O MILAGRE QUE VEM DA NATUREZA

39) O MILAGRE QUE VEM DA

NATUREZA

Autor: (Heliodoro Morais)

Céu escuro, com nuvens carrancudas

Raios banham de luz o horizonte

Tem ranger de trovão por trás do monte

Qual trombeta há muito tempo muda

E, esquálida, a árvore desnuda

Ante o vento se curva em reverência

O cenário traduz a evidência

Desses claros sinais da natureza

É a chuva que chega, com certeza

Obra prima da santa providência

O caboclo sofreu com paciência

Mas ao canto da chuva ele se rende

Junta o povo debaixo do alpendre

E se põe a contar experiências

Diz que o ninho da rolinha é uma ciência

João-de-barro também tem seu papel

A formiga com previsão fiel

Sabe como prever a invernada

Ao sentir cheiro de terra molhada

Quando a chuva despenca lá do céu

De manhã no açude, o tetéu

Anuncia ao mundo com seu canto

Que a mata vestiu um novo manto

No tom doce da flor que dá o mel

No riacho a cascata forma um véu

Que despenca, encobrindo a cachoeira

Tem bezerro mugindo na porteira

Tem capim verdejante no cercado

E um caboclo plantando seu roçado

De feijão, melancia e macaxeira

Tem um ninho no pau da cumieira

Muito peixe subindo no riacho

Mangará que promete dar bom cacho

Se balança na velha bananeira

Tem abelhas no galho da mangueira

Água fresca da chuva enchendo o pote

Tem vaqueiro tratando de um garrote

E um touro cobrindo uma novilha

Sertanejo feliz promete a filha

Um vestido de chita, sem decote

Tem poeta matuto atrás de mote

Pra cantar o sertão em verso e prosa

Cada um beija-flor tem sua rosa

Cascavel tá no mato armando um bote

No salão tem um dançador de xote

Que não para de tomar calibrina

Enche a cara, vomita e se amofina

Quando o povo conversa distraído

E o telhado da casa é encardido

Pela tisna da luz da lamparina

No munturo um bocado de meninas

Vai brincando com fruta de pereiro

Um jumento escamurça no terreiro

A mulher lava roupa numa tina

No fogão um pedaço de turina

Na latada um rapaz amola a faca

Numa moita o canto da curicaca

Um arreio no torno da parede

E um cabra deitado numa rede

Vomitando e gemendo de ressaca

No curral tem mais leite, tem mais vaca

Dá pro queijo, a manteiga e a coalhada

E também pra borrega enjeitada

Que na seca perdeu a mãe, de fraca

O chapéu, a semente e a matraca

A botina, a foice e a enxada

A cabaça, a panela afogueada

Vão poder descansar fim de semana

Quando é hora do cabra tomar cana

Com miúdo de porco e carne assada

Tem vaqueiro atrás de vaquejada

Sanfoneiro pegado no forró

Tem coroa que está no caritó

Bem vestida, cheirosa e arrumada

Tem também velho de boca babada

Cochilando num canto do salão

Um moleque corre de pé no chão

Corta o pé, abre a boca e cai no choro

E lá fora um peão espicha o couro

De uma rês que matou para o patrão

A beata fazendo uma oração

Agradece a Deus pela fartura

Lá no céu uma nuvem mais escura

Vai soltar água fresca pelo chão

Tem paçoca batida no pilão

Feijão verde fervendo na panela

Rouxinol faz seu ninho na favela

Tem calango na lenha da fogueira

Perseguindo uma mosca varejeira

E um cachorro cercando uma cadela

O vaqueiro feliz ajeita a sela

Sobre o lombo suado do cavalo

A botina apertada faz um calo

Na costura que fez com a sovela

Uma cruz de madeira na capela

É o palco de um coro de pardais

Numa cerca de pedras os preás

Vão deixando as marcas da passagem

Os sons roucos das águas da barragem

São cantigas dos grandes festivais

O perfume das flores naturais

Se derrama no solo da campina

O orvalho de gota cristalina

Se aquece nos raios matinais

Refletindo o brilho dos cristais

Como um verso bonito do repente

O cenário está muito diferente

Do período ruim de estiagem

O sertão com a chuva é a imagem

Que o caboclo queria de presente

Nordestino é um bravo, é um valente

Que aproveita a bonança do momento

Pra tentar afogar o sofrimento

Que a seca causou a sua gente

Vence a dor com seu jeito paciente

Quando tudo parece destruído

Vai lutando não tem tempo perdido

Arregaça as mangas e vai embora

Por saber que a grandeza dessa hora

É o orgulho de nunca ser vencido

É na dor que se aprende o gemido

Nem assim ele gosta de gemer

É preciso sorrir pra não sofrer

Elegendo o melhor que tem vivido

Segue forte, altaneiro, destemido

Com a força que vem do coração

Não se deixa cair na ilusão

E por isso não vive chateado

Guarda toda energia pro roçado

Seu destino é cuidar da plantação

Na colheita se faz um mutirão

Em equipe o trabalho tem mais brilho

Uma parte do povo quebra o milho

Outra faz a apanha do feijão

Tem mais gente croando o algodão

No pomar, a mulher colhe uma fruta

Nessa hora ninguém foge da luta

Gente idosa se junta à gente moça

Sertanejo empresta a sua força

Ao trabalho pesado da labuta

A esperança, com fé absoluta

Não lhe deixa cair em desespero

Apesar de estar sempre sem dinheiro

Não se altera nem muda de conduta

Dá lição de moral em quem lhe insulta

Sorri fácil de boca escancarada

Manda embora a tristeza com risada

E com o pouco que tem reúne os seus

Grita alto: aqui, graças a Deus

Tem de tudo, não está faltando nada

A família, feliz, tá abastada

Tem até roupa nova de domingo

Uns trocados pra arriscar no bingo

Que é pra vida ficar mais animada

Porém logo depois da invernada

A alegria se vai, vem a tristeza

Volta a fome, a miséria e a pobreza

A doença, a desgraça, a escassez

E essa gente espera outra vez

O milagre que vem da natureza

FIM

Heliodoro Morais
Enviado por Heliodoro Morais em 09/09/2009
Reeditado em 11/09/2009
Código do texto: T1800430