O genioso fidalgo Dom Quixote da Mancha
Apresento um herói de epopéia
como aqueles que havia no passado
ou somente um maluco apaixonado
pela sua princesa Dulcinéia
Dom Quixote empenhado na idéia
de fazer o retorno dos andantes
confundiu os moinhos com gigantes
sempre junto de Sancho o escudeiro
se tornando o bizarro cavaleiro
no maior personagem de Cervantes
I - Primeiro episódio que trata de como um fidalgo sonhador se transformou no último cavaleiro andante
Num vilarejo da Mancha
dos tempos de antigamente
vivia em uma fazenda
um fidalgo decadente
que de amigos e vizinhos
era em tudo diferente
Sem jamais compartilhar
interesses com seus pares
repetia relutante
as rotinas regulares
se mostrando entediado
entre bailes e jantares
Vestia trajes decentes
mas modestos no valor
Tinha um velho pangaré
e um galgo corredor
O que mais o comprazia
era ser madrugador
Seu repasto eram ovos
com torresmo na farinha
Carne, queijo e batata
já faltavam na cozinha
Nos domingos escapava
com um caldo de rolinha
Dizem que este manchego
com sua vida discreta
por uma tal de Aldonza
nutria paixão secreta
sem Cupido nunca ter
acertado nela a seta
Convivia em sua casa
com sua jovem sobrinha
uma velha empregada
prestimosa e sozinha
e um moço responsável
por tarefa comezinha
Sendo ele alto e magro
beirando cinquenta anos
já começava a mostrar
nos atos cotidianos
toda aquela rabugice
natural dos veteranos
Seu provável sobrenome
era Quixana ou Quezado
mas importa é sabermos
que o fidalgo mencionado
tinha tempo até sobrando
pra ficar desocupado
Certo é que a gerência
da fazenda esquecia
perdendo até interesse
nas caçadas que fazia
quando começava a ler
livros de cavalaria
Fascinado por novelas
de cavaleiros andantes
tinha livros a granel
atulhando as estantes
onde vinha reunindo
traças, grifos e gigantes
E por sempre aumentar
o seu tempo com leituras
cada vez gastava mais
em cadernos e brochuras
precisando mais dinheiro
pra arcar com as faturas
Com as grandes coleções
consumindo sua renda
resolveu por desatino
demarcar e por à venda
por qualquer uma merreca
partes da sua fazenda
A sobrinha se alegrava
sempre que chegava o dia
de ver o seu velho tio
indo pra barbearia
ou no rumo da igreja
pra ouvir a homilia
Acontece que o fidalgo
com o cura e o barbeiro
só falava em romances
por ficar o dia inteiro
discutindo qual seria
o mais nobre cavaleiro
Por um tempo cogitou
escrever sua novela
com gigante, feiticeiro,
sem faltar uma donzela,
e também um cavaleiro
para ser vassalo dela
Seu intento era mostrar
triunfando em campanha
um guerreiro até maior
que El Cid na Espanha
mas trocou a narrativa
por idéia mais estranha
Por encher sua cabeça
com tanta coisa que lia
e ficar toda semana
trocando noite por dia
pouco a pouco se deixou
mergulhar na fantasia
De tanto ler e reler
novelas e coisas tais
foi ficando convencido
que elas eram reais
e a fantasia dos fatos
já nem separava mais
A empregada servindo
a farofa com torresmo
certa feita o escutou
dizendo para si mesmo:
- Na condição de fidalgo
eu estou vivendo a esmo!
Ele ainda prosseguiu
dizendo em sua loucura:
- Quero ser um paladino
indo atrás de aventura
e vou me tornar famoso
por meus atos de bravura!
A sobrinha igualmente
deparou com o seu tio
de pé em cima da cama
num completo desvario
quase não acreditando
nas coisas que ela viu
Empunhando o seu bastão
qual se fosse uma espada
dava golpes na parede
deixando ela riscada
Ela viu o destrambelho
mas não entendia nada
Foi não foi ele dizia
um e outro disparate:
- Já deixei 4 gigantes
derrotados em combate
mas não é com o cansaço
que um soldado se abate!
Foi então que decidiram
retirar do seu alcance
todos livros com o tema
de novela ou de romance
calculando que depois
não teriam outra chance
Todavia elas ficaram
sem saber o que fazer
quando ele sorrateiro
começou a se esconder
sempre com a intenção
de continuar a ler
Certa feita procurando
esconder-se um momento
no porão da sua casa
encontrou o armamento
que o saudoso bisavô
conservou do regimento
Encontrou um chifarote,
uma adarga, um cinturão,
as ombreiras e as grevas,
o gorjal e o morrião,
os coxotes e manoplas,
e a lança espontão
Completava uma couraça
bolorenta e amassada
que apesar de apresentar
leves manchas na lombada
pelo seu tempo de uso
reputou por conservada
Experimentou o traje
que ficou meio folgado
mas na sua fantasia
tudo estava ajustado
como se ele já fosse
um guerreiro do passado
Pela falta de viseira
no seu velho morrião
ele improvisou a peça
recortando um papelão
amarrando com arames
como a grande solução
Ao olhar-se no espelho
com aquela armadura
novamente acendeu-se
a centelha da loucura
decidindo nessa hora
se lançar na aventura
- Cavalgando meu corcel
marcharei numa campanha
reparando as injustiças
dessas terras de Espanha
pra honrar os cavaleiros
em mais de uma façanha!
No momento que estava
essas coisas cogitando
de repente escutou
o cavalo relinchando
como se o matungão
estivesse lhe chamando
Convencido que já era
um guerreiro de novela
foi até seu pangaré
colocando nele a sela
enxergando um corcel
no matungo magricela
Quis montar com altivez
imitando a narrativa
mas depois de repetir
mais de uma tentativa
a subida por um mocho
foi melhor alternativa
Já montado no matungo
decidiu ser importante
só chamar o seu corcel
por um nome elegante
e de tantos que pensou
o melhor foi Rocinante
- Sairei no meu cavalo
viajando em toda serra
Um perfeito paladino
a cruzar por essa terra
e Dom Quixote da Mancha
será meu nome de guerra!
- Meu intento é honrar
os que já vieram antes
restaurando o apogeu
dos cavaleiros andantes
sendo o mais prodigioso
em façanhas relevantes!
Como todo cavaleiro
tem por musa a donzela
a quem ele considera
a mais virtuosa e bela
o fidalgo já sabia
que Aldonza era ela
Mas pensando que a moça
tinha um nome embaraçoso
preferiu chamar a musa
Dulcinéia de Toboso
que na sua opinião
ressoava harmonioso
Tendo o nome escolhido
e trajando a armadura
com desejos de fazer
grandes atos de bravura
Dom Quixote decidiu
se lançar na aventura
A sobrinha avistando
o figalgo na estrada
cavalgando com o traje
disse para a criada:
- Ele nem nos avisou
onde é a mascarada...
II - Segundo episódio que trata da primeira jornada que o genioso Dom Quixote da Mancha fez na sua terra
Vou agora prosseguir
com a minha narrativa
recolhida nos anais
da memória coletiva
ou até em documentos
de pesquisa exaustiva
O leitor ficou ciente
no decurso do relato
como foi que o fidalgo
decadente mas pacato
começou a baralhar
lenda, ficção e fato
Nem o mais abilolado
nunca não tivera antes
a idéia que ele teve
em favor dos semelhantes:
restaurar o resplendor
dos cavaleiros andantes
Quando ele convenceu-se
que seu plano era rotundo
e a moral cavalheiresca
já fazia falta ao mundo
na fazenda onde morava
não ficou nem um segundo
Vestindo sua couraça
com bastante confiança
embraçou a sua adarga
empunhou a sua lança
só pensando em avançar
na estrada sem tardança
Cavalgando satisfeito
com a velha armadura
uma idéia quase o fez
desistir da aventura:
- Não existe cavaleiro
antes da investidura...
Como já não separava
o real da fantasia
nessas horas o velhote
seus problemas resolvia
recordando os romances
que na memória trazia
Pois pra ele as novelas
forneciam um roteiro:
- Tudo posso resolver
ao topar com o primeiro
que quiser me ajudar
me ordenando cavaleiro
E passou a divagar
que um grande escritor
da estirpe de Homero
narraria com vigor
sua saga estupenda
encantando ao leitor
- Não duvido que narrando
minha história verdadeira
ao contar as aventuras
desta jornada primeira
num estilo exuberante
faça por esta maneira:
- O paladino Quixote
de engenho tão subido
o território espanhol
percorria decidido
escrevendo a epopéia
do guerreiro destemido
- Oh, cronista, peço que
em seu relato facundo
lembre que o cavaleiro
que é da Mancha oriundo
sem ter o seu Rocinante
não assombraria o mundo!
Desdizendo o velhote
no decurso desta rota
não estava acontecendo
nada digno de nota
Mesmo o que ele fazia
não daria uma anedota
Esperando encontrar
na estrada um gigante
foi não foi ele apeava
do cavalo Rocinante
com intento de mijar
pra então ir adiante
Por veneta o cavaleiro
escanchando-se na sela
repetia pra si mesmo
a linguagem de novela
imitando do seu jeito
trechos retirados dela:
- Minha doce Dulcinéia
que na hora da partida
aceitou minha viagem
com a alma dolorida
sei que foi aquela dor
a maior da sua vida!
- Se a saudade quiser
prolongar o sofrimento
deixe ser a esperança
o penhor do seu alento
que sem ela nada sou
mas com ela me ausento!
- E com tanta esperança
me levando pra diante
eu prometo, doce amada,
que o primeiro gigante
derrotado em batalha
deixarei a seu talante!
Disparando disparates
feito um doido varrido
Dom Quixote cavalgando
por um trajeto comprido
foi ficando ainda mais
de miolo amolecido...
Depois de desperdiçar
muito tempo em viagem
com o dia terminando
avistou a estalagem
que cansado e faminto
escolheu como paragem
O lugar que encontrou
era um sobrado singelo
mas Quixote absorto
em seu mundo paralelo
presumia estar diante
do mais imenso castelo
O velhote conduzindo
o cavalo pra pousada
conservando a viseira
do seu elmo levantada
viu duas moças na porta
cada qual mais assustada
Totalmente envolvido
pelo mundo das novelas
Dom Quixote presumiu
serem duas damizelas
Refreando Rocinante
foi dizendo para elas:
- Se as moças permitirem
eu explico a que venho
pois da ordem cavaleira
sou um defensor ferrenho
e por damas tão galantes
com mais zelo me empenho
No estado que estava
ele não podia ver
que as duas em questão
eram feias de doer
e discursos empolados
não iriam entender
Sem falar que elas eram
da baixa sociedade
mas Quixote já estando
longe da realidade
enxergava em cada uma
um modelo de beldade
Na presença de figura
tão faltosa de juízo
inda mais com um colete
velho, feio, sujo e friso
essas duas se olhavam
sem poder conter o riso
Quase ficando a ponto
de perder a polidez
mas fazendo um esforço
para se manter cortês
Dom Quixote para elas
foi falando outra vez:
- Nada existe mais afim
com as vossas formosuras
no que tange à etiqueta
que a virtude das mesuras
mas os risos malbaratam
o padrão das composturas
Escutando o discurso
de linguagem rebuscada
e ficando novamente
sem ter entendido nada
elas passaram do riso
para grossa gargalhada
Vendo elas se portando
sem nenhuma etiqueta
e que ambas já estavam
gargalhando com careta
D. Quixote foi passando
de cordato pra ranheta
Passariam desse ponto
se não fosse o albergueiro
ir saindo do albergue
caminhando bem ligeiro
para ver se poderia
atender ao cavaleiro
Ajudando Dom Quixote
a descer da montaria
mesmo ficando cismado
pelo traje que vestia
indagou se ele estava
procurando pousadia:
- Se o amigo quiser
retardar sua partida
deixe o cavalo comigo
e prove nossa comida
Só não posso oferecer
um lugar para dormida
- Castelão, em humildade
ao senhor não me igualo
Eu tenho plena certeza
que terá o meu cavalo
um distinto tratamento
ensejando seu regalo
- Meu corcel é Rocinante
um cavalo sem iguais
que na liça mais renhida
não retrocede jamais
exibindo o seu valor
em pujanças colossais
Mas o albergueiro viu
que o velho matusquela
tinha só por montaria
um cavalo de Gonela
perigando a se vergar
só com o peso da sela
Sem ter muita paciência
com sujeito extravagante
inda mais fantasiado
como cavaleiro andante
carregou o seu matungo
entregando ao ajudante
Da cocheira retornou
reparando divertido
que as moças com Quixote
já tinham se entendido
ajudando o cavaleiro
para que fosse despido
D. Quixote na cantina
sentou-se ao lado delas
conversando com as duas
que chamava de donzelas
Elas o tinham levado
para perto das janelas
E assim foram tirando
a lombada e corselete
pra deixar o cavaleiro
sem o peso do colete
A maior dificuldade
foi tirar o bacinete
Depois que elas puxaram
sem ter visto resultado
Quixote solicitou
que o deixassem de lado
parecendo para todos
um cogumelo sentado
Ele imaginando estar
numa enorme fortaleza
e que estava recebendo
tratamento com fineza
fazia belos discursos
para as damas da mesa:
- Nunca fora um cavaleiro
por damas tão bem servido
como fora Dom Quixote
o guerreiro mais subido
Dele tratavam donzelas
com o melindre devido
Elas foram escutando
sem dar muita atenção
só pedindo que parasse
com a sua explanação
na chegada do momento
de fazer a refeição
No cardápio apresentado
por motejo ou descaso
tinha pão que foi servido
com dois dias de atraso
num pirão de caldo grosso
dentro de um prato raso
E no prato com o caldo
parecendo uma lavagem
disputavam o espaço
agrião, jiló e vagem
com o sal e a pimenta
misturados sem dosagem
Mas pra ele a gororoba
era o mais fino jantar
dizendo que a receita
iria muito agradar
ao cozinheiro do rei
que ela fosse provar
E mesmo que na cabeça
lhe pesasse o morrião
parecendo satisfeito
com a nobre refeição
para as damas ele fez
uma breve confissão:
- As damas vão assentir
que agora eu não minto:
se a fome está na mesa
para ser claro e sucinto
quão difícil é jantar
sem parecer um faminto!
Nisso foi chegando ali
distraído um porcariço
que entrava na taberna
retornando do serviço
assoprando cinco vezes
sua flauta de caniço
Escutando aquele som
(para ele harmonioso)
Dom Quixote confirmou
comovido mas ditoso
que estava no salão
dum palácio suntuoso
Mas estava incomodado
com a tal investidura
pra poder de uma vez
se lançar na aventura
percorrendo a Espanha
na sua cavalgadura
VIII - Oitavo episódio que trata da mais famosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento
O leitor que acompanha
essa prazerosa história
do andante Dom Quixote
cuja fama foi notória
vai ver agora o herói
numa nova trajetória
A data certa dos fatos
por um tempo pesquisei
mas o ano em que se deu
eu mesmo dizer não sei
só podendo adiantar
que foi no tempo do rei
No episódio passado
já contei como Quixote
recrutou o seu vizinho
que era gordo e baixote
para ser um escudeiro
nas campanhas do velhote
Sancho Pança tinha sido
camponês a vida inteira
e somente conhecia
coisas da lida campeira
Pobre, leigo, e outra mais,
de pouco sal na moleira
Mas com ele o cavaleiro
retomou o seu intento
de fazer outra jornada
dando até consentimento
para o companheiro ir
escanchado num jumento
Repetindo na viagem
os trajetos e locais
os parceiros avançavam
percorrendo os chaparrais
foi então que avistaram
trinta moinhos ou mais
Dom Quixote se aprumando
disse para o escudeiro:
- Não podemos prosseguir
antes de passar primeiro
por esses brutos gigantes
dali do campo fronteiro!
Sancho Pança intrigado
disse sem acanhamento:
- Me desculpe o patrão
mas olhando bem atento
lá na frente eu somente
vejo moinhos de vento!
Dom Quixote respondeu
sem perder a compostura:
- Para seu conhecimento
sou versado em aventura
Reconheço um gigante
mesmo quando na lonjura!
- Que eles venham provar
os meus golpes fulminantes
Sou espelho e resplendor
dos cavaleiros andantes
Estou pronto pra vencer
o mais forte dos gigantes!
- Agora você vai ver
companheiro Sancho Pança
como faz um cavaleiro
valoroso que avança
nas fileiras inimigas
confiando em sua lança!
Dizendo isto Quixote
seu cavalo esporeou
e no rumo dos moinhos
resoluto disparou
O suposto cavaleiro
para o mundo anunciou:
- Sou D. Quixote da Mancha
forte, bravo e subido!
Eu jamais fui à peleja
onde voltasse vencido!
Essas terras nunca viram
guerreiro mais aguerrido!
Num terreno inclinado
avançava Dom Quixote
mas o cavalo sem forças
para sustentar o trote
só a custo é que subia
carregando o velhote
- Rocinante, meu corcel
tão veloz e vigoroso
que jamais retrocedeu
em combate perigoso
é a hora de honrarmos
Dulcinéia de Toboso!
O matungo estranhando
o trocar das andaduras
foi subindo o barranco
já sentindo contraturas
sem firmeza pra sequer
levantar as ferraduras
Mesmo com seu pangaré
derrapando no caminho
avançava o cavaleiro
para enfrentar sozinho
o gigante embrutecido
que era só um moinho
Como faz um cavaleiro
que disputa um torneio
Dom Quixote deu a carga
no moinho sem receio
de envergar a sua lança
que foi partida no meio
E como se não bastasse
quebrar a arma somente
uma rajada de vento
surgida assim de repente
fez as velas do moinho
rodarem rapidamente
O freio de Rocinante
na vela foi enganchado
Junto dele o cavaleiro
foi rodando pendurado
e dum jeito esquisito
despencou do outro lado
Sancho Pança quando viu
seu patrão estatelado
parecendo um jabuti
com o casco emborcado
na garupa do jumento
foi chegando avexado:
- Eu não sei se o patrão
é mais louco do que certo
mas fazendo o seu cavalo
disparar em campo aberto
não viu que eram moinhos
nem olhando mais de perto?
Ajudando o cavaleiro
a levantar-se do chão
Sancho Pança escutou
a resposta do patrão
que a culpa da derrota
imputava a Frestão:
- Foi Frestão, o feiticeiro
que por um ato mesquinho
vendo que eu venceria
esses gigantes sozinho
prontamente os deixou
transformados em moinho
Dom Quixote novamente
remontou em Rocinante
que meio desconjuntado
chouteava hesitante...
Sancho remontou o asno
pra seguirem adiante...
Mesmo com alguma dor
Dom Quixote ao patrício
começou a explanar
coisas sobre seu ofício
tudo estando de acordo
com seu mundo fictício:
- Não me venha acudir
se eu correndo perigo
estiver em desvantagem
combatendo um inimigo
Não permito ao escudeiro
batalhar junto comigo
- É mister do cavaleiro
não ser dado a lamento
pelas dores corriqueiras
de espasmo ou ferimento
quando forem resultantes
de algum enfrentamento
Quis saber o escudeiro
com o respeito devido:
- Só espero que gemer
não me seja proibido
que até um calo no pé
eu já acho dolorido
Repassando na memória
os livros que tinha lido
Dom Quixote assegurou
que seria permitido
pois conforme as novelas
tudo era respondido
Relativo aos despojos
Sancho queria partilha
Tinha sido convencido
a seguir naquela trilha
com promessa de estar
no governo duma ilha:
- Não esqueça o patrão
que desde minha partida
aceitei ser escudeiro
nesta jornada comprida
para ser recompensado
com a ilha prometida...
- Não se preocupe Sancho
pois aqui e além-mares
com os despojos da guerra
enricaram os meus pares
e pretendo que os nossos
ultrapassem os milhares
- Governar a sua ilha
será um grande serviço
pois quando chegar a hora
de honrar o compromisso
vai ser uma insensatez
aceitar menos que isso
Estando nessa conversa
depararam um bambuzal
Quixote ficou ditoso
de encontrar este local
Com uma vara comprida
faria a lança ideal
E a ponteira de ferro
da lança que se quebrara
Dom Quixote aproveitou
pra por na ponta da vara
tendo agora a sua arma
feita de ferro e taquara
Depois de terem os dois
por lonjuras viajado
aquela noite passaram
num arvoredo copado
debaixo de vasto céu
por estrelas cravejado
Com a lua clarejando
a paisagem européia
Quixote varou a noite
a pensar em Dulcinéia
a personagem central
de sua linda epopéia:
- Oh, minha dama gentil
não despreze meu amor...
Que farei se nunca mais
vir seu rosto encantador?
Será longo meu penar!
Será grande minha dor!
- Sei que nunca poderia
outra ser minha princesa
mas se as flores do campo
tivessem sua beleza
eu ficaria mais tempo
contemplando a natureza!
- Oh, estrela rutilante,
a razão do meu enlevo,
não serei o seu poeta
que a isso não me atrevo
mas não deixo de pagar
os suspiros que lhe devo!
Como se fosse Quixote
realmente apaixonado
dava suspiros enquanto
Sancho Pança estirado
sem ouvir grilos ou rãs
dormia um sono pesado...
XI - Décimo primeiro episódio que trata do que sucedeu ao cavaleiro com uns cabreiros e de como concluíram que era um maluco (completo)
O "famoso" Dom Quixote
conforme muitos autores
estava sempre disposto
malgrado vários fatores
a cruzar toda Espanha
defendendo seus valores
Todavia os relatos
de suas doidas ações
apresentam divergências
em variadas questões
inclusive no seu modo
de fazer as refeições
Manuscritos apresentam
o fidalgo ingenuoso
esperando por convite
em banquete suntuoso
por julgar ser a rotina
de um paladino honroso
Em outros o cavaleiro
tem por grande honraria
ser privado e provado
em coisas do dia-a-dia
aceitando alimentar-se
com qualquer comedoria
É bastante ilustrativo
o encontro com cabreiros
que já tinham por costume
receber os forasteiros
que passavam na estrada
sendo muito hospitaleiros
O registro do encontro
com riqueza detalhado
encontrei em um caderno
que apesar de amarelado
tinha um texto legível
totalmente conservado:
E sabendo os cabreiros
que estavam de passagem
eles foram convidados
a fazer uma paragem
para ali no acampamento
descansarem da viagem
Enquanto o escudeiro
amarrava os animais
Quixote era tratado
de maneiras cordiais
sendo oferecido a ele
cozidos e coisas tais
Fizeram ele sentar-se
em gamela rente ao chão
para que Sancho servisse
a bebida a seu patrão
e esperassem uma cabra
cozinhada em caldeirão
E Quixote ao escudeiro
disse nesta ocasião:
- Quem serve à cavalaria
seja qual for a função
senta no mesmo lugar
onde está o seu patrão
Mesmo vendo no convite
uma grande honraria
Sancho Pança intimidado
dispensou a cortesia
que regras de etiqueta
o mesmo desconhecia:
- Prefiro pão e cebola
que um belo peruzinho
se eu não puder soltar
nem até um arrotinho
Por essas formalidades
prefiro comer sozinho
Mas Quixote insistiu
no convite formulado
obrigando o escudeiro
a sentar-se do seu lado
e assim aquele assunto
ele deu por encerrado
E com aqueles cabreiros
no entorno da fogueira
o escudeiro sentiu
a chegada sorrateira
de uma quase saudade
de sua lida campeira
Comendo com regozijo
a carne que foi servida
e sorvendo uma guampa
onde estava a bebida
Sancho para os cabreiros
disse sobre a comida:
- Um sujeito como eu
que é torado no grosso
uma cabritinha dessas
vai roendo até o osso
que com fome apertando
não existe o insosso
- E como diz o ditado
toda coisa que se come
não sendo uma iguaria
se tempera com a fome
e cemitério de cabras
hoje é o meu abdome
Pois D. Quixote no meio
daquela gente simplória
pediu atenção a todos
pra contar uma história
das muitas que ele tinha
conservadas na memória:
- No mundo corria a fama
dos doze pares de França
mas o Conde Galalão
com o plano de vingança
ajustou com sarracenos
a mais torpe aliança
- E ali nos Pirineus
a garganta escarpada
foi o cenário perfeito
para uma emboscada
que por sua felonia
tinha sido planejada
Sancho Pança escutava
com bastante atenção
o relato entusiasta
que fazia seu patrão
da batalha derradeira
do cavaleiro Roldão
- Subiram os doze pares
ao lugar mais elevado
da penedia e viram
todo o vale ocupado
pelas tropas sarracenas
que ali tinham chegado
- Uma grande epopéia
desvendava seu enredo
Vislumbrando a figura
dos pares sobre o rochedo
os sarracenos sentiram
um arrepio de medo...
- E Roldão estava pronto
pra lutar mais uma vez
com os maiores rivais
do exército francês
Seu amigo Oliveiros
apelou pra sensatez:
- Não podemos enfrentar
a falange estrangeira
que agora está cercando
esta região inteira
Eles tem cinquenta mil
somente numa fileira
- E Roldão deu a resposta
instigado em seu brio:
- Os doze pares armados
lutando horas a fio
seriam suficientes
pra render duzentos mil
- Se a falange inimiga
é aqui mais numerosa
nossa vitória será
ainda mais grandiosa
pra honrarmos a milícia
da nação mais valorosa
- Sem ainda concordar
com seu amigo Roldão
Oliveiros alertou
que o biltre Galalão
tinha tudo planejado
pra fazer a traição:
- Que evite a cilada
peço a nosso comandante
Carlos Magno ao menos
não está muito distante
Você pode avisá-lo
tocando seu olifante
- Mas Roldão a Oliveiros
nesse ponto foi conciso:
- Chamar o imperador
eu sei que não é preciso
e não tocarei a trompa
para dar qualquer aviso
- Nós somos numa peleja
osso duro de roer
e soldados mais altivos
inda estão para nascer
Hoje vamos ver o mouro
debandar ou se render
- Oliveiros repetiu
seu pedido ao comandante
refletindo ser melhor
que tocasse o olifante
uma vez que o soberano
não estava tão distante:
- Peço a nosso capitão
que escute o que digo
Como é mais numerosa
a falange do inimigo
não precisamos expor
nossos homens ao perigo
- E o conde desprezando
o exército mourisco
respondeu que na peleja
não corriam nenhum risco:
- Hoje vão se enfrentar
o trovão e o corisco
- Se estão em maioria
não precisamos saber
No final desta peleja
muito tempo vamos ter
pra contar e recontar
quantos vieram morrer
- Mesmo tendo que travar
uma luta encarniçada
minha guarnição fará
com a lança e a espada
cada mouro se render
ou bater em retirada
- No lugar do olifante
para dar algum alerta
tenho minha Durindana
e pagão que ela acerta
ou suplica a rendição
ou se aparta e deserta
- Terminada a discussão
decidiram por lutar
O exército dos francos
depois de se equipar
foi descendo pelo vale
para os mouros atacar
- Percebendo o avanço
dos franceses no terreno
rei Marcílio na batalha
comandante sarraceno
ordenou o contra-ataque
com apenas um aceno
- E Roldão saiu na frente
seguido pelos demais
Golpeava com a lança
assombrando seus rivais
Nenhum mouro escapava
das estocadas fatais
- Chefiando a vanguarda
o paladino de França
desde o primeiro golpe
mostrou a sua pujança
Derrubou vários pagãos
até quebrar sua lança
- Só então ele sacou
sua arma Durindana
e montado em Bridadoiro
avançou pela savana
visando desbaratar
a milícia mauritana
- Sarracenos acossaram
o bravo duque Buzim
que brandindo sua arma
disse a eles assim:
- Mais de um é pelotão
e a todos vou dar fim!
- E partiu dando espadada
tão a torto e a direito
que seu golpe fulminante
na cabeça ou no peito
o oponente mais forte
derrubava desse jeito
- Outro grupo novamente
avançou contra Ricarte
que no grosso da ação
inda não tomava parte
pois estava ocupado
carregando o estandarte
- Sir Ricarte retirando
sua arma da bainha
desferiu um duro golpe
no que mais afoito vinha
que levando a cutilada
nunca mais comeu farinha
- Como os outros pagãos
prosseguiam atacando
manejando a espada
um por um foi derribando
pra deixar lá na Arábia
mais viúvas pranteando
- No avanço dos franceses
que lutavam muito bem
um guerreiro só caía
derrotando mais de cem
O comandante Roldão
não perdia pra ninguém
- Confirmando o paladino
sua fama de valente
com a sua Durindana
derrubava prontamente
todo e qualquer soldado
que cruzava sua frente
- Como ele precisava
atacar o rei pagão
para abreviar a luta
e forçar a rendição
quando ele o avistou
foi na sua direção
- Percebendo a manobra
vários mouros em ação
as frentes abandonavam
para atacar Roldão
No entorno do guerreiro
era grande a multidão
- Com destreza absoluta
a espada manejando
prosseguia o paladino
no terreno avançando
Sem errar golpe nenhum
ia a todos derribando
- De repente apareceu
um enorme elefante
deixando cada francês
assombrado e ofegante
com a sua aparência
monstruosa e gigante
- Montado no paquiderme
vinha o melhor arqueiro
procurando alvejar
com o seu arco ligeiro
o mais bravo paladino
só com um tiro certeiro
- Pois no alto da colina
ficou ele esperando
a passagem de Roldão
que já vinha avançando
sem o mesmo perceber
o arqueiro tocaiando
- Choviam setas francesas
no arqueiro vigilante
mas nenhuma o acertava
por estar muito distante
Foi então que Oliveiros
disparou no elefante
- O elefante africano
alvejado pelo flanco
esmagou vários pagãos
rolando pelo barranco
Quem ali não sucumbiu
saiu da batalha manco
- Eram muitos sarracenos
que rechaçavam Roldão
na defesa de Marcílio
o versuto rei pagão
promovente da falsídia
com o conde Galalão
- E no confronto direto
com o biltre rei pagão
o melhor que conseguiu
foi cortar a sua mão
que levando esse golpe
retirou-se da ação
- Com intento de barrar
a investida dos francos
os soldados sarracenos
nos penedos e barrancos
faziam pedras enormes
rolarem aos solavancos
- Os franceses atraídos
para os desfiladeiros
sem ter o conhecimento
dos terrenos traiçoeiros
sofriam grande revés
pela perda de guerreiros
- Nessa hora a batalha
foi ficando mais intensa
Cada baixa dos franceses
era uma perda imensa
que um soldado a menos
já fazia diferença
- E como se fosse pouco
ser menor seu efetivo
foi subindo pela serra
no momento decisivo
outra leva de soldados
com impulso combativo
- Chegavam muitos cavalos
trazendo mouros no dorso
Os sarracenos tirando
vantagem deste reforço
forçavam cada oponente
a lutar com mais esforço
- Quando vislumbrou ali
seu exército minguando
acredito que Roldão
percebeu estar jogando
seu xadrez num tabuleiro
cheio de peças faltando
- Só então que abalado
disse para Oliveiros:
- Não podemos mais contar
com a fibra dos guerreiros
que a tropa vê chegar
seus momentos derradeiros
- Por ter sido vaidoso
com a força do meu braço
e dos outros paladinos
cometi um erro crasso
vendo o nosso efetivo
pelejando mais escasso
- Reconheço que eu sou
o responsável por isso
Não podemos resistir
a outro ataque maciço
Nossa tropa de elite
faz seu último serviço
- A imensidão do vale
as montanhas colossais
a profundeza dos rios
longos e torrenciais
dessa hora tenebrosa
deram todos os sinais
- Assim eram os guerreiros
que aqui eu represento
Por honrarem a bandeira,
seu cavalo e armamento
tem que ser mencionados
sempre com devido acento
- Um perfeito cavaleiro
tem nobreza e coragem
um desejo permanente
de honrar sua linhagem
ser pujante em batalha
e fiel na vassalagem
- Vocês tem o privilégio
de conhecer o famoso
Dom Quixote, cavaleiro
tão honrado e corajoso
que na Espanha não há
um outro mais valoroso
- Sou espelho e resplendor
dos cavaleiros andantes
Maior que Rodrigo Díaz
Amadises e Tirantes
Melhor do que Palmeirins
e guerreiros semelhantes
- Agradeço o tratamento
com respeito e cortesia
que a nós foi dedicado
uma vez que é primazia
dos cavaleiros andantes
toda sorte de honraria
E cada um dos cabreiros
aceitou ficar quieto
escutando Dom Quixote
com seu discurso repleto
de disparates próprios
de um maluco completo
XII - Décimo segundo episódio que trata do que Dom Quixote falou aos cabreiros sobre Dulcinéia e de como salvou uma donzela em apuros.
Um cabreiro que comia
um pedaço de morcela
perguntou a Dom Quixote
se ele tinha uma donzela
por quem era apaixonado
e qual era o nome dela
D. Quixote interessado
em continuar a prosa
ao cabreiro apresentou
uma resposta pomposa:
- Dulcinéia de Toboso
é minha dama formosa
- A sua grande beleza
e todos demais primores
dão prova de genuínas
as palavras e as cores
em tudo que foi criado
por poetas e pintores
- Nem Helena de Esparta
nem a modelo Frinéia,
Vênus, Laura, Beatriz,
Simonetta ou Galatéia
eu considero mais belas
que a minha Dulcinéia
- A sua nobre linhagem
que a virtude sublinha
no futuro certamente
vai levá-la a ser rainha
promovendo sua estirpe
pra maior ventura minha
- O território espanhol
na sua total vasteza
nunca viu e nem verá
dama de maior nobreza,
elegância, distinção,
pulcritude e fineza...
Nos cabreiros o velhote
foi deixando a impressão
de sujeito amargurado
no revés duma paixão
sendo este o motivo
de perder sua razão
Com toda certeza eles
tiveram como respaldo
para pensarem assim
a história de Vivaldo
que estava concluída
com um desditoso saldo
Quixote ficou sabendo
que a pastora Marcela
tinha deixado o rapaz
cego de amor por ela
não querendo aceitar
o descaso da donzela:
- Vieram nos avisar
que o jovem abalado
com a tal desilusão
tinha se desesperado
e naquela madrugada
estava sendo velado
- Não havia uma razão
pra ter sido rejeitado
Era o melhor partido
no florente povoado
sendo formoso no porte
e bastante abastado
- Uns dizem que a paixão
do rapaz foi desmedida
outros que a mão da moça
tinha sido prometida
e somente esperava
ver a promessa cumprida
- Marcela também provinha
de família endinheirada
Por um tio que era padre
em clausura foi criada
Mas ela por casamento
nunca foi interessada
- Certo dia esta moça
causando grande surpresa
dispensando totalmente
os afagos da riqueza
e contrariando todos
decidiu ser camponesa
- E todos puderam ver
a beleza de Marcela
que desfilando no campo
a perfeição da donzela
deixou os ricos e pobres
querendo casar com ela
- E a camponesa sabe
que em toda redondeza
estão os apaixonados
por sua grande beleza
mas pedido de casório
ela nega com firmeza
- Como aqui é muito raro
uma jovem sem marido
estão todos esperando
que ela aceite um pedido
e mantendo a esperança
de ser o seu escolhido
- Nem a sina de Vivaldo
servirá de ensinamento
para esses pretendentes
que ficam todo momento
externando por Marcela
suas queixas e tormento
- Se a maioria deles
numa tola presunção
para oferecer a ela
tem somente a paixão
este nunca foi o caso
do fidalgo em questão
- Se amanhã o senhor
assistir ao funeral
saberá quantos amigos
em consternação geral
estarão com a família
na despedida final
E depois de terem eles
a conversa encerrado
por um dos cabreiros foi
Dom Quixote convidado
a poupar-se do sereno
e dormir sob telhado
Como era a sua praxe
passou toda a madrugada
sem tirar do pensamento
a lembrança da amada
que nem os apaixonados
da história relatada
Prosseguindo a pesquisa
no Arquivo Nacional
encontrei em documentos
copioso material
com relatos de Quixote
presente no funeral:
A família de Vivaldo
no enterro reunida
junto dos amigos dele
lamentando a despedida
recebia condolências
na cerimônia devida
Perguntaram a Quixote
que fantasia era aquela
e o motivo de estar
com a lança e a rodela
como se fosse soldado
na função de sentinela
- Como cavaleiro andante
preciso estar equipado
para defender as terras
por onde tenho passado
É dever do cavaleiro
estar sempre preparado
Por dizer aquelas coisas
e apresentar-se armado
quem estava no velório
pranteando o finado
percebeu que D. Quixote
era um louco arrematado
Pela morte de Vivaldo
muitos culpavam Marcela
mas havia outro grupo
dos que defendiam ela
quando a dita apareceu
no alto duma penela
Grande contrariedade
ou fascínio e surpresa
provocou o surgimento
da singela camponesa
que depois de dar pesares
disse em sua defesa:
- Eu não vim ao funeral
pra causar constrangimento
mas muitos estão dizendo
que enjeitando o casamento
com meu amigo Vivaldo
provoquei seu passamento
- Esperam que eu me case
devido a minha beleza
despertar forte paixão
nos homens da redondeza
mas a escolha que fiz
foi ser uma camponesa
- E se o jovem Vivaldo
viu em mim só a beldade
é sinal que não tivemos
a mais fraca afinidade
e não podem me culpar
por sua imaturidade
- A mulher cuja beleza
deixa os homens cativos
e com isso envaidece
o que faz é dar motivos
pra pensarem que só tem
nada mais que atrativos
- Sem escolha recebi
o favor da natureza
mas com minha formação
sempre tive a certeza
que eu tenho muito mais
do que a fugaz beleza
- Há solteiras como eu
que são igualmente belas
mas ninguém será forçado
a casar com uma delas
tendo apenas por critério
a beleza das donzelas
- A ninguém eu seduzi
ou dei falsa esperança
que ser uma camponesa
é meu sonho de criança
nunca tendo interesse
em viver na abastança
- Recusando a fidalguia
com suas ocas rotinas
meu anseio é somente
andejar pelas campinas
sendo livre e ditosa
entre cabras e cravinas
- Alguém de vocês aqui
tomaria por cordura
obrigar uma mulher
a viver só na clausura
pretextando por motivo
sua grande formosura?
- Alguém de vocês aqui
teria por coisa certa
querer ver uma mulher
completamente coberta
pretextando por motivo
o ardor que ela desperta?
- Declarando que eu sou
responsável por meus atos
fiz aqui minha defesa
de acordo com os fatos
esperando que já tenha
convencido aos sensatos
Terminando seu discurso
a pastora retirou-se
Dispensando a resposta
a camponesa virou-se
e na mata atrás de si
novamente embrenhou-se
Ainda mais fascinados
pela graça de Marcela
e pelo resplandecer
da inteligência dela
alguns quiseram sair
no encalço da donzela
Vendo eles intentando
ir atrás da camponesa
Dom Quixote vigilante
agiu com muita presteza
pois sacando a espada
gritou em sua defesa:
- Terá que passar por mim
quem quiser seguir Marcela
Uma das minhas funções
é socorrer a donzela
que esteja em perigo
como agora eu vejo ela
- Inspirando ser mulher
de conduta continente
o que Marcela falou
foi mais que suficiente
para demonstrar a todos
o quanto está inocente
Calculando ser Quixote
um maluco violento
todos os apaixonados
desistiram do intento
de seguir a causadora
do seu apaixonamento
Como o funeral seguiu
sem ter outro incidente
ao depois dar pesares
a cada amigo e parente
Dom Quixote retirou-se
do meio daquela gente
XXI - Vigésimo primeiro episódio que trata da grande aventura
e preciosa conquista do elmo de Mambrino, com outras coisas acontecidas
ao nosso invencível cavaleiro
Cavaleiro e escudeiro
indo por um matagal
adentraram de repente
em uma zona rural
encontrando no trajeto
um extenso milharal
Quando entraram ali
procurando por atalho
avistaram de passagem
um prosaico espantalho
que era só um boneco
costurado com retalho
E Quixote o apontando
disse a seu escudeiro:
- Não podemos prosseguir
sem examinar primeiro
aquele velho estafermo
de treinar um cavaleiro
Sancho Pança intrigado
respondeu a seu patrão:
- Isto ali é um boneco
de remendo de algodão
feito só pra espantar
as aves da plantação
- Eu terei que repetir
que o seu conhecimento
sobre a lida campeira
é debalde num momento
em que o tema das armas
novamente toma acento?
- Pois ali no estafermo
que deixaram escondido
você vê um espantalho
só porque é parecido
esquecendo que no tema
sou bastante instruído
- Pois você tem o dever
uma vez que é escudeiro
de fazer adestramento
como faz um cavaleiro
ainda que não alcance
o primor de um lanceiro
- Na vara do estafermo
vou amarrar a rodela
Você monta em Rocinante
e avança contra ela
como se fosse Amadís
defendendo uma donzela
E depois que seu escudo
foi no boneco amarrado
Dom Quixote o carregou
para o amplo descampado
que pra ele era o lugar
onde tinha sido usado
Desejando só brincar
Sancho a tudo aceitou
Como se fosse lanceiro
em Rocinante montou
e a lança de taquara
no espantalho mirou
Foi ali que o escudeiro
imitando Dom Quixote
deu a carga esquecendo
já não ser um rapazote
e gritou se aprumando:
- Sou agora Lancelote!
Com a lança apontando
pra sua sorte ou azar
bem no meio do escudo
conseguiu ele acertar
e com a força do golpe
fez o boneco rodar
O espantalho girando
desferiu de supetão
uma varada em Sancho
que deixando um vergão
fez o mesmo desmontar
caindo bambo no chão
Quixote foi acudir
o escudeiro estirado
dizendo que o revide
do boneco era esperado
e ali mesmo no chão
Sancho foi elogiado
O que Sancho retrucou
tem o grau do desatino
de um longo praguejar
o qual repetir declino
pois teria que o fazer
só em verso fescenino
O leitor mais exigente
que procure nos relatos
do cronista Benengeli
uma apuração dos fatos
feita com maior rigor
em impressos correlatos
Sancho Pança pra poder
da queda ir recobrando
precisou ficar sentado
um momento descansando
e os dois aproveitaram
esse tempo conversando
Permeando a conversa
com ditados populares
coisa que o escudeiro
conhecia aos milhares
falaram de cavaleiros
e assuntos similares
Sancho Pança descobriu
que Dulcinéia, a rainha,
era Aldonza de Lourenço
com quem parentesco tinha
sendo ela a concunhada
do avô de uma vizinha
Disse ele que na vila
onde era conhecida
era simples porcariça
que só andava fedida
trabalhando na pocilga
com os porcos entretida
Dom Quixote na defesa
de Aldonza ou Dulcinéia
disse que ela seria
pra sempre a sua tetéia
comparando a sua musa
com a grácil Galatéia:
- Pois vivia numa ilha
um monarca escultor
que no seu belo jardim
trabalhava com ardor
Todo o povo conhecia
seu trabalho e valor
- A não ter uma esposa
já estava decidido
que só damas indecentes
o queriam por marido
mas tiveram todas elas
recusado seu pedido
- E fazendo a escultura
de uma linda donzela
mesmo sem ter uma dama
para ser modelo dela
percebeu que estava ali
a sua obra mais bela
- E a deusa Afrodite
adentrando seu jardim
vendo tanta perfeição
na donzela de marfim
já sabia que na ilha
não havia dama assim
- E ficando Afrodite
nesta hora comovida
desejando dar ao rei
a esposa pretendida
fez então uma mulher
da imagem esculpida
- O rei Pigmaleão
no sonho realizado
com a bela Galatéia
ditoso ficou casado
Pela sua compostura
ele foi recompensado
- Os poetas são assim
feito um Pigmaleão
Quando elegem sua musa
pra lhes dar inspiração
é a quem vão dedicar
versos cheios de paixão
- E assim vejo Aldonza
virtuosa e requintada
que tem uma louçania
só com fadas comparada
e pra mim sempre será
minha Dulcinéia amada
Essa Aldonza que conheço
apenas de ouvir falar
é a princesa perfeita
a quem sempre irei amar
e meus feitos valorosos
sempre a ela dedicar...
Sancho Pança escutando
disse que tinha 1 porém
pois mesmo a sua patroa
a quem mais queria bem
tinha suas qualidades
e seus defeitos também
- É fácil amar a princesa
que nunca lhe dá ensejos
de saber se ela existe
tal e qual os seus desejos
e nem pode transformar
seus suspiros em bocejos
Sancho Pança sugeriu
a Quixote uma idéia
de irem ao povoado
conhecer a Dulcinéia
pra saber se ela seria
mesmo a sua Galatéia
Estando nestas conversas
começou um chuvisqueiro
Montado no seu jumento
apareceu um barbeiro
que distraído subia
na vereda do outeiro
Pra poder se proteger
da chuvinha que caía
o barbeiro colocou
na cabeça uma bacia
e montado num jumento
o barranco ele subia
E Quixote o avistando
disse a seu escudeiro:
- Sancho Pança, veja que
vem subindo um cavaleiro
cavalgando num corcel
que galopa bem ligeiro
Sancho Pança intrigado
disse sem acanhamento:
- Eu só vejo um cidadão
que montado num jumento
vem subindo na colina
com um trote meio lento
Mas Quixote respondeu
já montando no eqüino:
- É mais uma aventura
que nos trouxe o destino
O guerreiro na cabeça
tem o elmo de Mambrino!
Dizendo isto Quixote
seu cavalo esporeou
Na descida do outeiro
resoluto disparou
e pra cima do sujeito
com a lança avançou
Rocinante que descia
galopando no embalo
progredia na ladeira
com tropeço e resvalo
Dom Quixote confiante
foi gritando no cavalo:
- Escute o que eu digo
cavaleiro atrevido!
Me entregue o morrião
que a mim só é devido
ou vai conhecer a lança
dum guerreiro aguerrido!
Sem ao menos entender
o que estava acontecendo
o barbeiro do jumento
bem ligeiro foi descendo
e derrubando a bacia
para o mato foi correndo
Dom Quixote satisfeito
vendo a bacia no chão
disse para o escudeiro
recolher seu "morrião"
que depois de um exame
deu a dita a seu patrão
- Se um dia retornar
para minha parentela
vou limpar esta bacia
com estopa ou flanela
pois parece muito boa
de fazer a barba nela
- Pois foi o mago Frestão
que com a sua magia
fez o elmo de Mambrino
parecer uma bacia
mas é como um bacinete
que tem a sua valia...
- Acontece que isto aí
nunca foi um capacete!
Eu conheço uma bacia
e também um bacinete
A não ser que isto seja
talvez um bacia-nete!
E os dois se revezando
entre falante e ouvinte
as suas próprias idéias
defendiam sem acinte
Vamos ver como ficou
no episódio seguinte
LII - Quinquagésimo segundo episódio que trata do retorno de Dom Quixote ao seu calmo vilarejo da Mancha
No estado em que ficou
Dom Quixote mal podia
subir em seu Rocinante
e por isto não subia
ficando neste impasse
com a sua montaria
O barbeiro e o padre
aproveitando o ensejo
criaram uma estratégia
que forçava o andarejo
a retornar sem demora
pra seu calmo vilarejo
Levariam Dom Quixote
transportado em charrete
numa jaula de madeira
sem poder pintar o sete
Um anão que contrataram
aceitou fazer o frete
Avistando a carreta
recordou-se D. Quixote
do enredo da novela
do guerreiro Lancelote
e foi isto que bastou
pra iludir o velhote
Inquirindo a este anão
que estava na boléia
quis saber se por ali
tinha visto Dulcinéia
quem sabe se passeando
entre as faias em aléia
O anão disse que estava
indo para a fortaleza
justamente onde morava
a referida princesa
e naquele mesmo dia
a veria com certeza
O anão ainda disse
que ele querendo ir
ao lugar mencionado
teria que ali subir
e ficando enjaulado
a viagem prosseguir
Sancho disse a Quixote
que se fosse ajuizado
nunca aceitaria ser
na carreta enjaulado
pois o povo o teria
por bandido condenado
Dom Quixote concordou
que seguir aprisionado
bastaria a um guerreiro
pra ficar envergonhado
arriscando-se a deixar
o seu nome deslustrado
Entretando por receio
de julgar mal a questão
ia ter que desprezar
os alertas da razão
pra seguir aprisionado
na charrete do anão
Como estava para ver
Dulcinéia de Toboso
por estar apaixonado
nada era tão custoso
pois provaria depois
quanto era valoroso
Sem receios embarcou
na charrete o velhote
pensando que repetia
a trama de Lancelote
mas era tudo encenado
pra levarem D. Quixote
Foi nesta carreta que
retornou ao povoado
e na praça onde chegou
num domingo ensolarado
todo povo ali presente
viu Quixote enjaulado
Pois enquanto desfilava
entre o povo na pracinha
um rapaz já foi correndo
avisar sua sobrinha
que o tio em uma jaula
como prisioneiro vinha
Quando Quixote chegou
fraco e emagrecido
a sobrinha e a criada
lamentando o ocorrido
maldisseram os romances
que o fidalgo tinha lido
Chegando também na casa
a mulher do escudeiro
mostrou-se preocupada
com o jumento primeiro
antes de saber de Sancho
se trazia algum dinheiro
Reclamando abertamente
quanto já tinha sofrido
da saudades que sentia
na ausência do marido
ela escutou de Sancho
o que tinha acontecido
O barbeiro e o padre
foram então encarregados
de juntar rapidamente
livros e assemelhados
pra numa grande fogueira
serem no pátio queimados
O fidalgo em seu leito
pela criada tratado
apresentando a melhora
seria mais vigiado
por causa dos desatinos
que já tinha praticado
Mas vendo ele na cama
com a dor a lhe afligir
pra sobrinha do fidalgo
foi bem fácil deduzir
que passariam dez anos
sem o tio querer sair
Essa história continua
em versões outras e várias
mas o mais interessante
é buscar fontes primárias
o que só pode ser feito
com pesquisas necessárias
FINIS