O Mestre do Templo

Capítulo V

O Mestre do Templo

“De ouvidos te havia ouvido,

mas agora meus olhos te veem e meu coração te sente”

EU FINALMENTE ESTAVA PRONTO PARA A JORNADA. Comecei perdido e sem direção. Creio que seja desta forma que os caminhos são trilhados pelos seus adeptos. Isto é, quando todos os caminhos cursados no passado deixam de nos fazer sentido; quando os pensamentos que levamos conosco perdem o seu significado. É neste beco sem saída a que chegamos e é que surge com um muro à nossa frente, a seguinte questão brota à nossa frente: “E agora? Para onde vou?”.

— Céus! Será que estou mesmo pronto para essa jornada para dentro de mim? — Pensei, ponderando o antes e o agora.

Voltar atrás já não posso! Porque voltar é o mesmo de precipitar-me em um abismo de conhecimentos muitos e estar preso ao passado e as coisas que já não são como antes. Se não posso voltar para o passado e retificá-lo ou tampouco posso prosseguir andando para a frente, — o que devo fazer agora? — Atrás de mim há um precipício que não acho o fim. Mas leva para algum lugar dentro de mim. Isto é, senhores, outra realidade. Restou-me somente escalar o muro. Sendo assim, o beco sem saída me impôs um novo comportamento em relação a minha realidade, diferente daqueles comportamentos que já não funcionam mais: me reinventar na busca de uma nova direção e de um novo significado.

Como um presente do universo, recebi os primeiros ensinamentos para progredir em minha caminhada ao desconhecido. O meu desconhecido particular. Visto que você mesmo que lê, há de haver encontrado as pistas sobre o vosso desconhecido particular. O meu espírito teve sede e fome daquela sabedoria, porque saciava a minha sede. Quis aprender mais sobre aquela oculta sabedoria que estava sendo transmitida a mim; quis alimentar o meu Espírito para que Ele se nutrisse dela e cessassem a fome e a dor.

Reencontrei-me comigo em minhas memórias e pude sentir a vitalidade, aos poucos, retornando ao meu corpo que se encontrava fatigado e a minha alma que há muito estava vazia. Compreendi que as respostas para os mistérios que buscava estavam encerrados dentro do meu coração e que cabia a mim calar os meus pensamentos para, então, desvendá-las de seu véu. É este o mistério do silêncio. É, certamente, preciso silêncio para ouvir a voz interior.

— Como posso fazer os meus pensamentos se dissolverem no silêncio?

— Use a meditação — respondeu, Sophia.

Permiti-me retornar ao começo e foi lá onde reencontrei os fragmentos perdidos do meu Espírito, os meus sonhos mais primitivos e íntimos. Havia muitas coisas quebradas dentro de mim. As coisas se quebram quando somos displicentes com elas, mas a maioria delas podem ser consertadas. E as que não podem, já não nos servem mais.

Reaprender a cuidar do meu jardim da vida, semeando nele o necessário e podando dele o que não fosse mais saudável. Entendi, por fim, que o ânimo que eu precisava para realizar a grande obra estava nas minhas mãos, nos meus braços, nas minhas pernas e queimava em mim como uma fornalha. Era senão a minha verdadeira vontade. E o que seria essa verdadeira vontade? Ora, a minha verdadeira vontade é senão o meu caminho. Preciso então estar consciente do meu caminho e assim seguir a mim mesmo em minha jornada. Prestei atenção aos sinais e os segui com a esperança e a perseverança que me foi sendo restaurada a cada dia de silente desespero e de suplício lancinante. Fui capaz de ouvir a voz contundente que me dizia: “desista!” e também a voz eloquente que me falava: “prossiga!”.

Na sexta-feira à noite, assim que cheguei em casa, notei que Sophia havia deixado um bilhete por baixo da porta. O mais estranho é que não me lembrava de ter dito a ela o endereço de onde eu morava, todavia, como se tratava de uma feiticeira, eu simplesmente deduzi que ela havia encontrado meu endereço usando sua bola de cristal. O bilhete dizia: “Mudança de horário, me encontre antes que o galo cante!”. Eu não fazia a menor ideia de que horas seria isso. “Que diabo de enigma é esse?”, pensei. Achava que ela poderia ter sido mais precisa, quem sabe facilitasse as coisas, dizendo-me, por exemplo, a que horas o galo cantava. Fiquei preocupado em chegar atrasado à sua casa.

Então, não sabendo que horas deveria estar lá, resolvi dormir mais cedo naquela noite e programei o relógio para despertar às 02h da manhã, esperando me antecipar ao horário de trabalho dos galos e, em seguida, fui murmurando para a cama, descontente por ter que acordar cedo demais.

Naquela madrugada, eu tive um sonho muito estranho. Sonhei que eu era um galo e que estava de vigília em um galinheiro. Era noite e estava muito escuro. Tinha dificuldade de ver o que havia à minha volta. Apesar disso, podia ouvir um interruptor, soando um interminável “tic-tac” de relógio que me causava ansiedade, pois sentia que estava atrasado para um compromisso importante. Foi quando, do lado de fora do galinheiro, eu pude avistar dois olhos brilhantes como brasa de fogo e que me fitava de longe e de volta. Como em um místico desafio. Era uma serpente verde, cheia de malícia.

A serpente lambia seus lábios como muito desejo de saciar sua fome e entre o som de seu sibilado, podia ouvi-la sussurrar:

— O galo vai se atrasar e assim eu terei seus ovos, suas galinhas e, por fim, eu o devorarei.

A serpente me encarava, lambendo seus lábios e trazendo sua cauda para perto de seu focinho. Em sua cauda havia um relógio de pulso. Sim, a serpente usava um relógio de ouro em sua cauda como um homem usa em seu pulso destro. Da escuridão, ela sorria satisfeita com seus dentes serrilhados, o que fazia com que minha ansiedade se transformasse em pânico.

— Céus! Não pode ser! A serpente tem um relógio de pulso em sua cauda e sabe ver as horas! — Pensei admirado.

Foi quando, num ato de desespero, eu tentei gritar para prevenir as galinhas do iminente perigo que nos espreitava. A serpente era maliciosa e desejava nos possuir enquanto dormíamos indefesos. Contudo, minha voz estava emudecida e do meu bico não saia uma só palavra sequer, nesse momento pensei: “se eu sou um galo, então eu devo cantar”. E cantei:

— Acodem! Acordem! Acordem! Ó, Povo da terra, o Grande Rei do Leste está chegando! — Três vezes cantei.

E a serpente se enfureceu, porque ao ouvirem o meu canto, as galinhas acordaram de seu sono e começaram a pôr seus ovos dourados e fazer as coisas que as galinhas fazem. Eis que os primeiros raios de sol surgiram no oriente. O Sol nasceu imponente com toda sua majestade e esplendor, levando luz ao galinheiro, dissipando a escuridão da noite, ordenando que os animais cumprissem o seu dever e seu brilho resplandecente espantou a serpente de volta para dentro de sua toca que ficava embaixo da terra.

Depois disto, despertei de meu sonho.

Tratei de me arrumar depressa e segui para o ponto de ônibus. Era madrugada ainda, tive temor de ser assaltado na rua. Todavia, a rua não estava vazia, porque o homem comum levanta cedo para o seu labor. Todas aquelas pessoas sabiam que o galo estava prestes a cantar e todas elas acordam antes de seu canto para movimentar o galinheiro urbano, pôr os seus ovos de ouro e fazer as coisas que as galinhas fazem em seu dia-a-dia.

Sophia me aguardava em frente ao seu portão e assim que me viu dobrar a esquina, olhou em seu relógio.

— Me atrasei? — Perguntei a ela.

— Chegou cedo, criança. O galo ainda está dormindo — disse ela.

— Tive um sonho muito estranho: com um galo e uma serpente...

— É mesmo? — Disse ela, visivelmente desinteressada pelo meu sonho.

Mesmo que ela tivesse mostrado desinteresse, eu a contei sobre o meu sonho, esperando que ela o interpretasse. Sophia disse apenas:

— Os sonhos sempre são mensagens simbólicas. O diálogo da mente inconsciente com a mente consciente. Anote seus sonhos em um diário dos sonhos para que possa refletir sobre as coisas que seu inconsciente está te dizendo durante o repouso da sua consciência. Ao fazer isso, você tomará dimensões ainda maiores e profundas do que você sabe sobre si mesmo — ensinou-me Sophia.

— Onde vamos agora? — Perguntei.

— Subir a uma montanha! — Respondeu.

Sophia caminhou até seu carro, um charmoso fusca vermelho, que estava estacionado mais à frente. Entramos no carro. Ela fechou os olhos, pôs o cinto de segurança e sussurrou palavras inteligíveis como se rezasse. Tive medo. Então coloquei o cinto de segurança também.

— Já foi a Petrópolis? — Perguntou ela, sorrindo para mim, enquanto dava a partida no carro e acelerava estrada a fora.

Durante a viagem Sophia parecia estar bastante animada, mais do que o normal, eu diria. Não tanto para estar aberta ao meu interrogatório e eu tinha muitas perguntas. Sintonizou o rádio em uma estação que tocava o melhor da mpb, aumentou o volume a tal ponto que mesmo que eu gritasse, ela não seria capaz de me ouvir. Eu desisti de chamar sua atenção e ela seguiu dirigindo depressa pela pista em sentido à serra.

Estava me sentindo intensamente incomodado. Não sabia, porém, a origem do meu incômodo. A princípio, me vi perdido em muitos devaneios que giravam em torno de mim, incompreensíveis e desordenados. Depois, questionei meus pensamentos e o que me atormentava, quis culpar a noite mal dormida, aquele maldito som alto e a própria Sophia por estar tão indiferente ao que me incomodava. Também quis desistir de tudo.

Sophia então abaixou o volume e me perguntou:

— Algo te perturba?

— Não — menti.

Ela aumentou outra vez o volume. Eu já não aguentava mais tantos ruídos e comecei a sentir falta de ar, sentia uma inquietação insuportável, tontura e comecei a suar frio.

Sophia desligou o rádio e disse:

— Você está novamente no olho do furacão! Feche os seus olhos agora!

Eu fechei meus olhos e apertei as mãos contra minha calça jeans como se estivesse me segurando nela.

— O que você está pensando?

Eram muitos pensamentos. Todos eles atravessam por uma tela preta de modo incoerentes e desconexos. Aquela aflição novamente estava comigo. O gosto amargo de lembranças ruins podia ser sentido na minha língua. Meu coração estava tendo uma taquicardia e eu pensei que iria ter um infarto e morrer.

— Criança, criança. Ouça minha voz! Agora, eu estou entrando no controle. Eu quero que você solte suas mãos.

Eu a obedeci.

— Agora, quero que você inspire fundo e solte o ar lentamente e continue assim até que mande parar. Quero que observe apenas a escuridão além dos seus pensamentos. Deixe que eles passem, deixe que eles se vão, não os retenha.

Quando dei por mim, havia sido transportado a um lugar penumbroso.

— Existe uma lamparina acesa ao seu lado e à sua frente está uma escada com dez degraus. A escada leva para um cômodo inferior da sua mente. Quero que pegue a lamparina e vá até a escada agora — disse Sophia.

Peguei a lamparina e caminhei adiante. O lugar era estranho com paredes de rocha que estavam frias e cheias de musgo. Logo à minha frente, encontrei uma escadaria que levava a um cômodo inferior, assim como dissera Sophia.

— Contarei regressivamente de dez a zero e a cada número você irá inspirar fundo e descer um degrau de cada vez — disse Sophia.

— Sim — respondi.

— Dez! Você tem algo em seu bolso esquerdo?

Desci o primeiro degrau. Coloquei minha mão dentro do meu bolso e pude sentir que havia algo nele.

— Sim! Há algo em meu bolso esquerdo.

— Nove!

Desci mais um degrau.

— Veja se é uma chave dourada? — perguntou Sophia.

— Sim, é aquela sua chave! — Respondi a ela, depois de ter conferido.

— Não, minha criança. Esta é a sua própria chave.

— Oito!

Respirei fundo e desci mais um degrau.

— A cada degrau que descer, você estará cada vez mais imerso em sua mente.

— Sete!

Dei mais um passo e já não sentia meus pés tão firmes como antes, como se uma leveza houvesse invadido o meu corpo.

— Quanto mais fundo você descer, mais controle terá sobre a sua mente, porque estará cada vez mais próximo de si mesmo.

— Seis!

Desci outro degrau e tive medo do que poderia achar lá embaixo.

— Cinco!

— Tem alguma coisa aqui embaixo. Eu posso sentir que tem. Alguma coisa que me causa medo.

— Quatro! Agora a Luz desta lamparina pode iluminar a sua frente. Deve haver uma porta aberta em algum lugar por aí — disse Sophia, entretanto sua voz estava distante e quase inaudível dali de baixo.

De fato, como me disse, havia uma porta à minha frente. Era uma velha porta de madeira carcomida pelo mofo. Estava aberta e cheia de teias de aranha.

— Três! Terá que ir sozinho daqui em diante. Boa sorte!

A voz de Sophia já não podia mais ser ouvida. Estava sozinho naquele lugar incomum. Pensei em como podia ter uma mente que fosse tão assustadora ao ponto de não me sentir seguro ou confortável para adentrá-la. Temia me deparar com alguma monstruosidade que ali estivesse oculta.

Ergui a lamparina à frente e um forte vento silvou do quarto aberto, fazendo com que a chama da vela quase se apagasse. O medo era penetrante. Desci os últimos degraus e me aproximei cuidadosamente da passagem. Eis que quando a luz da lamparina luziu dentro daquele quarto, eu pude ver centenas senão milhares de aranhas, de todos os tamanhos possíveis, umas pequenas e outras gigantes, que se puseram a mover-se apressadas umas sobre as outras, porque eram repelidas pela luz da lamparina.

Que terror! O meu pavor foi tamanho que minhas pernas tremeram, fazendo com que eu me desequilibrasse e caísse no chão musgoso daquele lugar repulsivo, estava completamente aterrorizado com aquela infestação de aracnídeos que haviam tomado um dos quartos da minha mente.

Não tive escolha senão fechar a porta e trancá-la. Com a intenção de contê-las àquele cômodo. E fiz isso o mais rápido que pude, não quis que as aranhas escapassem dali e tomassem todos os outros lugares. Depois de ter trancafiando as aranhas naquele quarto, subi as escadas correndo e ao atravessar o último degrau, abri meus olhos e estava novamente no fusca de Sophia como quem houvesse acabado de despertar de um pesadelo.

— Chegamos!

Ainda estava escuro e fazia um profundo silêncio. Olhei à minha volta e vi que estávamos em uma rua de pedras que cruzava entre vales montanhosos cobertos pela mata atlântica. Sophia pôs seu casaco de frio, saiu do carro e começou a fazer exercícios físicos de aquecimento. Havia uma densa neblina naquele lugar. Sai do carro em seguida e senti uma bruma fria que descia das montanhas. Notei que no banco de trás havia um casaco a mais. Sophia sabia que eu iria despreparado, então, se precavendo a mim, levou um casaco extra para que eu o usasse. Vesti o agasalho e andei solto pela estrada olhando aquele misterioso lugar.

— Estamos em Petrópolis? — Perguntei.

— Na divisa com Teresópolis, eu creio.

— Tenho que te imitar e fazer esses exercícios?

— Nem sempre vou estar por perto para dizer a você o que deve fazer. Precisa aprender a seguir a sua intuição e confiar nela. Mas é uma regra básica fazer aquecimento antes de um longo esforço físico. Fique à vontade!

Às vezes, eu achava que Sophia se cansava de me ensinar as coisas. Mas decidi que pensaria diferente, passaria a perguntar apenas o que fosse mais importante ou o que eu não pudesse solucionar sozinho. E que passaria a ouvir mais do que falar. Então, fiz alguns exercícios de aquecimento até sentir o sangue esquentar.

— É difícil?

— O quê? O caminho?

— Sim.

— Em qualquer direção que se vá. Sempre vai ser difícil. Só os imóveis estão facilmente acomodados esperando pela morte. Porque até os desesperados e aqueles que estão adoecidos demais, movem-se para buscá-la.

Lembrei-me do dia em que pensei em tirar minha vida num ato de desesperança profunda. Os jovens que gravemente adoecidos cometem suicídios. Por motivo que pelo ponto de vista racional será inaceitável, irracional para as outras pessoas. A saída de emergência é uma má saída em todos os casos. E só pode ser compreendida pelo que se sente e pensa a dor de neutralizar a vida como último recurso de sua confusão e angústia interior.

E mesmo assim nem os mais sábios saberão explicar as razões e emoções que moveram aqueles que tiraram as suas vidas em um momento de desespero de suas emoções e confusão de seus pensamentos. A dor é um sentimento tão misterioso quanto o gozo. Não somos seres apenas racionais. Também somos seres sentimentais. E os nossos sentimentos nos movem tanto quanto os nossos pensamentos.

Portanto, o psiconauta não deve ignorar os seus mundos. É a colisão dos seus mundos que o formam, que o desconstrói e lhe permite se reconstruir. No universo mental há muitos mundos, um deles é o mundo racional e há também um mundo sentimental. O navegador da mente deve descer dos céus e mergulhar fundo no oceano dos sentimentos.

De repente, senti que perdia algo em mim. Algo que ia ficando pelo caminho que eu trilhava, pedaços meus que eram deixados para trás. Uma parte de nós que depois não se acha mais conosco. Tornando-me diferente de mim mesmo...

— Ouça! — Exclamou Sophia.

— O quê?

— Apenas ouça...

Nada pude ouvir senão o silêncio. Concentrei-me como se pudesse dilatar minhas orelhas para escutar algo. Mas nem um grilo podia ouvir. O vento também fazia silêncio até que senti pousar meus pés sobre as águas mansas de um lago. Era minha imaginação novamente? Pensei. Naquele lugar não havia paredes ou estranhos calabouços escuros. Podia-se ver somente águas tranquilas e aparentemente profundas em que pude caminhar sobre sua superfície.

— Supõe que estejas aonde neste instante?

— Dentro de mim?

— É um bom lugar para se estar?

— Parece-me incompleto.

— Que bom! Um vaso cheio não cabe mais nada. Mas um vaso incompleto é perfeito para ser preenchido.

— Volte.

Abri meus olhos e novamente estava com Sophia na rua de pedra entre os vales, montanhas e florestas.

— De repente, num piscar de olhos, sou transportado para outro lugar. Como se chama isso?

— Introspecção. Acontece quando o viajante muda a observação dos sentidos do lado de fora para o lado de dentro do seu templo.

— O meu templo?

— Três são as partes do mesmo templo. Cada parte está uma dentro da outra. O Pórtico é o teu Corpo. O Lugar Santo é a tua Alma. E Santo dos Santos, é onde está o Altar de Deus, que é o teu Espírito. Deves habituar-se a transitar entre estes lugares sagrados.

É preciso pensar um pouco, senhores...

Nos preparamos para subir a trilha a fim de chegar ao cimo da Pedra do Bonet às 5:00h da manhã. É uma subida íngreme, um caminho tortuoso e cheio de pedras. Sophia me advertiu para que tivesse bastante cuidado para evitar tropeçar, o que poderia ser fatal, pois subiremos no escuro.

— Que horas o sol nasce?

— Nessa época do ano, por volta das 6:30h da manhã.

— Dará tempo?

— Acordamos cedo para cortejar o sol, precisamos caminhar...

— O que faremos lá em cima?

— Faremos um exercício de passagem. Quero que fique em silêncio meditativo durante toda a sua subida até o cimo do monte. Pense em sua vida. Pense em suas faltas. Pense em cada passo que deu até aqui, até esta subida. Lá em cima, darei novas instruções. — Disse-me Sophia.

A subida demorou quase uma hora, porque me cansei em muitos trechos da trilha e tropecei algumas vezes. Coisas de um corpo que acabara de sair de uma vida de hábitos sedentários, embora, para o meu bem, nenhuma queda tenha sido fatal. Sophia não me disse nenhuma palavra durante toda a escalada, embora eu quisesse falar sem parar, não conversamos. A mente pensa sem controle, assim como um touro furioso numa arena. A boca é como um cavalo, às vezes, pastas o campo em silêncio, mas basta um estímulo de impulso e ela sai a galope sem controle. Contudo, eu desejava fazer dar certo! Queria que Sophia sentisse orgulho do meu avanço, mas queria, sobretudo, superar a mim mesmo. Então, me comprometi inteiramente com aquele estranho propósito, então, eu me calei, eu meditei e eu caminhei em direção ao cume da montanha.

Era difícil fazer duas coisas ao mesmo tempo. A caminhada era dura e afastava os pensamentos desordenados que sempre me sequestraram de mim. A picada dos mosquitos era mais incômoda do que o as feridas que contra mim foram infligidas, o zumbido dos insetos era mais irritante do que a voz daqueles que zombaram de mim no passado. O ressentimento do passado era insignificante perante ao meu presente. E o meu presente estava acontecendo naquela subida.

A fadiga de cada passo dado em direção ao cume era integralmente mais sufocante e igualmente suportável do que a falta de ar que me causavam os tumultos dos meus pensamentos ou o medo do que pudesse ainda ser tirado de mim. A montanha era maior, bem maior do que meus problemas, incômodos, rancores, birras, insatisfações, infantilidades, medos e dúvidas.

Foi quando Sophia interrompeu seu silêncio e disse-me como se lesse meus pensamentos:

— É preciso se perguntar: “perdi o que realmente tive ou o aquilo que imaginei ter tido?”.

Eu parei para pensar e recuperar o fôlego. Sophia olhou para trás pela primeira vez e sorriu para mim com um semblante cheio de carinho e alegria. Eu acenei com a cabeça indicando que havia prestado atenção às suas palavras e continuei marchando para cima com mais confiança do que antes. A cada passo que dava adiante, eu estava deixando para trás não apenas as pedras do caminho assim como também uma parte do meu velho eu em direção ao novíssimo eu que se formava a cada gota de suor dispendiosamente usado para continuar a subida.

Ao chegar ao cume do monte, nós estávamos a uma altitude de 1.550 metros segundo Sophia.

— Chegamos — Disse Sophia, abrindo os braços para o céu como se agradecesse a Deus por ter chegado ao topo.

— Que paisagem magnífica. Está tão frio aqui...

— Sim. “O Rio de Janeiro continua lindo” — cantou Sophia, e continuou dizendo. — Ainda é cedo, mas logo o sol virá.

Sophia se sentou em uma pedra e conversou um pouco comigo ensinando-me uma simples cerimônia. Depois, tirou de sua mochila uma flauta e com seu sopro fez uma canção tão profunda e mística que estremeceu minhas bases. A música é misteriosa, tem a propriedade de modular nossa vibração. Sophia sempre me induzia ao que descobri ser um estado de gnose. Um transe que tem por finalidade a possibilidade de proporcionar o autoconhecimento.

Ela me mandou que pegasse algumas coisas. Peguei em sua mochila uma vela branca e um cálice. Escolhi o mais alto ponto da pedra e ali coloquei o cálice e o preenchi com a água do cantil que estava guardado na mochila. Acendi a vela ao lado do cálice e meditei contemplando o fogo e a água. Fiz uma oração em silêncio, a única que eu sabia, o Pai Nosso, e me despi de todas as minhas vestes, ficando completamente nu. Caminhei com os pés no chão frio esperando pelo sol.

— Aqui estou eu, como estou e como sou! Nada tenho comigo senão o meu corpo, a minha alma e o meu espírito.

E quando os primeiros raios de sol surgiram ao leste, fazendo com que céu anil se tingiu de vermelho sangue e trazia consigo tons alaranjados até o dourado real. O astro rei ergueu-se em seu total esplendor, então eu caí de joelhos ao chão, humildemente, emocionado com a grandiosidade da vida e do universo, com meus braços abertos, eu pude sentir o seu calor beijar a minha face nua e aquecê-la.

Foi quando me veio o pensamento de que no dia da minha estrela, isto é, no dia do meu nascimento, eu não possuía nenhum bem material comigo, havia chegado ao mundo nu, sem posses, sem nada. Tudo quanto eu pensei que fosse meu, tudo quanto eu achei que tivesse, era só mais um engano. Uma fábula possessiva dos meus desejos inferiores e medrosos de reter coisas ou pessoas sob o meu controle.

Também entendi que não era a minha justiça menos falível do que a dos outros homens. Eu era tão parecido com eles quanto eu pudesse rejeitar a ideia de sê-lo. Estava diante do sol, despido de minhas vestes, despido de todas as minhas máscaras, o astro que era testemunha de cada uma de minhas ações e escolhas desde o dia do meu nascimento e assim seria até o dia da minha sepultura.

O véu acabara de se rasgar antes aos meus olhos ofuscados por indizível luz que penetrava minha alma e corpo e me preenchia meu espírito de sua própria essência, tal qual ainda sou incapaz de descrever. Senti Deus cingindo-me com o seu amor incondicional, cobrindo a minha alma de confiança e meu corpo com o seu calor.

Ali fiquei imerso sob sua luz, vogando em seu silêncio profundo, fora dos pensamentos, fora do tempo, recolhido em meu templo sagrado. Em seguida, apoiando-me sobre minha perna direita, ouvi Sophia dizer “Jachin”, depois, apoie-me sobre minha perna esquerda e a ouvi dizer “Boaz”, e assim tive forças para me reerguer firmei e impávido, sustentando todo o peso de meu corpo sobre minhas pernas.

Nem o cansaço, nem à altura, nem as pedras da trilha, nem os meus pesados pensamentos de desistência, nada havia me impedido de chegar até o final daquela caminhada e encontrar o templo interior no qual eu estaria todas as manhãs de minha nova vida em vigília para receber o sol nascente. Lá, em alto retiro, sobre as nuvens do céu estava a recompensa de todos os obstáculos que se opuseram ao meu caminho na terra. Vencidos!

Podia contemplar o mundo de tão elevada perspectiva que os meus problemas e questões agora pareciam imensamente insignificantes diante da minha vontade, sob luz que vinha do Leste e que iluminava o mundo e todos os caminhos que nele houvessem.

— Agora posso vê-lo. Agora meu coração pode senti-lo.

________ Este texto é fragmento de um livro.

Kleber Braga Pereira
Enviado por Kleber Braga Pereira em 22/12/2023
Código do texto: T7959970
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