A ARCA DE MANÉ.

Mané de tota campeiro

Que a todo mundo atiça

De hora em hora uma reza

Nunca faltou uma missa

Queria ser sacristão

Pra ajudar na comunhão

Sem cometer injustiça.

Vivia uma vida santa

Vivia ao santo abraçado

E no lidar da lavoura

Rezava pelo roçado

Pelo solo e a semente

Não falava do sol quente

Eta sol abençoado.

Era um exemplo de fé

Era um bom conselheiro

Bebia nas águas sujas

Que tinha pelo barreiro

Mané só faltava um manto

Pra na falta de um santo

Ele ser o padroeiro.

Um dia maná se acordou

Lavou o rosto na cuia

Limpou o seu oratório

De santo tinha uma tuia

Era um santo por dia

Mané ali se benzia

Rompendo uns quatro aleluia.

Escutou o som do silêncio

Com os ouvidos do saber

Quebrou o chapéu na testa

Como quem querendo ver

Qual era seu ministério

Pressentiu que um mistério

Tava pra acontecer.

De repente uma ventania

Veio brincar com Mané

Balançou o galinheiro

Correu galinha e guiné

Jogou folhas ao leu

Quase lhe arranca o chapéu

Soprou graveto no pé.

Ele disse não tô dizendo

Que tá falando o torrão

Pelo estalar do angico

E o ranger do mourão

A minha fé que não erra

Ou pega fogo na serra

Ou vai chover no sertão.

Contemplou o céu aberto

Fez uma cara de vigário

Bateu os sinais da cruz

Pra decifrar o cenário

Engoliu seco e saiu

De alpercata e cantil

Com oração e rosário.

Tomou rumo do roçado

Que era sua terra santa

Só chegava a tardinha

Já bem pertinho da janta

Ia plantar e colher

Pra quando amadurecer

Colher o fruto da planta.

Mané era homem simples

Herdeiro do quase nada

Conhecedor das juremas

Manejador da enxada

Sertanejo sem estarro

Mané era taipa e barro

De uma fé arretada.

Mané não tava rezando

Nem pensando em sermão

Quando pinou meio dia

Hora quente no sertão

Escutou um faiscado

De botina no roçado

Tava tendo uma visão.

Tava ele frente a frente

Com aquele tal de encanto

Nem se quer piscava o olho

O seu espanto era tanto

Que Mané se ajoelhou

Com voz fraca perguntou

Quer reza ou quer quebranto.

Ôxe nem uma coisa nem outra

Respondeu o tal encanto

Vestido com um gibão

Como se fosse um manto

Trazia nos dentes ouro

Todo jorjado em couro

Era um vaqueiro santo.

Se aproximou de Mané

Quase sem pisar no chão

Tirou o chapéu da cabeça

Deu-lhe um aperto de mão

Fez um gesto de astuto

Comprimento de matuto

Quase uma devoção.

Mané de tota campeiro

Tu conhece o doce e o fel

Tu es cabra de sustança

Es um devoto fiel

E nas conta do Divino

Tu es o óleo mais fino

Das lamparinas do céu.

Mané disse será um sonho

Coisa que eu nunca vi

Ou será o que tô pensando

Valei-me eu faleci

Mais se eu tô esquentando

O meu corpo tá suando

Morrer mesmo eu não morri.

No sertão se tem de tudo

Do mal olhado ao quebranto

Tem raiz pra curar dor

Que doer em qualquer canto

Tem parteira e raizeiro

Tem o santo do vaqueiro

Mais não tem vaqueiro santo.

E o santo de couro vendo

A inocência de Mané

Se adiantou na prosa

Como quem quer e não quer

Eu vim pra te transmitir

Aqui nesse cariri

Do sertão de canindé.

Quer acredite ou não

Sei que sua fé abarca

Tu vai ver o impossível

Deixar no sertão a marca

Eu vim pra te instruir

Tu é quem vai construir

No teu terreiro uma arca.

Meu santinho sertanejo

Sei que tu é mensageiro

Sou plantador de roçado

Nunca fui carpinteiro

Lá no céu tu tem tarimba

Aqui só cavo cacimba

Ou remendo galinheiro.

Voti desapareceu

Vaqueiro com santo e tudo

Ficou Mané no roçado

Desmantelado e mudo

Aperreado e mufino

Escutando o violino

Do silêncio mais agudo.

Botou a enxada nas costas

Pegou o rosário e o cantil

Fez o caminho de volta

Sem dar um tom nem um piú

E só deu conta de si

Quando escutou por ali

Alguém fazendo um pisiu

Aí levou outro susto

Quando avistou no terreiro

Madeira de todo tipo

De jaqueira a pau-pereiro

Tinha tabuas de imburana

Martelo serrote e plaina

E toras de cajueiro.

Tava tudo confirmado

Mané não tava iludido

Tava ali a encomenda

Sem ser tirado o pedido

Mais sua crença não nega

Nem sua fé era cega

Nem Mané desprevinido.

Mané deu plantão nas reza

Fez promessa apressada

Não tinha santo no céu

Que não ouvisse as pancada

De Mané batendo prego

E um serrote meio cego

Fazendo a maior zoada.

Os santos se reunirão

Cada um na sua função

Ate o santo de couro

O que desceu no sertão

Concordou sem hesitar

Que era melhor terminar

Logo com a tal missão.

Se o cordel não está errado

E o espirito não me engana

Mané trabalhou dia e noite

Sem se quer bater pestana

Sendo no normal dos planos

Era serviço pra dez anos

Mané fez em uma semana.

Depois do serviço pronto

Não sobrou uma estaca

Pintou um latão furado

Improvisou uma placa

Num mastro de umburana

Quebrou uma garrafa de cana

E inaugurou a tal arca.

Deixou as portas abertas

Escrito a entrada é franca

Não tem idade e tamanho

Nem cor preta nem cor branca

Melhor ser salvo apertado

Do que morrer afogado

O resto o Divino banca.

Ai entrou um enxame de abelha

Que faz mel de uruçu

Um carcará sanguinolento

Um casal de sanhaçu

Depois fedendo a carniça

Junto com uma preguiça

Entrou um casal de urubu.

Entrou um casal de jumento

Uma família de cupim

Dois tatus de pé de serra

Besouros de amendoim

E com a bunda de gordura

Um casal de tanajura

Com mais um par de saguim.

E a arca foi se enchendo

De bicho pra mais de cem

Foi o maior rebuliço

Era o maior vai e vem

Entrou galinha e frango

Ate um casal de calango

Entrou na arca também.

E os bichos vinham chegando

Parecia uma procissão

Vinha macaco em folia

Vinha guiné e pavão

Vinha paca e cutia

Entrou um casal de gia

E um par de camaleão.

A noticia foi se espalhando

No jornal da bicharada

Ate besouro mangangá

Não quis mais dá ferroada

Entrou um galo de espora

Passou correndo uma caipora

Entrou na arca apressada.

O povo da região

Não quiseram arriscar

Deixaram tudo pra traz

Urupemba e alguidá

Os biscuit dos petisqueiro

O pilão e o candeeiro

Farinha feijão e fubá.

Não quiseram nem saber

Se as coisas tinham valor

Se é pra viver com sorte

Pra que pá e ciscador

Deixaram a rede armada

Bisaco e espingarda

Fogareiro e abanador.

Mulher não faltou uma

De biata a benzedeira

Veio anita a professora

Dona Zefa a costureira

E pra quem não acredita

Ate Maria Bonita

Veio com a mulher rendeira.

Dos homens nem se fala

Veio do padre ao agricultor

Veio ate Zeca barbeiro

Sem navalha e amolador

Veio uns bêbados a trupicar

Cai aqui cai acola

Nós não fica não senhor.

Veio pra entrar na arca

Um vendedor de beiju

Uma quenga parideira

Mais quatro menino nu

Assoando o catarro

Trazendo um boizinho de barro

Comprado em Caruaru.

Ouviu-se uma nova ordem

Não entra mais um se quer

Feche logo a porteira

E se agarrem na fé

Pois se Mané tivesse fora

Nem por Deus Nossa Senhora

Não entrava nem Mané.

As portas foram fechadas

Com travas de sucupira

Com lacre visgo de jaca

Amarradas com imbira

Como se fosse uma tora

Mais dois de pilões de escora

assim nem o diabo tira.

Os dias foram passando

Segunda terça e quinta

E o céu pintado de azul

Não escurecia a tinta

Das nuvens se quer um pingo

Sexta sábado e domingo

E a seca chegou nos trinta.

Ai começou o furdunço

Do povo já reclamando

Mulheres batendo boca

Os meninos arengando

Reclamava os bigodudo

Pra que um barco graúdo

Se nem pingar tá pingando.

O povo fitava o céu

Vendo o sol amarelado

Parecia um fogareiro

Cheio de milho assado

Mais nem uma nuvem viúva

Chorava pra cair chuva

No velório esturricado.

Mané não aquentou mais

Plantou o joelho no chão

Cortou um feixe de reza

Amarrou com devoção

Botou nos ombros dos santos

Sintam o peso dos prantos

Por não chover no sertão.

Se aí em cima tem água

Aqui em baixo não tem

E cristão com a fé seca

Não molha reza a ninguém

É peixeira enferrujada

Furem as nuvens a punhalada

E o povo gritava amém.

A terra se estremeceu

Em um pipoco cruel

Balançou as catatumbas

Foi grande o sarapatel

Com o povo ali espremido

Parecia um estampido

Dos bacamartes do céu.

A grota despejou água

Cobriu todo o vilarejo

Cobriu os pés de aroeira

Macambira e carquejo

E os matutos de alegria

Em cima da arca dizia

É o diluvio sertanejo.

A arca deu um rodopio

Sem rumo pra navegar

Um morcego escorregou

Por cima de um preia

Dona Zefa a costureira

Amassou uma cuscuzeira

Na testa de Alencar.

Por certo toda essa água

Não tava vindo do céu

Mais que diluvio invocado

Aqui nesse mundaréu

O sol continua em brasa

Das nuvens nem se quer vaza

Um chuvisquinho a granel.

Dezembro foi se passando

Já descambando janeiro

As águas foram baixando

No ferver de fevereiro

Pra ver o chão não se via

Somente a noite e o dia

Servia de timoneiro.

Mané disse é agora

A minha fé não divaga

Vou procurar um sinal

Para cumprir minha saga

Saber se a terra ou caminhos

No agreste de Dominguinhos

Ou no sertão de Gonzaga.

Aí soltou a asa branca

O passarinho do sertão

Não há no alto do céu

Nem no mais baixo torrão

Uma ave mais indicada

Mais fiel e consagrada

Pra cumprir essa missão.

É a rainha da caatinga

Do espinho assassino

É a bandeira da serra

É a moeda e o hino

É o simbolo do sertão

É o selo e o brasão

Da nação do nordestino.

Partiu assim a asa branca

Na sua missão voadora

Majestade do sertão

Onde o sol quente estoura

Hospedaria dos bichos

Espinhos e carrapichos

Das cigarras cantadoras.

Dia claro e de calor

Mané teve uma surpresa

Lá vem vindo a asa branca

No seu voo de princesa

No seu bico tinha assim

Um pendãozinho de capim

Pedacinho da natureza.

Entrou na arca orgulhosa

E pousou na cumeeira

Trazia no bico a resposta

Um raminho de catingueira

A arca se fez em festa

Com um forro da mulésta

Muito samba e gafieira.

Assim termino esse causo

Se é verdade ou noé

Não assumo esse pecado

E nem duvido da fé

Se outra arca existiu

No sertão se construiu

Outra arca por Mané.

Ebenézer Lopes
Enviado por Ebenézer Lopes em 23/12/2013
Código do texto: T4622965
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