A Saga de João Fuminho

Atendendo apelo de um dos meus sobrinhos e do resto da família, resolvi publicar este cordel que, há tempo, vivia engavetado. Foi construído com base numa história verídica, que é contada por dois cantadores do Piemonte da Chapada Diamantina:

Laerton de Nostradamus e Zé Patenteado.

Nota:

Algumas palavras estão grafadas obedecendo o som da fala e outras de acordo com a variação linguística de seu povo. Em respeito à cultura popular, as mantive assim.

Laerton de Nostradamus:

I

Não muito distante daqui

Tecem histórias de sacis

E outras que nunca ouvi

Para assombrar este sertão

Juro! Nada é mentira, não!

Gente, o que aqui vai escrito

Serve inté como bendito!

Nós choremo... até cansá o coração.

Zé Patenteado:

II

O amigo Laerton não inventa.

E quem já passou dos quarenta,

Que viveu a tal década setenta

Não erra na lembrança, não!

Por isso, segura aí a emoção

E se conheceu o João Fuminho

Teu coração já tá aí apertadinho...

Nós choremo... até cansá o coração.

Laerton de Nostradamus:

III

É difici pra eu contar tal história

Tá vivinha! Aqui dentro da memória...

Porém, não é, e nunca será glória.

O João Fuminho- homi da solidão

Dizem qu’ ele nunca namorou, não!

E morreu... Dizem que partiu donzelo

Foi triste! Até o sol perdeu o amarelo

Nós choremo... até cansá o coração.

Zé Patenteado:

IV

Me discupi, por este nó na garganta,

É difici! Vou chamar o nome da santa

Que vai me socorrer nesta instança

Porque me desatou a tal emoção

A viola parece que vai fugir da mão

Valhei-me Nossa Senhora, Socorro!

Perpetua-me ou, então, eu morro....

Nós choremo... até cansá o coração.

Laerton de Nostradamus:

V

Ó meu Deus, olhai minha sanfona!

Ela que é por demais risonha...

Agora, parece uma véia chorona

Será que é a saudade do João?

Mas é bom saber se é sim ou não:

Vamos desfazer este obstáculo,

Tudinho tá aqui neste velho oráculo...

Nós choremo... até cansá o coração.

Zé Patenteado:

VI

Se me perguntarem seu nome

Vou rimar a resposta com a fome

Porque só existia um codinome

“João Fuminho” e não é igual a João.

Era sujeito, mas nunca foi cidadão.

Vivia ele à margem do mundo,

Pitando seu cigarrinho vagabundo...

Nós choremo... até cansá o coração.

Laerton de Nostradamus:

VII

É a história de um sujeito minúsculo

De um homi recheado de músculo,

Que ao anunciar do crepúsculo

Puxava seu jumentinho com a mão

À busca de lenha pro seu fogão.

Sua tristeza - ser o maior lenhador...

A amargura – nunca ter tido um amor...

Nós choremo... até cansá o coração.

Zé Patenteado:

VIII

Ele vivia sempre da Vila pra roça

Sua casinha: uma formosa palhoça

Mal cabia sua má sorte, sua mossa.

Passava ele na rua em mansidão...

Uns lhe gritavam: “ Fuminho, ó João!”

Outros, lhe devotavam mais carinho

E diziam: “ Oh! olá, João Fuminho!”

Nós choremo... até cansá o coração.

Laerton de Nostradamus:

IX

João Fuminho, seu prazer: a baforada

Que anunciava, ao longe, sua chegada,

Não sabia o qu’ era ter namorada.

As donzelas - a lhe dizerem sempre não

Os homens - a lhe fazerem gozação...

Seu destino já lhe fora mal traçado:

Tinha uma foice e um pequeno machado.

Nós choremo... até cansá o coração.

Zé Patenteado:

X

Certo dia, um dia bem ensolarado,

Saiu João Fuminho, com seu jeito calado

E sozinho foi buscar lenha no roçado.

Não havia novidade até então...

Mas o céu parecia anunciar aflição.

De repente, as nuvens todas pararam

E as andorinhas entrei si cochicharam

Nós choremo... até cansá o coração.

Laerton de Nostradamus:

XI

Deu mei-dia, e nada de fogo aceso

Era motivo pra se ficar surpreso

E assim começou a dor e o peso.

Cada um guardava sua reflexão:

“João Fuminho nunca se demora, não!”

A vizinhança parece que adivinhara

João Fuminho, com certeza, não voltara.

Nós choremo... até cansá o coração.

Zé Patenteado:

XII

“Vejam, o céu de azul ficou escuro...”

Diz um ancião, segurando-se ao muro,

O qual sabia muito bem do futuro.

“Vamos todos! Vosmicês me seguirão.”

Ordem dada pelo sábio ancião.

E lá se foram, juntos, em disparada...

Porque a má sorte já fora anunciada.

Nós choremo... até cansá o coração.

Laerton de Nostradamus:

XIII

Caminharam mato adentro, um atalho...

Num arbusto que lhe pendia um galho,

Um silêncio... uma cena de espantalho.

Lá jazia com sua dor..., sua solidão,

Aquele que nunca chamara a atenção.

Os homens, ali, tiraram seus chapéus,

Mulheres cobriram seus rostos com véus...

Nós choremo... até cansá o coração.

Zé Patenteado:

XIV

Sem dúvida, tudo estava consumado:

João Fuminho – foi notícia - “O enforcado”.

A corda - sua ferramenta, e não o machado...

A sorte - lhe negou o fogo da paixão.

Agora, o sino a dobrar ... terna emoção!

Um caso de suicídio – que loucura!

Na Vila - a tristeza: longo dia de amargura...

Nós choremo... até cansá o coração.

Glossário:

Inté – até.

Choremo – choramos.

Cansá – cansar.

Difici – difícil.

Homi – homem.

Donzelo – rapaz ou homem virgem (feminino de donzela).

Discupi – desculpe.

Instança – instância.

Véia – velha, idosa.

Pitando – fumando.

Mossa – abalo, impressão moral.

Baforada – quantidade de fumaça expelida no ato de fumar.

Donzelas – moças virgens.

Foice – instrumento agrícola para roçar mato.

Mei-dia - meio-dia.

Vosmicês – vosmecês (de Vossa Mercê) - Vocês .

Espantalho - boneco de pano que serve para espantar pássaros na lavoura.