Quem canta seus males espanta

- “O senhor é músico, não é?”

A pergunta pegou o nosso amigo violeiro de surpresa. Ele estava tomando uma cervejinha em um bar, nas proximidades do Farol da Barra, quando a figura sorridente, meio esfarrapada lhe dirigiu a palavra. O sujeito apontou para a capa que guardava o violão e tornou a perguntar:

- “Toca com a Ivete?

Toca com o Xandi?

Com o Chiclete?

Ou com os Filhos de Gandhi?”

Foi o bastante para quebrar o gelo. O violeiro abriu um sorriso e respondeu-lhe.

-“Eu tenho umas coisinhas.

Nem sei se assim tão boas.

Eu toco músicas minhas

e também de outras pessoas."

E falando assim a mesma língua, começaram a conversar. O garçom veio até a mesa e perguntou se o pedinte estava incomodando. Este, já acostumado com o mau-trato de alguns garçons, fez menção de ir embora. Mas o violeiro, o impediu e dirigindo-se ao garçom solicitou que trouxesse mais um copo. A cara que o garçom fez realmente não foi das melhores, e o copo demorou a chegar...

O papo não parou por causa da demora. O sujeito contou que só tinha cursado uns aninhos de escola, o suficiente para aprender a ler, escrever e fazer contas, mas que falar era com ele mesmo. Parecia que já tinha nascido sabendo. E que aquelas rimas lhe saíam assim com certa facilidade. Disse que tinha vindo do sertão, não tinha arranjado emprego e estava sobrevivendo da boa-vontade dos outros

O violeiro escutava divertido. Não era todo dia que se encontrava uma pessoa daquelas.

- “E Caymmi? O senhor toca Caymmi?”

- “É doce morrer no mar...”

- “Éééé´. Esse aí mesmo. O Senhor sabe? Eu mudei uma música dele.”

- “É mesmo? Cante aí pra eu ouvir”

- “Sabe aquela música que começa assim: ‘Ai, mas que saudade em tenho da Bahia’?”

- “Sei! ‘Saudade da Bahia’.”

- “Pois eu canto ela assim, ó:

Ai, se eu pudesse comer u’a galinha

Já me contentava só com a farinha

Ronca meu estômago que está aflito

Eu imagino pão com ovo frito

E um café pingado pra acompanhar

Ah se eu conhecesse alguém num restaurante

Desses que recebe gente elegante

Eu comia frango fosse coxa ou peito

Pedia rápido um prato feito

De qualquer coisa que tivesse sido o jantar

Ponha-se no meu lugar

Me traga uma codorna ou uma perdiz

E eu nem vou reclamar

Comendo aquele prato que ninguém mais quis

Veja que situação

Olhei para um barbante e vi macarrão

E eu nem tomei birita

Eu digo “tô com fome” e ninguém acredita.

O violeiro aplaudiu a paródia. Até o garçom que finalmente chegava com o copo não pode esconder uma risadinha. Antes que a cerveja fosse servida, o artista agradeceu, recusando.

- “Bebo não senhor. Minha vida já é difícil sem cigarro e sem bebida. Pra que complicar mais? Mas agradeceria se o senhor me desse uns trocados para eu levar um rango pra patroa e pros meninos.”

De bom grado, nosso amigo puxou do bolso uma nota de dez e passou para o artista que se desmanchou em agradecimentos. Rindo de orelha a orelha, ele foi se afastando repetindo “Deus lhe pague”.

O violeiro acabou de tomar sua cerveja ainda com as frases da paródia na cabeça.

“Um artista!”, pensou. “Só lhe faltava uma oportunidade”.

Pegou sua viola e saiu cantarolando:

“Pobre de quem acredita, na glória e no dinheiro para ser feliz”...

Sérgio Serra
Enviado por Sérgio Serra em 20/08/2007
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