Corvos que dizem nunca mais

A estrada aponta a direção ao sul e eu, obediente no volante sigo estas linhas que delimitam os caminhos da civilização. Logo entro em uma ponte que corta oceanos e o infinito aparece para me rodear. Aos lados, somente águas eu vejo, em frente a estrada continua denunciando o sempiterno. De tempos em tempos viadutos saídos sabem-se lá de onde, com começo e fim fora de vista, passam por cima de mim. Quero chegar até eles, talvez sejam a saída deste lugar sem explicação, mas não vejo via de escape.

O telefone toca e interrompe meu pesadelo para iniciar outro. Minha mãe anuncia que meu pai teve um derrame e foi hospitalizado, preciso ir até o hospital da puc imediatamente. Levanto da cama em um pulo. Entro debaixo do chuveiro, nem espero a água esquentar, fica mais fácil de acordar assim. Saio rapidamente, mal enxáguo as costas e tiro o xampu. Encharco todo o banheiro, mas quem se importa? Quando eu voltar provavelmente já estará seco. Coloco uma calça jeans e visto a primeira camiseta que está na mal arrumada pilha do armário. Pego uma sacola e coloco uma muda roupa, para garantir. Saio de casa e vou para a parada. Ônibus a essa hora, vem um a cada 50 minutos no mínimo. Mal termino o pensamento e um linha 33 desponta na esquina. Está fácil demais. Entro no ônibus e lembro que não havia pegado a escova de dentes. Pro inferno, preciso chegar ao hospital logo. Coletivo vazio; cobrador senta-se ao lado do motorista, e imediatamente após eu entrar, ele pede minha passagem. Vou até a parte traseira do ônibus e me sento. Cobrador e motorista, lado a lado, não conversavam, apenas seguem em silêncio. Depois de vinte minutos de viagem eu desço na parada em frente ao hospital.

Subo as escadas correndo para encontrar minha mãe aos prantos no corredor do hospital, sendo consolada por minha irmã.

- Finalmente tu chegaste – ambas disseram em uníssono.

Tento explicar que foi o mais rápido que pude chegar e que até o ônibus, que geralmente demora quase uma hora para vir, havia chegado rápido, porém sou interrompido. Começam a me explicar o que havia ocorrido, porém, nem que tentassem um milhão de vezes eu entenderia. Tudo parecia muito confuso; eu havia sido desperto de um sonho estranho, arrancado de meu apartamento, entrado em um coletivo em plena madrugada e agora encarava uma tragédia familiar. Precisava me esforçar para manter o foco e não entender tudo como um sonho onde aceito as situações mais absurdas. O banho não funcionou como eu previra. Por certos momentos ainda não tinha certeza se era tudo realidade. Fora decidido, sem minha participação e sem meu consentimento, que eu passaria a primeira noite acompanhando meu pai. As outras noites seriam decididas depois. A mana que tomou a dianteira de tudo. Resolveu que cuidaria da mãe, cujos nervos já abalados não lhe permitiriam passar uma noite mal acomodada em um sofá de quarto de hospital. Para isso servem os homens; típico da mana. Era capaz de colocar o pai moribundo no sofá para dar a cama para a mãe. Homem está acostumado a ficar mal, ela dizia. Não protesto, não saberia o que fazer com a mãe naquele estado. E ainda ia ter que pedir para ela pagar o táxi. Pelo menos a mana tem carro.

Entro no quarto, lá está o velho deitado. Primeiramente, me assusto, parecia que não respirar, o peito dava impressão de estar imóvel. Depois, olhando com calma, vi que a respiração estava bem fraquinha, mas constante. Acomodei-me no sofá e tentei voltar a dormir. Sem sucesso. A minha fase sonolenta de querer voltar para cama só dura até 15 minutos depois que acordo. Depois desse tempo só consigo dormir após, pelo menos, 20 horas acordado. Não trouxe nada para me acompanhar durante a noite, nem um livro, nem uma bula de remédio. Não me aventurei a pedir para alguma enfermeira algo para ler, deixei-me estendido e entediado sozinho. Admirava o teto, a janela, o frigobar e o velho na cama. O que ele estaria passando no momento? Sonhava ou enfrentava breus onde o tempo só retorna quando ele acorda? Veio-me à cabeça meu sonho, da estrada infindável. Parecia assustador, mas não conseguia tirar aquilo da cabeça, eu precisava chegar no final da estrada. Talvez o pai estivesse em um lugar assim e quando encontrasse a saída, acordaria. Pensando nisso, para contrariar minhas expectativas, adormeci. Retornei à estrada. Nada havia mudado desde a última vez que estive lá. Eu sigo no volante de algum carro desconhecido. Estranho, pois nunca aprendera a dirigir. Mais um absurdo que se aceita em sonhos. Outro viaduto passa sobre minha cabeça, acompanhei-o com os olhos. Quando voltei para frente, a estrada havia mudado. Um declive surgia em minha frente e a rodovia agora adentrava uma cidade onde prédios se misturam com árvores e sem ruas perpendiculares. A estrada continuava infinita e sem via de escape. Tudo deserto, nenhuma viv’alma. O carro segue em sua velocidade constante e novamente a paisagem se repete. Prédio e árvores, prédios e árvores, predárvores onde, no topo, corvos gritam “nunca mais”. Minha mente aceita e até justifica este absurdo, “afinal todos os corvos dizem isso”.

Quando surgiu um velho no meio da estrada, muito próximo do carro, levei um susto, pensando até que ia acordar. O carro pára imediatamente sem que eu precisasse frear e minha porta se abre automaticamente. Saio e caminho até o velho. Ele veste terno e gravata pretos com camisa branca e um chapéu coco da mesma cor do terno;. tem olhos azuis e maçãs do rosto saltadas e segura na mão direita, um espelho retangular, de seu tamanho e faz gestos para que eu o mirasse. Vou até a frente do espelho e tento encontrar meu reflexo ali, mas não vejo nada, somente a estrada vazia. De repente um carro surge no espelho e me apavoro, achando que vou ser atropelado. Olho para trás onde somente se encontra o carro que eu dirigia, parado como antes. Olhei novamente para o espelho e o carro freara e a porta abrira. De dentro saíra eu e me aproximara do espelho. Afastei-me horrorizado e minha imagem continuava lá. Era um espelho com atraso. Porém, este absurdo minha mente não aceitou e tudo mudou rapidamente.

Eu já não estou mais na estrada e sim no fundo de um ônibus. Olho pela janela tentando achar prédios e árvores fundidos, porém vejo somente as ruas imundas da Capital. O mesmo motorista e o mesmo cobrador encontram-se lado a lado lá na frente e agora a realidade toma conta de tudo. Vi a parada do hospital se aproximando e pulei rapidamente para apertar o botão de parada solicitada. Desço do ônibus, sento-me na calçada tentando entender o que estava acontecendo. Parte de tudo parecia tão real e parte tão absurda. Afinal eu já estive aqui? Entro no hospital e subo correndo as escadas, porém, me dou conta que não sei qual é o quarto. Volto no balcão da entrada e peço o quarto de meu pai. A atendente sem nem sequer procura no computador informa-me que não há ninguém registrado ali com aquele nome e pede que eu me retire antes que ela chame a segurança. Desnorteado saio pela porta e começo a vagar sem rumo. Quando dou por mim, estou em frente à casa em que nasci e cresci, onde atualmente minha mãe mora. Bato na porta, sem noção de quão tarde da noite é. Minha doce criatura maternal, parecendo tão mais velha quanto realmente é, abre a porta e ordena que eu entre.

- O pai, mãe, onde ta o pai?

- Meu filho amado, você precisa aceitar a realidade, não pode continuar vagando todas as noites por aí sem rumo. Aceita o que aconteceu com teu querido pai.

- Não, mãe, eu sei que ele vai se recuperar, tem gente que se recupera totalmente de uma coisa dessas.

- Meu anjo, disso ninguém se recupera. Teu pai já morreu faz dois meses.

Sitrucian M
Enviado por Sitrucian M em 27/12/2007
Reeditado em 04/02/2017
Código do texto: T794229
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