela cascata que tributava a água transparente do pequeno lago povoado por carpas e pequenos e irrequietos cardumes de lambaris prateados. O céu azul celeste e sem nuvens, emoldurava o pequeno Éden imaginado por Palhares.

 

Eufórico, o Palhares astral aspirou profundamente o doce perfume das flores que permeavam o jardim, abriu os braços e rodopiou sobre si mesmo. Depois, impávido, caminhou com passos firmes em direção ao banco à sombra do flamboyant.

 

Antes de sentar, no entanto, reparou que o seu jardim fora montado à margem de um bosque à direita da cascata. E desse bosque, ecoavam retalhos de conversas e risadas.

 

Achou estranho que houvesse pessoas naquele recanto criado por ele. Afinal, o Jardim, como não podia deixar de ser, era fruto de sua imaginação.

 

Ainda estava tentando decifrar aquele inesperado enigma, quando percebeu que alguém, semi-oculto pelas ramagens, o observava. Esfregou os olhos para ativar o canal lacrimal, umedecer as retinas e assim enxergar melhor. O que viu, o deixou de queixo caído. O observador tinha as suas características. Cabelo preto ondulado, barba mal feita, nariz aquilino, testa enrugada, sobrancelhas contraídas e lábios crispados. Era como se estivesse olhando para um espelho postado no meio da vegetação. O único detalhe que os diferenciava era a indumentária. Ele vestia camisa, calças brancas e calçava alpercatas, também brancas. Enquanto que o estranho na atalaia, trajava uma indumentária estranha, um tanto antiquada. Trazia à cabeça um chapéu de couro com as abas caídas, sem esconder o rosto. Vestia uma camisa de tecido grosseiro, mangas compridas enroladas até o antebraço peludo como o dele; as axilas estavam molhadas de suor. Calçava botas de cano alto e trazia à mão, um comprido rebenque. O tipo lembrava um antigo feitor de escravos que ele vira retratado em uma antiga novela televisiva, de nome "Escrava Isaura".

 

Intrigado, o Palhares astral caminhou apressado em direção ao estranho sujeito. O tipo, no entanto, depois de um olhar desafiador para ele, virou-se e sumiu bosque adentro.

 

Mais intrigado que curioso, com passos largos saiu no encalço do intruso. Na fralda da mataria, uma vereda abria caminho por entre as folhagens. Sem titubear, caminhou pela senda que penetrava os arvoredos. Após transpor o bosque, Palhares vislumbrou, surpreso, uma pequena Vila munida de um pomar, um plácido riacho, uma praça e um pequeno anfiteatro. Na praça, crianças brincavam de pega-pega, oscilavam em balanços, andavam de bicicletas e corriam atrás de bolas; no pomar, pessoas com cestos pendurados no braço colhiam frutos variados; no riacho, casais com crianças flutuando em canoas coloridas, remavam entre risos e brincadeiras. E no anfiteatro, um ancião parecia palestrar para uma uma numerosa plateia que o olhava com extrema atenção. Um outro detalhe chamou a atenção do visitante inesperado. Todos, sem exceção, pareciam vestir roupas de épocas diferentes.

 

Caminhou para o centro da praça e olhou para todos os lados sem conseguir vislumbrar o estranho personagem. Deu algumas voltas pelo pomar, foi à margem do riacho, e por fim, aproximou-se do anfiteatro e ficou andando de um lado para o outro examinando os rostos das pessoas sentadas nos bancos de pedra. Não viu o estranho homem. Ao que parecia, o sujeito havia se esfumado. Desaparecido no ar.

 

Sem outra alternativa, caminhou para a pracinha e sentou-se em um banco de frente para o anfiteatro. “Quem sabe o ancião palestrante, dada a sua peculiar atividade, não conheceria o estranho personagem?” - Analisou. Logo em seguida mudou de ideia e, extremamente curioso, caminhou para o anfiteatro para saber o que era que aquele ancião pregava a ponto de deixar todos os espectadores em estado quase hipnótico.

 

Depois de quase uma hora de palestra, o ancião, após cruzar as mão espalmadas sobre o peito, inclinou-se para os ouvintes. Com esse gesto, Palhares entendeu que o velho estava dando por encerrada a palestra. Fez menção de caminhar em sua direção, porém, ainda teve que esperar mais alguns intermináveis minutos. O ancião falava o nome do ouvinte, dava-lhe um afetuoso abraço e se despedia exclamando:

 

-Que a Luz seja o lume do teu caminho!

 

Observando os gestos do ancião de barba e cabelos brancos, pensou satisfeito: “Parece que eu acertei, o velho conhece todo mundo aqui, e pelo nome”.

 

Após o término dos cumprimentos, o ancião ficou sozinho recolhendo livros e papéis. Palhares se aproximou e o cumprimentou apresentando-se:

 

-Bom dia, senhor! Meu nome é Palhares, sou novo neste lugar e gostaria de saber onde estou!

-Bom dia, meu filho! Eu sei quem é você! Na verdade, não o esperávamos agora. No entanto, é muito bom tê-lo de volta. Venha, vou levá-lo até a nossa pracinha. Lá, algumas pessoas o estão aguardando para conversar. A propósito, seja bem vindo a Aruanda, a cidade da renovação espiritual.

 

-o-

 

Com seus passinhos miúdos, a Dra. Marthina se aproximou da enfermaria, olhou com estranheza para o enfermeiro Ofélio, cumprimentou-o com frieza, e de queixo erguido, passou pela porta.

 

Que será que aconteceu para esse tipinho estar de volta, meu Deus?” - Pensou enquanto caminhava para o primeiro paciente da agenda.

 

Após as visitas costumeiras, a psicóloga caminhou para os fundos da enfermaria. O leito do Palhares estava vazio. O lençol esticado, sem travesseiro e sem tabuleta. Estupefata e com uma pontinha de raiva, pensou novamente: “O estrupício nem bem voltou e as coisas já começaram a sair da rotina! Ô sujeitinho de energia negativa…!!!! Te esconjuro!

 

A psicóloga respirou fundo várias vezes tentando limpar a mente dos impropérios que tentavam sair sem controle. Abriu e fechou as mãos seguidas vezes, e com o melhor dos sorrisos falsos que conseguiu desenhar nos lábios, caminhou em direção ao enfermeiro Ofélio.

 

-Senhor Ofélio, por acaso o senhor tem idéia para onde levaram o paciente do leito dos fundos da enfermaria, o Senhor Palhares?

 

O enfermeiro Ofélio virou-se para a Dra. Marthina, encarou-a ostensivamente, e depois de algum tempo em silêncio, parou de mordiscar um palito de fósforo que retirou de entre os dentes, e por fim, dignou-se a dar uma resposta com um mal disfarçado sorriso pairando em seus lábios.

 

-Sei! ‘Tá no necrotério… Morreu hoje de manhã!

 

A Dra. Marthina acusou o golpe internamente sem mover um único músculo da face. Apenas um leve e imperceptível tremor nos lábios denotou a surpresa da notícia. E aparentando uma tranquilidade que nem de longe sentia, falou de pronto:

 

-Quero falar com ele!

 

E foi com um inusitado sentimento de vingança que viu o sorrisinho cínico sumir dos lábios do enfermeiro Ofélio.

 

-A Sra. não escutô o qui’eu disse? O cara ‘tá morto! Impacotô, dotôra!

-Mesmo assim, eu quero falar com ele! Para qual funerária o levaram?

-Pra funerária “Céu e Paz”!

 

Depois que a psicóloga saiu pisando duro, ainda que com os passinhos miúdos, o enfermeiro Ofélio mostrando o dedo médio para as costas da Dra. Marthina, vociferou:

 

-Além de chata pra’carái, é maluca de pedra!

 

-o-

 

De pé diante do esquife, em silêncio, a Dra. Marthina examinava o semblante do Palhares. Sua face, antes tão contraída em fúria e dor, estava serena. E para surpresa maior da psicóloga, parecia até que um leve sorriso estampava seus lábios.

 

Meio sério, meio brincando, a psicóloga depois de depositar com a mão, um beijo na testa do ex-paciente, murmurou, já de saída:

 

-Palhares, meu ingrato amigo, como é que você foi embora e nem se despediu de mim?

 

No estacionamento, sob o sol abrasador do meio-dia, ela sentiu que algo, furtivamente, roçava seu ombro direito. Um pouco assustada, voltou-se rapidamente, mas era apenas o galho de uma roseira. O estranho, é que na canícula do estacionamento e ar pesado pela excessiva umidade, o calor portovelhense inibia qualquer brisa, por mais leve que fosse.

 

João Pessoa-PB
Julho/2022