AQUELES QUE DEVEM MORRER (cenas 6, 7, 8 e 9)

Cena 6. 1967. Prolegômenos de uma revolução

João e companheiros trancados num apartamento, passavam o dia escutando noticias no rádio. Alguém havia comprado pão e manteiga. Um bule fumegava sobre o fogão.

Dona Maria chegava cedo para arrumar a bagunça. Resmungando ia recolhendo jornais e peças de roupa espalhadas pelos cômodos. Mastigava palavras incompreensíveis mas seu pensamento era claro: sujeitos nojentos e preguiçosos. Filhinhos de papai. Vê se isso é jeito de largar a roupa. Tom mastigava uma fatia de pão com manteiga, espalhando migalhas pelo chão recém varrido. Achava que a velha não ia gostar de vê-lo sujando o chão:

- Muito brometo - dizia, se desculpando.

Tomar café com leite em grandes cuias sem asa, conversando longamente, e deixando manteigueiras e açucareiros sem tampa, para que as baratas e formigas passeassem neles, ali era moda, como nos filmes franceses da nouvelle vague.

Dona Maria era eficiente, queria pegar o trem de volta para casa às 15:30 horas. Lutava para acabar com a tertúlia matinal; tirava as cuias, tampava as manteigueiras, recolhia as migalhas de pão, rondava a mesa numa azafama interminável. Mas não parava de chegar gente. Uma outra rodada de café se iniciou.

Uma grande cara bonita e feminina, cabelos curtos, longas pestanas, olhos castanhos e grandes, boné xadrez, sorvia grandes goles da café com leite. Era vagamente parecida com uma atriz de cinema. Ana Karina? Só que mais baixa e encorpada. Era, dali, a única com trabalho fixo, fonte segura de renda, a verdadeira patroa de Dona Maria que a respeitava pra valer. Enquanto ela estivesse na mesa a velha não poderia expulsá-los. Maria Antônia fazia bico para tomar o café, segurando a cuia com as duas mãos.

Viver em comunidade é difícil. Principalmente quando a casa está abarrotada de marmanjos mal treinados para vida. Maria Antonia tinha que organizar tudo, distribuir tarefas, manter a ordem, fazer os cardápios, lidar com a empregada, pagar os impostos, o condomínio, a conta de luz. Uma verdadeira matriarca. E tão bonita que todos seguiam suas diretrizes sem discutir. Além disso, tinha um trabalho de verdade. Trabalhava com música num tempo em que musica era coisa de vagabundos. E conseguia tirar algum dinheiro.

- Toco flauta, piano e violão, e o máximo que consegui foi a produção desses jingles horrorosos. Tenho que fazer tudo. É um profissionalismo nota zero. Uma música que dura trinta segundos e levamos dois dias para gravar. Tudo para vender cigarros ou suco de laranja.

Tom achava que Maria Antonia podia estourar a qualquer momento. Tinha a gaveta cheia de partituras. Mas o melhor seria largar mão da música brasileira e passar a fazer rock, uma coisa mais comercial, com um mercado maior.

- O Che já está na Bolívia, era a voz de Aldo. Do banheiro com a cara cheia de sabão, deu bom dia.

- Por que a Bolívia, é que eu não entendo, disse João. Por que não veio logo para cá?

Barreiras da língua, talvez. Ou talvez respeitasse o governo brasileiro. Ou tivesse um acordo...

- A Bolívia é um país cercado. Se os americanos quiserem invadir, terão que passar por outros países. É uma forma de ampliar a questão, caso ele consiga tomar o poder na Bolívia. E vai tomar, vai tomar.

Cena 7. 1967. Modelos, ou Deus escreve certo por linhas pétras..

Sierra Maestra. Deu certo uma vez, pode dar certo siempre.

Na Serra Maestra lutaram cubanos, argentinos, mexicanos, franceses, americanos e talvez até brasileiros. Como na Espanha em 1936, muitos estrangeiros acorreram para defender a justiça. Na Espanha deu errado. A direita apoiada pelos estados nazi-fascistas venceu. Surgiu a ditadura de Franco que durou mais de quarenta anos. Em Sierra Maestra, venceu Fidel, que não era propriamente de esquerda. Filho de fazendeiro, estudante de escola católica, advogado, atleta, alto, forte, bonito, charmoso, bem falante, ( ufa, tem gente que gosta de puxar o saco), Fidel expressou a revolta do povo contra o sargentão Fulgêncio Batista, corrupto, capacho da máfia e dos americanos, que transformou a ilha em um bordel. Os americanos é que, atendendo a sabe-se lá quais desígnios, jogaram Fidel nos braços do comunismo por falta absoluta de opções. Ou queriam que Fidel continuasse aceitando a prostituição do povo em troca de umas propinas? Afinal é para isso que se faz uma revolução? Como resultado temos também uma ditadura quarentona. Quarentona e em quarentena.

Na Bolívia, o mesmo modelo? O que quer o Che? Trocou um cargo de ministro e os charutos havana por uma vida de perigos no meio do nada?

Cena 8. 1967. Ipanema. Aldo faz planos.

- Estou te falando. Qualquer dia largamos tudo e vamos encontrar o Che lá na Bolívia, disse Aldo. Engrossar suas fileiras.

Era exatamente o que eu queria fazer. Deixar para trás esse mundinho ipanemenho com seus barquinhos, botecos, bolinhas de papel e descobrir um mundo diferente.

Nunca aconteceu nada nesse apê. Rigorosamente nada...Discussões intermináveis sobre como deveria ser a vida nos colocavam diante das velhas questões da vida doméstica: havia muito trabalho sujo e monótono a fazer se não quiséssemos que o nosso refúgio se transformasse num covil de animais. Fazer, comprar, cozinhar, arrumar, lavar e limpar os banheiros. Trabalhos intermináveis que não traziam nenhum valor para os seus devotos executantes. Exceto manter as coisas funcionando. Queríamos ter uma vida diferente da dos nossos pais e avós, mas nos deparávamos sempre com as velhas questões domésticas. Viver em família é difícil. Viver em comunidade é super difícil; requer um sentido de solidariedade e de sacrifício. Sem conseguir viver o comunismo, montáramos uma comunidade que misturava coisas de comuna de produção e consumo, muito mais consumo do que produção, com uma espécie de compreensão que igualava as pessoas de nossa idade. Quando tudo se tornou impossível, as comunidades evoluíram para a paz e o amor bicho dos hippies, e depois para comunidades místicas que esperavam o fim do mundo pelas águas, em santuários situados em grandes altitudes. Mas ali prevalecia a vontade de mudar o mundo. Depois os casaizinhos começaram a se formar e a ocupar os seus espaços privados, criando grupos e frações à parte com suas regras próprias.

Exceto João que era muito incompetente para manter um namoro. Quem ia querer aquele retardado, sem futuro na vida? Amor e paixão resumem uma expectativa quanto ao futuro, que aparece num instante, como uma intuição, ou revelação; aceitamos fazer qualquer coisa pelo e com o ser amado porque sabemos que existe um futuro; os compromissos são assumidos aos poucos; de repente alguém está de barriga; vamos em frente numa evolução previsível; casa, trabalho, carreira e etc, até o túmulo. Mas João... A gente olhava para a sua cara sem expressão com o olhar perdido num ponto qualquer da parede... Absolutamente sem talentos. Fingia tocar violão. Conseguia extrair quatro ou cinco acordes do violão. Mal conseguia sair de casa, mal conseguia comprar pão, lavar pratos. Acabou dormindo no chão da sala, com os quartos sendo ocupados pelos casais em formação. A qualquer hora que chegássemos, lá estava ele na sala como uma peça do mobiliário. Ninguém agüentava mais olhar para ele. E ele não agüentava mais ser olhado. Alguém sugeriu que ele havia enlouquecido. Deve ter uma síndrome qualquer que seja a cara dele. É só procurar. Uma loucura serena. Não fazia nada o dia inteiro. Abandonara o curso. Abandonara o trabalho. Abandonara a família. Não conseguia nem trocar de roupa. No entanto, sob aquele olhar parado a sua cabeça rodava a mil. Ele sim considerava-se um ser predestinado. Mas entrara na depressão. Fossa. A fossa era um lugar para se estar, para se sentir seguro. Conversar era impossível porque logo se veria que ele era um imbecil, sem idéias ou com idéias que ninguém entendia. Numa festa, alguém sugeriu que ele se jogasse na lata de lixo que era um lugar seguro, se já não estivesse ocupada. Desconfiou que o seu futuro seria o do mais completo isolamento. Ah, como seria bom viver numa verdadeira comunidade, em que as pessoas se gostassem e se protegessem. Faria qualquer coisa por eles. Se tivesse certeza que era pelo bem de todos e não para que os espertalhões se aproveitassem.

Esse era o mundo que João achava que seria implantado após a vitória do Che. Uma fraternidade universal, sem patrões e empregados; sem senhores e escravos, sem obrigações, sem horários, sem trabalhos chatos.

A adolescência é um período de passagem de travessia. Aceitar o mundo, achando-o lógico, justas as coisas como elas são, passar a exercer uma função dentro do mundo. Quem sabe consertar, fazer as coisas direito. A maioria, com um balançar de ombros aceita passivamente o mundo como ele sempre foi. Como num maldito trote escolar, passamos a fazer com outras pessoas as mesmas idiotices que fizeram com a gente e que julgávamos que nunca faríamos. Passamos a dizer coisas de adultos, cheias de bom senso, com uma expressão grave no rosto, deixando no ar uma brecha aberta para a crise que vai nos varrer da face da terra, como uma manada de mamutes. De crise em crise, aceitamos vegetar.

Menos o Che. Querem uma crise? Pois vou fabricar eu mesmo uma crise, uma verdadeira crise não uma tempestade em copo dagua. O tipo de pessoa que leva tudo à sério. Pessoa perigosa e ao mesmo tempo fascinante.

Se alguns são profetas e ameaçam o povo com perigos futuros, outros são executantes, são a crise em pessoa. Já João não era nem uma coisa nem outra. Nem profeta, nem conformado, nem revolucionário. Estaria melhor num sanatório. Uns bons choques elétricos para colocá-lo em movimento, para tirá-lo dos sofás.

- João, você vai passar a sua vida toda deitado nesse sofá?

É preciso uma grande dose de condicionamento para fazer um animal viver dentro de um cubículo sem que faça uma enorme sujeira, sem que defeque pelos cantos. É preciso uma grande soma de horas de treinamento para que esse animal aprenda a manter os objetos em seus lugares, para que aprenda a andar na vertical, a falar, a contar, a escrever. Muita rotina, muitos gritos, prêmios, castigos, punições. E tudo para quê? Para exibi-lo num circo? Não, para que ele possa sobreviver numa sociedade complexa. Mas também, e mais importante, para que a própria sociedade sobreviva e continue existindo como ela é, porque ninguém gosta de grandes mudanças, de alterações das rotinas. Rotinas dão segurança, mesmo que ilusoriamente. Achamos que os nossos líderes são sábios, que são pessoas que sabem o que estão fazendo. Que vivemos nos melhor dos mundos possíveis. Eis porque nos falam em mais justiça social, quando deveriam falar simplesmente em justiça. Por que mais? Porque existe o possível e o impossível. E o impossível é aquilo que não temos força para tomar no peito. O possível é aquilo que os donos do mundo aceitam ceder. E eles aceitam ceder muito pouco. Assim, quando alguém, mesmo inconscientemente, não aceita o melhor dos mundos possíveisl, a sociedade acabou de fabricar um bandido, alguém que coloca as coisas sob o perigo de se desintegrar, que injeta o caos em relações que demoraram tanto tempo para se estabelecer, que destrói o trabalho de muitas gerações sucessivas.

João estava num impasse. Podia evoluir como bandido; ou como revolucionário, que é uma espécie de bandido intelectualizado. Ou como simples desestruturado, inadaptado que tende a ser extirpado de qualquer grupo social: como alcoólatra; como débil mental, esquizofrênico, maníaco do parque; ou como personagem de programa humorístico, João o homem que vê conspiração em tudo, cujo bordão é: não disse que tinha sacanagem, comentando as tramóias dos três poderes. Na sociedade dos homens não existe o caminho. Existem trilhos, monovias, que prendem e obrigam a agir deste ou daquele jeito. O propalado livre arbítrio é minimamente exercido pela possibilidade de escolher esse ou aquele trilho. Que uma vez escolhido exclui todos os demais. Uma vez bandido sempre bandido. Mas uma vez homem de bem, isso nada garante.

O Che fez a escolha. Com o sacrifício da própria vida e da vida de muita gente que o seguiu, ou que o combateu. Qual teria sido a sua motivação? Simples indignação? Compaixão? Operar com as forças positivas da evolução? Talvez tenha sido impossível viver de outra forma. Tinha pressa. Mas dizem que os jovens têm pressa porque tem sede de poder. Querem pular etapas e desbancar os macacos dominantes rapidamente. Fabricar exatamente a mesma sociedade com uma roupagem nova. As mesmas injustiças, a mesma violência e coerção, muitas guerras, muita fome, muita violência para depois se voltar a estaca zero. Mas, não com o Che.

Cena 9. 1967. Ipanema. A depressão é um modus vivendi.

A tarde ia adiantada. O céu muito azul. O calor. O brilho enjoativo no piso de tacos de madeira. Uma fruteira com modelos de cera. Flores de plástico. Eta salinha mais entediante. O mar estava ali ao lado, mas ninguém tinha coragem ou disposição de ir até lá, porque onde quer que se vá se carrega o inferno consigo. Ou o céu. É preciso apanhar muito para se aprender na carne que as coisas são assim mesmo. E que a única ação que se pode fazer é dentro do próprio cérebro, nos músculos, ossos e tendões. Isso não se aprende na escola. Ensinam a tabuada, ensinam a escovar os dentes, mas não ensinam a relaxar. A escola vive preparando para uma guerra interminável de compromissos e horários, de treinamento de bunda para ficar sentado o dia todo bem comportadinho, dentro de uma sala. Muitos anos de treinamento de bunda, que acaba por transformar todo mundo em bundão, a serviço de uma sociedade corrupta e corruptora. Fique quietinho e faça a sua parte que depois te dou um doce.

João continuava deitado no sofá. Era seu turno de lavar os pratos, que continuavam sujos com a bica da pia pingando. Fazer com as próprias mãos deveria ser motivo de orgulho. Lavar a louça é simples. Mas todos os dias é que é chato. A idéia de que o trabalho manual não é digno do homem educado é a pedra de toque da civilização ocidental. É tarefa para escravos boçais, incapazes de raciocinar e de organizar as suas vidas. Aos cultos, aos letrados, a missão de governá-los, de civilizá-los, evitando que esses animais se entredevorem. A eles cabe o trabalho físico. Um senhor, um lorde, não carrega embrulhos nem violões. Não move uma palha. Apenas manda mover, faz acontecer.

Então como aqueles filhinhos de papai poderiam fazer uma revolução que exigia que andassem muito, carregando mochilas e fuzis, fazendo a sua própria comida, lavando a sua própria roupa, eventualmente até matando com as próprias mãos, ou abrindo covas para enterrar companheiros mortos? João era incapaz de matar uma galinha. Matou uma vez uma cobra, premido pelas circunstâncias, e ficou remoendo a culpa uns três meses.

Como o próprio Che afirmava, não há nada que um grupo de homens decididos não seja capaz de fazer. Mas para dar certo é necessário que o inimigo não esteja tão decidido assim. Ou, pelo menos, esteja desorganizado. Ou desmoralizado. Ou seja pego de surpresa.

Muita água rolou. Aquelas pessoas inocentes e inúteis estavam brincando com o fogo, cutucando a onça com vara curta. O poder tem um dono. E o dono tem cães ferozes para defendê-lo.

João chegou a fantasiar a existência de vampiros, os verdadeiros donos da sociedade, que sabiam como ser imortais e estavam há centenas de anos desfrutando os rendimentos de suas ações. Imaginou a sua reunião anual, em algum castelo europeu, com suas roupas elegantes de nobres, suas perucas brancas, seus culotes, sua impressionante palidez acentuada pelo pó de arroz, suas jóias faiscantes, dançando um minueto, e sua felicidade por estarem vivos há tanto tempo, enganando toda a humanidade, botando-a para trabalhar e transformando a sua vida num inferno. A verdadeira sobrevivência dos mais fortes, intelectualmente falando, daqueles que conseguiram enganar a própria morte.

As gerações se sucedem indefinidamente e dentro delas há sempre alguém querendo melhorar o mundo. João sabia que quando se levantasse do sofá, após a milionésima previsão do tempo do rádio, se engajaria em alguma luta.