A VOZ INTERIOR DE LUCCA

Ele tinha um voz interior que se manifestava quando bem queria. Não era mero produto da imaginação ou fantasia. Era algo de verdade, que por em algumas vezes sussurrava, já em outras. berrava. E fazia isso de tal forma que parecia querer estourar seus tímpanos e miolos. Só comentou com uma namorada que teve aos 12 anos, Maria Inês, que também lhe confiara uma segredo com ninguém mais compartilhado: aquelas estranhas vontades que sentia quando ficava perto de outra menina, Jussara. Essa troca de confidências foi até confortante, porque a amiga sugeriu que poderia ser o anjo-da-guarda exercendo seu papel. Mas não eram sugestões angelicais que aquela voz lhe trazia. Muito pelo contrário. O instigava a fazer coisas um tanto estranhas, como dar uma rasteira no diretor do colégio ou colocar veneno na comida de sua avó, sempre tão avó, carinhosa e prestativa. Mas Lucca até gostava daqueles conselhos com certos temperos esquisitos, pois fazia despertar nele um lado transgressor que pouco admitia, mas que dava certo prazer. Tanto que, mentalmente, pedia que não parasse de dar esses sinais de vida e. se pudesse, que fosse feito com maior frequência e intensidade. Preferia que ela viesse aos berros, coisa que muitas vezes acontecia quando já estava no sétimo sono, fazendo com que saltasse da cama com o coração a mil, suando tanto que precisava colocar outro pijama. Teve uma vez em que os berros foram tão berrados, mas tão berrados, que se mijou, coisa que não fazia desde os tempos de menino. Lucca passou a manter com sua voz interior uma relação de mão dupla amigável, que permitia, inclusive sugerir temas para que ela fizesse o serviço. Como enforcar o cachorro do vizinho, que ficava latindo minutos sem parar quando uma simples mosca voasse pela redondeza. Ou colocar o Zé Trigueiro, do posto, num pelourinho para lhe deferir chicotadas e mais chicotadas. Lucca pesquisou na Barsa, nos tempos jurassicamente anteriores à internet, sobre aquilo que lhe acometia desde sempre e obteve como resposta vários possíveis diagnósticos. De uma manifestação típica de psicopatia à uma forma do além-vida se perpetuar nesse mundo dos vivos. Também leu algo como produto do seu inconsciente, como o que queria dizer a si mesmo, mas não tinha coragem, ou oportunidade de fazê-lo. Essa explicação, por demais jungiana, o perturbava demais, pois acreditava que gostava do professor, da avó, do cachorro do vizinho e até do Zé Trigueiro, e pensar que, no fundo, queria detoná-los de alguma forma não era sentimento muito fácil de conviver. Era como se tivessem dois Luccas, o bom e o mal, convivendo sob o mesmo teto, só que com olhares diferentes diante de cada coisa. O medo maior que tinha era fazer acontecer, de verdade, essas ideias que a tal voz interior insistia em instigar, cutucar. Será que estava enlouquecendo pouco a pouco? Certa vez a Maria Inês deu a entender essa possibilidade, que ficou martelando na cabeça semanas a fio. Foi pesquisar também sobre os sinais de loucura na Barsa e muitos estudiosos do comportamento humano, mestres em faculdades famosas dos Estados Unidos, exploravam o assunto, dando a entender que muitos loucos, daqueles que precisavam de camisa-de-força e ficavam entupidos de remédios para sossegarem um pouquinho que fosse, entravam em surto alegando que certa voz gritava nos ouvidos sem dar sossego e isso os tirava do sério. A possibilidade de estar pirando era por demais aterrorizadora. Tanto que passou a fumar maconha para esquecer por alguns minutos aquela possível situação na qual estaria entrando, como se fosse um túnel longo, escuro e silencioso do qual não conseguia vislumbrar onde iria dar. Bebida alcoólica, que já fazia parte das saídas rotineiras com os amigos, passou a ser algo replicado todos os dias, muitas vezes várias vezes por dia. Disso para cocaína foi passo curto. Passou a viver, então, entorpecido pela bebida e drogas sem ficar mais careta, parindo um novo Lucca bem diferente do original, que se ouvisse alguma voz interior não iria estranhar mais, pois o que mais escutava agora eram sons descompassados, com volume se alterando sem dar trégua. No meio desse turbilhão imenso, a tal voz não passava de mero ruído a mais, sem grande destaque junto aos outros sons, estridentes, com os quais conviva numa sinfonia alucinada que nunca chegava aos acordes finais. E assim podia seguir sua vida sem dar muita bola para o que a voz interior lhe dissesse. Por mais escabroso e condenável que fosse.

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Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 19/01/2018
Reeditado em 10/05/2020
Código do texto: T6230135
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