Confissões de alguém que nunca existiu

Nunca tive nada: nem filhos, nem amantes, nem amigos.

Ao partir, nada deixei: nem herança, nem parentes, nem saudades.

Vivi em reclusão, essa prisão voluntária, sem grades, sem muros, em absoluto isolamento.

Não saía, não visitava, nem tampouco recebia visitas.

Sem possuir o dom da invisibilidade, minha presença jamais era notada.

Pelo bem que nunca fiz, pelos laços que nunca criei, tornei-me uma sombra, um espectro no meio dos vivos.

Sem interesse pelas coisas mundanas, também não me empolgavam os valores do espírito.

Não amealhei moedas de ouro, pois o falso sentimento de humildade tornava-me uma pessoa orgulhosa de minha pobreza.

Não amealhei as moedas do amor, pois, presunçosamente, eu me achava auto-suficiente, independente demais, diferente demais, melhor do que os demais!

Tola ilusão!

Fiz ouvidos surdos aos apelos que me chegavam pelos conselhos de uns poucos que conviveram comigo; até que, enfim, desistiram e me entregaram à própria sorte.

Fiz ouvidos surdos aos apelos que me chegaram mais tarde, sob forma de uma solidão profunda e tão dolorida como se o coração, ainda batendo forte, me fosse arrancado do peito; mas o homem acostuma-se até à dor mais pungente.

Fiz ouvidos surdos aos apelos do corpo físico, que traduzia em doenças dos mais variados nomes as mazelas que eu carregava na alma.

Hoje, fazendo o inventário de minha própria vida, nada tenho para contar, não me lembro de ninguém e ninguém se lembra de mim.

Tornei-me um espectro no mundo dos espectros.

Ainda não me vêem, nem os bons, nem os maus, nem os vivos, nem os mortos.

Continuo não existindo aqui onde me encontro agora, como já não existia no mundo que deixei há pouco.

StelaStela
Enviado por StelaStela em 02/03/2008
Reeditado em 02/03/2008
Código do texto: T883292