A Doença da Vida

IIInnnnnnnnnn...Pei!

— Chamem uma ambulância. Rápido!

— Já chamei.

— O carro estava muito veloz, por isso não conseguiu frear a tempo.

— Nada disso, eu não tive culpa. Ele que entrou na rua de repente, sem olhar para os lados.

— Foi mesmo, eu vi tudo. Ele parecia estar distraído.

— Acho que não vai aguentar até a ambulância chegar. Que fatalidade.

— E aparenta ser tão jovem. Não deve ter nem vinte e cinco anos. Coitado!

— Acho que conheço ele de algum lugar.

— Ei, não mexe nele, temos que esperar até o socorro chegar.

Pei!...

— Eita! Aquele outro carro bateu no poste!

— Nossa, me deu um calafrio.

— A morte veio buscá-lo.

— Credo, vira essa boca pra lá! Ele ainda pode sobreviver.

— Como? Novamente um caso desses. A Vida é mesmo muito cruel. Isso não pode continuar a acontecer. VIIIIIDAAAAA!

...

— Que queres minha sobra fútil e meu rastro?

— Deixe de se gabar. Só porque sou posterior a você, não quer dizer que seja inferior em importância.

— Deveras, e preferiria esta tua interlocutora que tivesses até maior prestígio pelo que fazes e, pelo que o cenário faz crer, estavas a fazer agora a pouco. Deleito-me com estas cenas; quando arrancas a alma de um humano, com o qual já não posso mais estar.

— É exatamente sobre isso que quero falar.

— Ora, se quiseres mais trabalho posso lhe dar neste instante. Que dizes de ficares também com esses aí que estão a olhar a desgraça deste rapaz? Uma palavra, e estarão nas tuas mãos.

— Pare com isso. Você não está entendendo. O que faz com os humanos é lamentável. Trata-os como simples animais e não dá a eles o valor que merecem. Este rapaz, por exemplo, merecia mais atenção da sua parte. Mas aqui está ele, morto em um acidente de trânsito banal.

— Trato-os como simples animais, dissestes. Não lhes dou o tratamento merecido, dissestes também; mas isso me soa contraditório. Quanto ao rapaz, sabes bem que não mais estou à parte do que dizes, pois só conheço a história dos que vivem, e tu dos que já passaram por mim, e assim é o caso aqui.

— Tem razão, sei muito bem que você não conhece mais a história dele, que agora está aos meus cuidados. Então, vou contar o que precisa saber sobre ele e a razão de eu estar tão chateada.

— Conte, mas que isso seja sucinto, não tenho tempo para tais futilidades.

— Tudo bem, eu se, eu sei. Chamarei esta estória de: A Vida indiferente

— Ridículo!

— Ouça! Maurício, quando criança, possuía, aparentemente, qualidades medianas, podendo ser tido como uma criança comum. Sua infância não é algo a que se possa definir como extraordinária. Veio de uma família normal na atualidade: pai e mãe, sendo ele o filho único. Gostava de brincar, detestava legumes, preferia o sabor doce a qualquer outra opção, tinha uma relação de amor e ódio com a escola e, permitindo-se um exagero, com todas as outras coisas. Possuía um rosto angelical, capaz de gerar afeto até nos mais bruto dos seres. Seus olhos eram grandes e bem arredondados, a boca e o nariz bem modelados, o cabelo dourado caindo sobre a testa, e possuía, além de tudo, uma graciosidade enorme na imperfeição motora com que se movimentava e no modo atropelado com que falava. Era encantador como só os filhotes humanos conseguem ser.

— Mais objetividade!

Mas é na adolescência que está o grande marco da sua vida. Quando tinha por volta dos treze anos, Maurício teve uma aula de educação física onde ele e seus colegas deviam correr uma distância de cem metros o mais rápido que pudessem. O desempenho do garoto inexperiente deixou o professor impressionado. Ele havia conseguido chegar em primeiro lugar com uma boa vantagem sobre seus companheiros. Então, a partir desse dia, começou a receber uma atenção especial de Rodrigo; assim se chamava seu professor.

— Que seja...

O tempo foi passando e o garoto ficando gradualmente mais veloz. Rodrigo dedicava cada vez mais seu tempo de aula em cuidados especiais com Maurício. O garoto já estava ficando famoso por sua velocidade. Era capaz de ganhar uma corrida até mesmo de alunos mais velhos e experientes de outras turmas mais avançadas.

Chegou, então, o dia inevitável. Rodrigo marcou uma reunião particular para falar com Maurício e seus pais. Eles aceitaram o convite e, no dia marcado, encontraram-se. O professor elogiou bastante o garoto e deixou claro a sua vocação para o esporte; especificamente o atletismo. Explicou também que era um erro desperdiçar aquele grande talento. Apresentou seus planos de treiná-lo intensamente e colocá-lo em competições importantes, mas desde que os três concordassem e se empenhassem para que isso desse certo. Os pais estavam orgulhosos e emocionados. Com os olhos cheios de lágrimas, olharam bem um para o outro e, sem trocarem palavra, acenaram positivamente. Então o pai chamou o filho para perto de si e perguntou o que ele achava. A resposta de Maurício foi uma afirmação tão firme que, mesmo que os desafios e obstáculos a enfrentar fossem enormes, ele certamente jamais desistiria desse objetivo, pois o havia aceitado de corpo e alma.

— Que lindo!

Os anos que se seguiram foram, de fato, os mais árduos da vida dele. Porém, foram também os mais felizes. Em um período do dia ia à escola e no outro ia ao treino. Restava somente a noite para descansar, ainda assim com algumas dores no corpo de vez em quando e deveres de casa para fazer quase sempre. Entretanto, isso não parecia ter grande importância, pois ele se mantinha bem na escola e espetacular no esporte.

Com dezoito anos já havia ganhado uma quantidade enorme de troféus e medalhas. Nem sempre como o melhor colocado, mas, independentemente de qual era o resultado da corrida, o que a sucedia eram sempre mais e mais treinamentos.

Ao terminar o ensino médio, ingressou logo depois no curso de graduação em educação física. A sua vida estava mais atarefada que nunca. Constantemente tinha que viajar para competições e ainda conciliava a isso os estudos, os treinos, a família e os amigos.

Desde quando começou a se dedicar a esse esporte, seu sorriso era o de quem faz na vida exatamente o que nasceu para fazer. Não havia suor que derramasse em prol do seu sonho que não fosse motivo de alegria. E seu sonho era, até que fosse alcançado e almejasse outro, ser o campeão nacional. Queria ser o corredor mais veloz de seu país.

— Magnífico...

Exatamente no seu aniversário de vinte e dois anos, lá estava ele no ginásio, fazendo o aquecimento para a corrida que ia acontecer em breve; a sonhada disputa pelo título nacional. Nessa época Maurício estava no ápice de sua beleza, media um metro e setenta, tinha ainda os cabelos encaracolados, não muito curtos e com um leve tom dourado, uma boa musculatura e postura corporal, além de um par de olhos castanhos e a simpatia natural que possuía. O jovem era tão belo quanto era feliz. Isso chamava a atenção de suas admiradoras e causava muito ciúme na sua recém esposa, que fazia questão de sempre o acompanhar em suas viagens e competições.

Foi da arquibancada que ela e toda a família de Maurício assistiram ansiosos os corredores se preparando para a largada.

Todos os competidores estavam em seus lugares. De repente, um disparo. Os corredores entraram em ação. A mãe de Maurício ficou desesperada ao ver que um competidor, logo no início, conseguiu uma boa vantagem sobre os demais. Entretanto, acalmou-se ao perceber que todos voltavam aos seus lugares e que o competidor em vantagem havia queimado a largada. Passado o susto, a tensão aumentou. Novamente todos estavam posicionados e novamente soou o disparo. Os corredores davam o melhor de si, mostrando naqueles poucos segundos o resultado de muitos anos de treinamento. Logo quatro corredores se destacaram dos demais. Entre eles, na terceira posição, Maurício. Passava da metade da prova quando, em um arranque primoroso, que era sua principal característica, do terceiro colocado Maurício passava para segundo. A busca pelo primeiro colocado continuou até os dez últimos metros da prova, quando finalmente conseguiu alcançar a posição que lhe dava a medalha de ouro e, mais importante ainda, o sonho que tanto almejou.

— Parabéns para ele!

Esse havia sido até então o dia mais feliz de sua vida. Na semana que se seguiu, permitiu-se a até a excepcional regalia de não treinar. Mas, passada a merecida folga, voltou ainda mais intensamente aos treinos. Tinha um novo sonho: ganhar uma competição internacional.

Para alcançar o novo objetivo, os treinamentos foram intensificados. Agora, como já havia terminado o curso na faculdade, ele dava exclusividade à sua carreira de atleta. Sempre cheio de vigor, treinava todos os dias, porém, não mais com Rodrigo, embora mantivesse contato com ele. Tinha um novo treinador para impulsionar ainda mais a sua carreira. Isso ocorreu mais por insistência do próprio Rodrigo que por desejo do rapaz. Certa vez, em uma conversa ocasional entre o treinador novo e o antigo, ambos concordaram que a carreira de Maurício estava só no começo, ele poderia se tornar um atleta de nível mundial. E, embora o rapaz tenha apenas agradecido o elogio e humildemente dito que ainda havia muito a ser feito, essas palavras ecoaram fundo na sua mente.

Aos vinte e quatro anos teve uma belíssima surpresa; a sua mulher estava grávida.

Ah, como era belo o sorriso em seu rosto. Se a natureza é capaz de confeccionar uma obra de arte, então o ser Humano é a sua obra prima e o sorriso a mais bela moldura para expô-lo. Pela segunda vez em sua vida ele se sentia no Céu.

Avisou de imediato sua família e seus amigos. Todos ficaram também muito felizes com a notícia. Rodrigo, seu grande amigo e antigo professor, disse, jovialmente, quando soube: “Vai nascer um novo campeão!” “Ou campeã” adicionou Maurício, exultante.

— É “campeã”...

Algum tempo depois, sua mulher completava seis meses de gravidez. Ela, às vezes, sentia anelos das coisas mais diversas e nas horas mais inadequadas; ficava ao encargo do marido satisfazer esses desejos. Isso era bastante inconveniente, a mulher chegou até a pedir, nos momentos em que não sentia desejos, que o marido não se preocupasse com suas extravagâncias. Ele sempre concordava, mas bastava ela se sentir loucamente desejosa de algo que ele tentava satisfazê-la. Era um homem que se preocupava com o bem-estar dos outros.

Estavam ambos assistindo um filme em suas casas quando ela falou: “Morango” e em seguida mordiscando os lábios. Marido atento que era, entendeu perfeitamente o sinal. Pegou sua carteira, despediu-se e foi ao mercado. Como era de seu costume, foi caminhando. Durante o trajeto, pensava apenas em duas coisas; ecoava em sua mente o que seus treinadores haviam dito a ele tempos atrás: “Sua carreira está só no começo” inevitavelmente pensava também no filho que vinha e na família que estava construindo. Sentia-se pronto para essa nova vida, treinaria o máximo que pudesse e seria o pai e marido mais dedicado que já existiu.

Morreu.

Estava embevecido em seus pensamentos e acabou atravessando esta rua quando o sinal para os carros estava verde; um carro vinha velozmente, não conseguiu parar ou desviar. Não houve sequer uma última palavra, um último pensamento, uma lágrima.

— Comovente... Seria o meu comentário, se o fosse, deveras, essa história.

— Sei bem que, se quisesse, você poderia ter evitado o que aconteceu.

— Não vou floretear com as palavras, atirá-las-ei logo como me vierem... Ora, mais verossímil seria eu erradicar todos desta espécie, talvez assim o mundo ficasse mais leve sem a pesada cruz que lhe é o Homem. Eles são uma ameaça para eles mesmos e até para mim. Não apenas eles são seres vivos, nem são melhores que os demais; somente diferentes. Eu os desmembraria com a dor e o alívio de quem amputa um membro gangrenado ou de quem se livra de um câncer avançado. É isso. Todos que vivem são somente a Vida.

— Não sabe o que fala!

— Sei até demais! Até logo. E, aliás, olhe ali naquele outro carro, tens mais trabalho para fazer. Aconselho que aproveite e veja o quão graciosos são os seres desta espécie!

— Se perdeu na própria perspectiva. Não sabe, realmente, o que fala...

David Ariru
Enviado por David Ariru em 30/01/2024
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