ABC FEITO POR UM MORIBUNDO NO SEU LEITO DE MORTE

A

Ah vida ingrata, tirana

Foi essa que me tocou

Tava na flor da idade

A doença me roubou

A saúde que eu tinha

Só sofrimento sobrou.

B

Busquei todos os recursos

Que se julgava a servir

Mas tudo foi sem proveito

O remédio foi sentir

Fiz mil promessas aos santos

Mas nenhum quis me ouvir

C

Como Deus assim o quis

Não tenho a quem apelar

É sofrer enquanto vivo

Até a morte chegar

Espero que lá no céu

Outra vida é de gozar

D

Deus de infinita bondade

Atendei ao meu gemido

Já não são tão poucos os tempos

Que eu já tenho sofrido

Só resta uma esperança

Que de vós serei valido.

E

Eu vivia iludido

Que na morte não pensava

Ela me veio à traição

Quando eu não esperava

Sem eu me lembrar das dores

Que nesse mundo passava

F

Fiz mil promessas aos santos

Fui até o Canindé

Perdi os passos que dei

Veja o mundo como é

Santo nunca valeu gente

Naquilo que Deus não quer

G

Grande são as minhas dores

Grande é o meu sofrer

Além de tantos martírios

Vivo quase sem comer

Não sei mais o que é dormir

A mim só falta morrer

H

Hoje que me vejo assim

Quero fazer um pedido

Quem nesta obra pegar

Se lembre do meu gemido

Que reze mais um pai nosso

Que lhe fico agradecido

I

Ia vivendo sadio

Já gozei vida feliz

Esperava morrer velho

Porém Deus assim não quis

Não valeu as diligências

Que por toda parte eu fiz

J

Justo é o meu castigo

Pois sou grande pecador

Quando andava livremente

Agravei o meu Senhor

Hoje não acho um alívio

Na mão do meu Redentor.

L

Lanço bênçãos em geral

Aos meus filhos carinhosos

Aos grandes, já casados

Aos pequenos inda mimosos

Façam bem por procederem

E sejam bem cuidadosos

M

Minha chorosa mulher

O vosso nome é mudado

Vos chamarão de viúva

Depois que eu for sepultado

Console-se com nosso Deus

Conforto será achado

N

Nas santíssimas orações

Com seus pedidos rogados

Apresente teus pedidos

Aos santos advogados

Pedindo pra Jesus Cristo

O perdão dos meus pecados

O

Olhos de misericórdia

Andes sempre em vossa guia

Vos trazendo com presteza

Muita paz e alegria

Peça a proteção de Deus

Já que antes nos protegia

P

Procurei todos os meios

Fui á casa de um doutor

Ele pra ganhar os cobres

Depressa me receitou

Me dando muito esperança

Mas nesse estado eu estou

Q

Quando eu vi que o remédio

Do doutor não me salvava

Procurei Joaquim Felício

Que outra esperança dava

Lutei com ele seis meses

Cada vez pior ficava

R

Reparem os amigos todos

Cuidem bem da minha cria

Que ficará sem o pai

Tendo só a mãe por guia

Dêem sempre seus conselhos

Ditando como eu fazia

S

Se tivesse em minhas mãos

Eu ainda dava um jeito

Amparava minhas filhas

Morria então satisfeito

Mas ficando elas assim

No peito fica um aperto

T

Teodora, lhe agradeço

Os cuidados que me destes

Pois lutava sem preguiça

Tudo para mim fizestes

Eu te levo na lembrança

Pois de mim nunca te esqueces

U

O povo todo em geral

Tinha interesse por mim

A fim de gozar saúde

Porém Deus não quis assim

Revogou a minha sina

A sepultura é meu fim

V

Vai um dia e vem outro

Só não se vai meu gemido

Até o sono se foi

Por tudo tenho sofrido

Só me resta uma esperança

Que por Deus serei valido

X

Chorando ficarão todos

Chorarão por derradeiro

Depois de morto não choro

Quero chorar por primeiro

Eu choro enquanto estou vivo

Porque choro por inteiro

Z

Zeloso, eu sempre fui

Disso não se discutia

Amava servir a todos

Naquilo que eu podia

Agora que me acabo

Façam como eu fazia

TIL

Til é a letra do fim

A última do ABC

Findo também minha obra

Não há mais o que dizer

Saibam todos em geral

Que fiz este sem puder.

Este cordel pessoal, foi recuperado pelo Professor Francisco Maia dos Santos que pesquisou na zona rural de São Fernando e Jardim de Piranhas já que o mesmo vem sendo mantido por tradição oral das famílias Maia, Santos e Queiroz. Seu autor, Joaquim Maia, acometido de serera doença o escreveu no leito de morte e em razão da passagem do tempo, algumas estrofes se perderam e eu fiz esta adaptação a partir dos registros colhidos.