Abra os olhos...

2:00 AM

- Abra os olhos querido... Abra os olhos. – Disse um leve sussurro em seus ouvidos.

A boca estava completamente seca. Os olhos arregalados encaravam o teto rachado e a cortina balançava levemente com o vento entrando pelas frestas da janela. Aquela imagem não lhe saíra da cabeça e a música continuava a tocar mais baixa, porém o bastante para incomodar.

Levantou-se, colocou os chinelos, vestiu uma blusa e caminhou de um jeito cansado até a porta semi-aberta. Encarou o trinco ao tempo que a mão estava parada no ar querendo tocá-lo e enfim procedeu.

Passou pelo corredor e sentiu que ele estava mais longo que de costume e aquela musica ficava a cada passo mais irritante. Chegou até a sala, permaneceu ereto encostado na parede e fechou a cara. Apenas um suspiro e nada mais, continuou a caminhar até a janela, olhou a rua e disse em tom firme:

- Terminem logo com essa bagunça, pois quero dormir.

Voltou calmamente para o quarto e seus ouvidos ainda ouviam a música sem graça que ecoava pelos cômodos da casa vindo diretamente da sala.

Voltou para a cama e dormiu.

3:15 AM

Acordou rapidamente e num salto esticou o braço pegando a jarra de água na mesa de cabeceira. Foi instantâneo: a jarra se despedaçou no chão e a água molhava o tapete pouco a pouco.

Num pulo, levantou-se sem pegar os chinelos e nem mesmo a blusa e puxando o tapete secou a água que escorria pelo chão.

Sentiu a picada no pé, mas não se preocupou com o corte, apenas retirou o pequeno caco e foi até a varanda pegar uma pá.

Aquela música estava baixa, cada vez mais baixa, mas as vozes ainda permaneciam na sala.

Aquele vento entrava por alguns buracos nas janelas e seus pêlos se erguiam devagar. Seus olhos negros contrastavam com os fios de cabelo grisalhos. Franziu a testa e parou olhando para a sala.

- Chega! A bagunça acabou!

- Quem disse que acabou querido? Nem começamos. – uma voz feminina falava calmamente enquanto alguns sorrisos infantis faziam plano de fundo.

- Acabou sim. Parem com essa música. Ande!

- Abra os olhos querido! – a voz continuava.

- Que brincadeira é essa? Estou de olhos abertos.

- Então ascenda a luz amor.

- QUEREM PARAR COM ISSO?

As crianças riam ao fundo e ele gargalhou ironicamente com a aparente brincadeira. Ao mesmo tempo, fechou o riso e mostrou-se sério e emburrado. Caminhou voltando para o quarto sem nem mesmo se importar com os cacos.

Ainda assim, ouviu um sussurro fraco vindo da sala: - Abra os olhos, querido.

Bateu a porta do quarto e deitou-se rapidamente na cama. A luz que entrava pelas frestas da janela iluminou suas mãos marcadas na cor vermelho-sangue. Pensou se o corte no pé teria sido tão profundo a ponto de causar tal mancha nas mãos, mas virou-se ao lado e adormeceu.

5:40 AM

- Abra os olhos querido... Abra os olhos.

A música permanecia leve no ambiente e ele apalpou o lado da cama sentindo o mesmo vazio. Levantou-se de novo, empurrou os cacos para debaixo da cama com o tapete e abriu a porta. As vozes cessaram no mesmo instante e ele pensou ser a demonstração de medo.

- Não vão dormir hoje não? Daqui a pouco amanhece.

Não houve sequer um sussurro.

- Vocês não vão dormir?

O silêncio permaneceu.

Ele passou para o corredor e caminhou até a sala ouvindo novamente a voz sensual da mulher.

- Querido...

Sentiu um arrepio e seus olhos se fecharam. Talvez o sono fosse tanto que permanecera daquele jeito tempo demais e ao abrir os olhos os primeiros raios de sol penetravam a sala e ali via-se a real cena que ele deixara anteriormente. A música das crianças continuava tocando no rádio, a mulher estava caída perto da porta e as crianças deitadas próximas ao rádio com diversos brinquedos espalhados pelo local se misturando à tortura que ali ocorrera e a emoção pesada que o ambiente transmitia. No tapete, as manchas vermelhas pareciam se mover e a leve música irritante agora transmitia sensação fúnebre. Os corpos pálidos e gélidos sem qualquer suspiro de vida contrastavam com os primeiros raios de sol que invadiam a sala.

Seu coração pulsou uma única vez aquele sentimento macabro e foi o bastante. Pensou em deitar-se novamente, pois aquilo deveria ser um sonho...

Adormeceu.

7:21 AM

- Abra os olhos querido... Abra os olhos. – Disse um leve sussurro em seus ouvidos.