O genioso fidalgo Dom Quixote da Mancha

Apresento um herói de epopéia

como aqueles que havia no passado

ou somente um maluco apaixonado

pela sua princesa Dulcinéia

Dom Quixote empenhado na idéia

de fazer o retorno dos andantes

confundiu os moinhos com gigantes

sempre junto de Sancho o escudeiro

se tornando o bizarro cavaleiro

no maior personagem de Cervantes

I - Primeiro episódio que trata de como um fidalgo sonhador se transformou no último cavaleiro andante

Num vilarejo da Mancha

dos tempos de antigamente

vivia em uma fazenda

um fidalgo decadente

que de amigos e vizinhos

era em tudo diferente

Sem jamais compartilhar

interesses com seus pares

repetia relutante

as rotinas regulares

se mostrando entediado

entre bailes e jantares

Vestia trajes decentes

mas modestos no valor

Tinha um velho pangaré

e um galgo corredor

O que mais o comprazia

era ser madrugador

Seu repasto eram ovos

com torresmo na farinha

Carne, queijo e batata

já faltavam na cozinha

Nos domingos escapava

com um caldo de rolinha

Dizem que este manchego

com sua vida discreta

por uma tal de Aldonza

nutria paixão secreta

sem Cupido nunca ter

acertado nela a seta

Convivia em sua casa

com sua jovem sobrinha

uma velha empregada

prestimosa e sozinha

e um moço responsável

por tarefa comezinha

Sendo ele alto e magro

beirando cinquenta anos

já começava a mostrar

nos atos cotidianos

toda aquela rabugice

natural dos veteranos

Seu provável sobrenome

era Quixana ou Quezado

mas importa é sabermos

que o fidalgo mencionado

tinha tempo até sobrando

pra ficar desocupado

Certo é que a gerência

da fazenda esquecia

perdendo até interesse

nas caçadas que fazia

quando começava a ler

livros de cavalaria

Fascinado por novelas

de cavaleiros andantes

tinha livros a granel

atulhando as estantes

onde vinha reunindo

traças, grifos e gigantes

E por sempre aumentar

o seu tempo com leituras

cada vez gastava mais

em cadernos e brochuras

precisando mais dinheiro

pra arcar com as faturas

Com as grandes coleções

consumindo sua renda

resolveu por desatino

demarcar e por à venda

por qualquer uma merreca

partes da sua fazenda

A sobrinha se alegrava

sempre que chegava o dia

de ver o seu velho tio

indo pra barbearia

ou no rumo da igreja

pra ouvir a homilia

Acontece que o fidalgo

com o cura e o barbeiro

só falava em romances

por ficar o dia inteiro

discutindo qual seria

o mais nobre cavaleiro

Por um tempo cogitou

escrever sua novela

com gigante, feiticeiro,

sem faltar uma donzela,

e também um cavaleiro

para ser vassalo dela

Seu intento era mostrar

triunfando em campanha

um guerreiro até maior

que El Cid na Espanha

mas trocou a narrativa

por idéia mais estranha

Por encher sua cabeça

com tanta coisa que lia

e ficar toda semana

trocando noite por dia

pouco a pouco se deixou

mergulhar na fantasia

De tanto ler e reler

novelas e coisas tais

foi ficando convencido

que elas eram reais

e a fantasia dos fatos

já nem separava mais

A empregada servindo

a farofa com torresmo

certa feita o escutou

dizendo para si mesmo:

- Na condição de fidalgo

eu estou vivendo a esmo!

Ele ainda prosseguiu

dizendo em sua loucura:

- Quero ser um paladino

indo atrás de aventura

e vou me tornar famoso

por meus atos de bravura!

A sobrinha igualmente

deparou com o seu tio

de pé em cima da cama

num completo desvario

quase não acreditando

nas coisas que ela viu

Empunhando o seu bastão

qual se fosse uma espada

dava golpes na parede

deixando ela riscada

Ela viu o destrambelho

mas não entendia nada

Foi não foi ele dizia

um e outro disparate:

- Já deixei 4 gigantes

derrotados em combate

mas não é com o cansaço

que um soldado se abate!

Foi então que decidiram

retirar do seu alcance

todos livros com o tema

de novela ou de romance

calculando que depois

não teriam outra chance

Todavia elas ficaram

sem saber o que fazer

quando ele sorrateiro

começou a se esconder

sempre com a intenção

de continuar a ler

Certa feita procurando

esconder-se um momento

no porão da sua casa

encontrou o armamento

que o saudoso bisavô

conservou do regimento

Encontrou um chifarote,

uma adarga, um cinturão,

as ombreiras e as grevas,

o gorjal e o morrião,

os coxotes e manoplas,

e a lança espontão

Completava uma couraça

bolorenta e amassada

que apesar de apresentar

leves manchas na lombada

pelo seu tempo de uso

reputou por conservada

Experimentou o traje

que ficou meio folgado

mas na sua fantasia

tudo estava ajustado

como se ele já fosse

um guerreiro do passado

Pela falta de viseira

no seu velho morrião

ele improvisou a peça

recortando um papelão

amarrando com arames

como a grande solução

Ao olhar-se no espelho

com aquela armadura

novamente acendeu-se

a centelha da loucura

decidindo nessa hora

se lançar na aventura

- Cavalgando meu corcel

marcharei numa campanha

reparando as injustiças

dessas terras de Espanha

pra honrar os cavaleiros

em mais de uma façanha!

No momento que estava

essas coisas cogitando

de repente escutou

o cavalo relinchando

como se o matungão

estivesse lhe chamando

Convencido que já era

um guerreiro de novela

foi até seu pangaré

colocando nele a sela

enxergando um corcel

no matungo magricela

Quis montar com altivez

imitando a narrativa

mas depois de repetir

mais de uma tentativa

a subida por um mocho

foi melhor alternativa

Já montado no matungo

decidiu ser importante

só chamar o seu corcel

por um nome elegante

e de tantos que pensou

o melhor foi Rocinante

- Sairei no meu cavalo

viajando em toda serra

Um perfeito paladino

a cruzar por essa terra

e Dom Quixote da Mancha

será meu nome de guerra!

- Meu intento é honrar

os que já vieram antes

restaurando o apogeu

dos cavaleiros andantes

sendo o mais prodigioso

em façanhas relevantes!

Como todo cavaleiro

tem por musa a donzela

a quem ele considera

a mais virtuosa e bela

o fidalgo já sabia

que Aldonza era ela

Mas pensando que a moça

tinha um nome embaraçoso

preferiu chamar a musa

Dulcinéia de Toboso

que na sua opinião

ressoava harmonioso

Tendo o nome escolhido

e trajando a armadura

com desejos de fazer

grandes atos de bravura

Dom Quixote decidiu

se lançar na aventura

A sobrinha avistando

o figalgo na estrada

cavalgando com o traje

disse para a criada:

- Ele nem nos avisou

onde é a mascarada...

II - Segundo episódio que trata da primeira jornada que o genioso Dom Quixote da Mancha fez na sua terra

Vou agora prosseguir

com a minha narrativa

recolhida nos anais

da memória coletiva

ou até em documentos

de pesquisa exaustiva

O leitor ficou ciente

no decurso do relato

como foi que o fidalgo

decadente mas pacato

começou a baralhar

lenda, ficção e fato

Nem o mais abilolado

nunca não tivera antes

a idéia que ele teve

em favor dos semelhantes:

restaurar o resplendor

dos cavaleiros andantes

Quando ele convenceu-se

que seu plano era rotundo

e a moral cavalheiresca

já fazia falta ao mundo

na fazenda onde morava

não ficou nem um segundo

Vestindo sua couraça

com bastante confiança

embraçou a sua adarga

empunhou a sua lança

só pensando em avançar

na estrada sem tardança

Cavalgando satisfeito

com a velha armadura

uma idéia quase o fez

desistir da aventura:

- Não existe cavaleiro

antes da investidura...

Como já não separava

o real da fantasia

nessas horas o velhote

seus problemas resolvia

recordando os romances

que na memória trazia

Pois pra ele as novelas

forneciam um roteiro:

- Tudo posso resolver

ao topar com o primeiro

que quiser me ajudar

me ordenando cavaleiro

E passou a divagar

que um grande escritor

da estirpe de Homero

narraria com vigor

sua saga estupenda

encantando ao leitor

- Não duvido que narrando

minha história verdadeira

ao contar as aventuras

desta jornada primeira

num estilo exuberante

faça por esta maneira:

- O paladino Quixote

de engenho tão subido

o território espanhol

percorria decidido

escrevendo a epopéia

do guerreiro destemido

- Oh, cronista, peço que

em seu relato facundo

lembre que o cavaleiro

que é da Mancha oriundo

sem ter o seu Rocinante

não assombraria o mundo!

Desdizendo o velhote

no decurso desta rota

não estava acontecendo

nada digno de nota

Mesmo o que ele fazia

não daria uma anedota

Esperando encontrar

na estrada um gigante

foi não foi ele apeava

do cavalo Rocinante

com intento de mijar

pra então ir adiante

Por veneta o cavaleiro

escanchando-se na sela

repetia pra si mesmo

a linguagem de novela

imitando do seu jeito

trechos retirados dela:

- Minha doce Dulcinéia

que na hora da partida

aceitou minha viagem

com a alma dolorida

sei que foi aquela dor

a maior da sua vida!

- Se a saudade quiser

prolongar o sofrimento

deixe ser a esperança

o penhor do seu alento

que sem ela nada sou

mas com ela me ausento!

- E com tanta esperança

me levando pra diante

eu prometo, doce amada,

que o primeiro gigante

derrotado em batalha

deixarei a seu talante!

Disparando disparates

feito um doido varrido

Dom Quixote cavalgando

por um trajeto comprido

foi ficando ainda mais

de miolo amolecido...

Depois de desperdiçar

muito tempo em viagem

com o dia terminando

avistou a estalagem

que cansado e faminto

escolheu como paragem

O lugar que encontrou

era um sobrado singelo

mas Quixote absorto

em seu mundo paralelo

presumia estar diante

do mais imenso castelo

O velhote conduzindo

o cavalo pra pousada

conservando a viseira

do seu elmo levantada

viu duas moças na porta

cada qual mais assustada

Totalmente envolvido

pelo mundo das novelas

Dom Quixote presumiu

serem duas damizelas

Refreando Rocinante

foi dizendo para elas:

- Se as moças permitirem

eu explico a que venho

pois da ordem cavaleira

sou um defensor ferrenho

e por damas tão galantes

com mais zelo me empenho

No estado que estava

ele não podia ver

que as duas em questão

eram feias de doer

e discursos empolados

não iriam entender

Sem falar que elas eram

da baixa sociedade

mas Quixote já estando

longe da realidade

enxergava em cada uma

um modelo de beldade

Na presença de figura

tão faltosa de juízo

inda mais com um colete

velho, feio, sujo e friso

essas duas se olhavam

sem poder conter o riso

Quase ficando a ponto

de perder a polidez

mas fazendo um esforço

para se manter cortês

Dom Quixote para elas

foi falando outra vez:

- Nada existe mais afim

com as vossas formosuras

no que tange à etiqueta

que a virtude das mesuras

mas os risos malbaratam

o padrão das composturas

Escutando o discurso

de linguagem rebuscada

e ficando novamente

sem ter entendido nada

elas passaram do riso

para grossa gargalhada

Vendo elas se portando

sem nenhuma etiqueta

e que ambas já estavam

gargalhando com careta

D. Quixote foi passando

de cordato pra ranheta

Passariam desse ponto

se não fosse o albergueiro

ir saindo do albergue

caminhando bem ligeiro

para ver se poderia

atender ao cavaleiro

Ajudando Dom Quixote

a descer da montaria

mesmo ficando cismado

pelo traje que vestia

indagou se ele estava

procurando pousadia:

- Se o amigo quiser

retardar sua partida

deixe o cavalo comigo

e prove nossa comida

Só não posso oferecer

um lugar para dormida

- Castelão, em humildade

ao senhor não me igualo

Eu tenho plena certeza

que terá o meu cavalo

um distinto tratamento

ensejando seu regalo

- Meu corcel é Rocinante

um cavalo sem iguais

que na liça mais renhida

não retrocede jamais

exibindo o seu valor

em pujanças colossais

Mas o albergueiro viu

que o velho matusquela

tinha só por montaria

um cavalo de Gonela

perigando a se vergar

só com o peso da sela

Sem ter muita paciência

com sujeito extravagante

inda mais fantasiado

como cavaleiro andante

carregou o seu matungo

entregando ao ajudante

Da cocheira retornou

reparando divertido

que as moças com Quixote

já tinham se entendido

ajudando o cavaleiro

para que fosse despido

D. Quixote na cantina

sentou-se ao lado delas

conversando com as duas

que chamava de donzelas

Elas o tinham levado

para perto das janelas

E assim foram tirando

a lombada e corselete

pra deixar o cavaleiro

sem o peso do colete

A maior dificuldade

foi tirar o bacinete

Depois que elas puxaram

sem ter visto resultado

Quixote solicitou

que o deixassem de lado

parecendo para todos

um cogumelo sentado

Ele imaginando estar

numa enorme fortaleza

e que estava recebendo

tratamento com fineza

fazia belos discursos

para as damas da mesa:

- Nunca fora um cavaleiro

por damas tão bem servido

como fora Dom Quixote

o guerreiro mais subido

Dele tratavam donzelas

com o melindre devido

Elas foram escutando

sem dar muita atenção

só pedindo que parasse

com a sua explanação

na chegada do momento

de fazer a refeição

No cardápio apresentado

por motejo ou descaso

tinha pão que foi servido

com dois dias de atraso

num pirão de caldo grosso

dentro de um prato raso

E no prato com o caldo

parecendo uma lavagem

disputavam o espaço

agrião, jiló e vagem

com o sal e a pimenta

misturados sem dosagem

Mas pra ele a gororoba

era o mais fino jantar

dizendo que a receita

iria muito agradar

ao cozinheiro do rei

que ela fosse provar

E mesmo que na cabeça

lhe pesasse o morrião

parecendo satisfeito

com a nobre refeição

para as damas ele fez

uma breve confissão:

- As damas vão assentir

que agora eu não minto:

se a fome está na mesa

para ser claro e sucinto

quão difícil é jantar

sem parecer um faminto!

Nisso foi chegando ali

distraído um porcariço

que entrava na taberna

retornando do serviço

assoprando cinco vezes

sua flauta de caniço

Escutando aquele som

(para ele harmonioso)

Dom Quixote confirmou

comovido mas ditoso

que estava no salão

dum palácio suntuoso

Mas estava incomodado

com a tal investidura

pra poder de uma vez

se lançar na aventura

percorrendo a Espanha

na sua cavalgadura

VIII - Oitavo episódio que trata da mais famosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento

O leitor que acompanha

essa prazerosa história

do andante Dom Quixote

cuja fama foi notória

vai ver agora o herói

numa nova trajetória

A data certa dos fatos

por um tempo pesquisei

mas o ano em que se deu

eu mesmo dizer não sei

só podendo adiantar

que foi no tempo do rei

No episódio passado

já contei como Quixote

recrutou o seu vizinho

que era gordo e baixote

para ser um escudeiro

nas campanhas do velhote

Sancho Pança tinha sido

camponês a vida inteira

e somente conhecia

coisas da lida campeira

Pobre, leigo, e outra mais,

de pouco sal na moleira

Mas com ele o cavaleiro

retomou o seu intento

de fazer outra jornada

dando até consentimento

para o companheiro ir

escanchado num jumento

Repetindo na viagem

os trajetos e locais

os parceiros avançavam

percorrendo os chaparrais

foi então que avistaram

trinta moinhos ou mais

Dom Quixote se aprumando

disse para o escudeiro:

- Não podemos prosseguir

antes de passar primeiro

por esses brutos gigantes

dali do campo fronteiro!

Sancho Pança intrigado

disse sem acanhamento:

- Me desculpe o patrão

mas olhando bem atento

lá na frente eu somente

vejo moinhos de vento!

Dom Quixote respondeu

sem perder a compostura:

- Para seu conhecimento

sou versado em aventura

Reconheço um gigante

mesmo quando na lonjura!

- Que eles venham provar

os meus golpes fulminantes

Sou espelho e resplendor

dos cavaleiros andantes

Estou pronto pra vencer

o mais forte dos gigantes!

- Agora você vai ver

companheiro Sancho Pança

como faz um cavaleiro

valoroso que avança

nas fileiras inimigas

confiando em sua lança!

Dizendo isto Quixote

seu cavalo esporeou

e no rumo dos moinhos

resoluto disparou

O suposto cavaleiro

para o mundo anunciou:

- Sou D. Quixote da Mancha

forte, bravo e subido!

Eu jamais fui à peleja

onde voltasse vencido!

Essas terras nunca viram

guerreiro mais aguerrido!

Num terreno inclinado

avançava Dom Quixote

mas o cavalo sem forças

para sustentar o trote

só a custo é que subia

carregando o velhote

- Rocinante, meu corcel

tão veloz e vigoroso

que jamais retrocedeu

em combate perigoso

é a hora de honrarmos

Dulcinéia de Toboso!

O matungo estranhando

o trocar das andaduras

foi subindo o barranco

já sentindo contraturas

sem firmeza pra sequer

levantar as ferraduras

Mesmo com seu pangaré

derrapando no caminho

avançava o cavaleiro

para enfrentar sozinho

o gigante embrutecido

que era só um moinho

Como faz um cavaleiro

que disputa um torneio

Dom Quixote deu a carga

no moinho sem receio

de envergar a sua lança

que foi partida no meio

E como se não bastasse

quebrar a arma somente

uma rajada de vento

surgida assim de repente

fez as velas do moinho

rodarem rapidamente

O freio de Rocinante

na vela foi enganchado

Junto dele o cavaleiro

foi rodando pendurado

e dum jeito esquisito

despencou do outro lado

Sancho Pança quando viu

seu patrão estatelado

parecendo um jabuti

com o casco emborcado

na garupa do jumento

foi chegando avexado:

- Eu não sei se o patrão

é mais louco do que certo

mas fazendo o seu cavalo

disparar em campo aberto

não viu que eram moinhos

nem olhando mais de perto?

Ajudando o cavaleiro

a levantar-se do chão

Sancho Pança escutou

a resposta do patrão

que a culpa da derrota

imputava a Frestão:

- Foi Frestão, o feiticeiro

que por um ato mesquinho

vendo que eu venceria

esses gigantes sozinho

prontamente os deixou

transformados em moinho

Dom Quixote novamente

remontou em Rocinante

que meio desconjuntado

chouteava hesitante...

Sancho remontou o asno

pra seguirem adiante...

Mesmo com alguma dor

Dom Quixote ao patrício

começou a explanar

coisas sobre seu ofício

tudo estando de acordo

com seu mundo fictício:

- Não me venha acudir

se eu correndo perigo

estiver em desvantagem

combatendo um inimigo

Não permito ao escudeiro

batalhar junto comigo

- É mister do cavaleiro

não ser dado a lamento

pelas dores corriqueiras

de espasmo ou ferimento

quando forem resultantes

de algum enfrentamento

Quis saber o escudeiro

com o respeito devido:

- Só espero que gemer

não me seja proibido

que até um calo no pé

eu já acho dolorido

Repassando na memória

os livros que tinha lido

Dom Quixote assegurou

que seria permitido

pois conforme as novelas

tudo era respondido

Relativo aos despojos

Sancho queria partilha

Tinha sido convencido

a seguir naquela trilha

com promessa de estar

no governo duma ilha:

- Não esqueça o patrão

que desde minha partida

aceitei ser escudeiro

nesta jornada comprida

para ser recompensado

com a ilha prometida...

- Não se preocupe Sancho

pois aqui e além-mares

com os despojos da guerra

enricaram os meus pares

e pretendo que os nossos

ultrapassem os milhares

- Governar a sua ilha

será um grande serviço

pois quando chegar a hora

de honrar o compromisso

vai ser uma insensatez

aceitar menos que isso

Estando nessa conversa

depararam um bambuzal

Quixote ficou ditoso

de encontrar este local

Com uma vara comprida

faria a lança ideal

E a ponteira de ferro

da lança que se quebrara

Dom Quixote aproveitou

pra por na ponta da vara

tendo agora a sua arma

feita de ferro e taquara

Depois de terem os dois

por lonjuras viajado

aquela noite passaram

num arvoredo copado

debaixo de vasto céu

por estrelas cravejado

Com a lua clarejando

a paisagem européia

Quixote varou a noite

a pensar em Dulcinéia

a personagem central

de sua linda epopéia:

- Oh, minha dama gentil

não despreze meu amor...

Que farei se nunca mais

vir seu rosto encantador?

Será longo meu penar!

Será grande minha dor!

- Sei que nunca poderia

outra ser minha princesa

mas se as flores do campo

tivessem sua beleza

eu ficaria mais tempo

contemplando a natureza!

- Oh, estrela rutilante,

a razão do meu enlevo,

não serei o seu poeta

que a isso não me atrevo

mas não deixo de pagar

os suspiros que lhe devo!

Como se fosse Quixote

realmente apaixonado

dava suspiros enquanto

Sancho Pança estirado

sem ouvir grilos ou rãs

dormia um sono pesado...

XI - Décimo primeiro episódio que trata do que sucedeu ao cavaleiro com uns cabreiros e de como concluíram que era um maluco (completo)

O "famoso" Dom Quixote

conforme muitos autores

estava sempre disposto

malgrado vários fatores

a cruzar toda Espanha

defendendo seus valores

Todavia os relatos

de suas doidas ações

apresentam divergências

em variadas questões

inclusive no seu modo

de fazer as refeições

Manuscritos apresentam

o fidalgo ingenuoso

esperando por convite

em banquete suntuoso

por julgar ser a rotina

de um paladino honroso

Em outros o cavaleiro

tem por grande honraria

ser privado e provado

em coisas do dia-a-dia

aceitando alimentar-se

com qualquer comedoria

É bastante ilustrativo

o encontro com cabreiros

que já tinham por costume

receber os forasteiros

que passavam na estrada

sendo muito hospitaleiros

O registro do encontro

com riqueza detalhado

encontrei em um caderno

que apesar de amarelado

tinha um texto legível

totalmente conservado:

E sabendo os cabreiros

que estavam de passagem

eles foram convidados

a fazer uma paragem

para ali no acampamento

descansarem da viagem

Enquanto o escudeiro

amarrava os animais

Quixote era tratado

de maneiras cordiais

sendo oferecido a ele

cozidos e coisas tais

Fizeram ele sentar-se

em gamela rente ao chão

para que Sancho servisse

a bebida a seu patrão

e esperassem uma cabra

cozinhada em caldeirão

E Quixote ao escudeiro

disse nesta ocasião:

- Quem serve à cavalaria

seja qual for a função

senta no mesmo lugar

onde está o seu patrão

Mesmo vendo no convite

uma grande honraria

Sancho Pança intimidado

dispensou a cortesia

que regras de etiqueta

o mesmo desconhecia:

- Prefiro pão e cebola

que um belo peruzinho

se eu não puder soltar

nem até um arrotinho

Por essas formalidades

prefiro comer sozinho

Mas Quixote insistiu

no convite formulado

obrigando o escudeiro

a sentar-se do seu lado

e assim aquele assunto

ele deu por encerrado

E com aqueles cabreiros

no entorno da fogueira

o escudeiro sentiu

a chegada sorrateira

de uma quase saudade

de sua lida campeira

Comendo com regozijo

a carne que foi servida

e sorvendo uma guampa

onde estava a bebida

Sancho para os cabreiros

disse sobre a comida:

- Um sujeito como eu

que é torado no grosso

uma cabritinha dessas

vai roendo até o osso

que com fome apertando

não existe o insosso

- E como diz o ditado

toda coisa que se come

não sendo uma iguaria

se tempera com a fome

e cemitério de cabras

hoje é o meu abdome

Pois D. Quixote no meio

daquela gente simplória

pediu atenção a todos

pra contar uma história

das muitas que ele tinha

conservadas na memória:

- No mundo corria a fama

dos doze pares de França

mas o Conde Galalão

com o plano de vingança

ajustou com sarracenos

a mais torpe aliança

- E ali nos Pirineus

a garganta escarpada

foi o cenário perfeito

para uma emboscada

que por sua felonia

tinha sido planejada

Sancho Pança escutava

com bastante atenção

o relato entusiasta

que fazia seu patrão

da batalha derradeira

do cavaleiro Roldão

- Subiram os doze pares

ao lugar mais elevado

da penedia e viram

todo o vale ocupado

pelas tropas sarracenas

que ali tinham chegado

- Uma grande epopéia

desvendava seu enredo

Vislumbrando a figura

dos pares sobre o rochedo

os sarracenos sentiram

um arrepio de medo...

- E Roldão estava pronto

pra lutar mais uma vez

com os maiores rivais

do exército francês

Seu amigo Oliveiros

apelou pra sensatez:

- Não podemos enfrentar

a falange estrangeira

que agora está cercando

esta região inteira

Eles tem cinquenta mil

somente numa fileira

- E Roldão deu a resposta

instigado em seu brio:

- Os doze pares armados

lutando horas a fio

seriam suficientes

pra render duzentos mil

- Se a falange inimiga

é aqui mais numerosa

nossa vitória será

ainda mais grandiosa

pra honrarmos a milícia

da nação mais valorosa

- Sem ainda concordar

com seu amigo Roldão

Oliveiros alertou

que o biltre Galalão

tinha tudo planejado

pra fazer a traição:

- Que evite a cilada

peço a nosso comandante

Carlos Magno ao menos

não está muito distante

Você pode avisá-lo

tocando seu olifante

- Mas Roldão a Oliveiros

nesse ponto foi conciso:

- Chamar o imperador

eu sei que não é preciso

e não tocarei a trompa

para dar qualquer aviso

- Nós somos numa peleja

osso duro de roer

e soldados mais altivos

inda estão para nascer

Hoje vamos ver o mouro

debandar ou se render

- Oliveiros repetiu

seu pedido ao comandante

refletindo ser melhor

que tocasse o olifante

uma vez que o soberano

não estava tão distante:

- Peço a nosso capitão

que escute o que digo

Como é mais numerosa

a falange do inimigo

não precisamos expor

nossos homens ao perigo

- E o conde desprezando

o exército mourisco

respondeu que na peleja

não corriam nenhum risco:

- Hoje vão se enfrentar

o trovão e o corisco

- Se estão em maioria

não precisamos saber

No final desta peleja

muito tempo vamos ter

pra contar e recontar

quantos vieram morrer

- Mesmo tendo que travar

uma luta encarniçada

minha guarnição fará

com a lança e a espada

cada mouro se render

ou bater em retirada

- No lugar do olifante

para dar algum alerta

tenho minha Durindana

e pagão que ela acerta

ou suplica a rendição

ou se aparta e deserta

- Terminada a discussão

decidiram por lutar

O exército dos francos

depois de se equipar

foi descendo pelo vale

para os mouros atacar

- Percebendo o avanço

dos franceses no terreno

rei Marcílio na batalha

comandante sarraceno

ordenou o contra-ataque

com apenas um aceno

- E Roldão saiu na frente

seguido pelos demais

Golpeava com a lança

assombrando seus rivais

Nenhum mouro escapava

das estocadas fatais

- Chefiando a vanguarda

o paladino de França

desde o primeiro golpe

mostrou a sua pujança

Derrubou vários pagãos

até quebrar sua lança

- Só então ele sacou

sua arma Durindana

e montado em Bridadoiro

avançou pela savana

visando desbaratar

a milícia mauritana

- Sarracenos acossaram

o bravo duque Buzim

que brandindo sua arma

disse a eles assim:

- Mais de um é pelotão

e a todos vou dar fim!

- E partiu dando espadada

tão a torto e a direito

que seu golpe fulminante

na cabeça ou no peito

o oponente mais forte

derrubava desse jeito

- Outro grupo novamente

avançou contra Ricarte

que no grosso da ação

inda não tomava parte

pois estava ocupado

carregando o estandarte

- Sir Ricarte retirando

sua arma da bainha

desferiu um duro golpe

no que mais afoito vinha

que levando a cutilada

nunca mais comeu farinha

- Como os outros pagãos

prosseguiam atacando

manejando a espada

um por um foi derribando

pra deixar lá na Arábia

mais viúvas pranteando

- No avanço dos franceses

que lutavam muito bem

um guerreiro só caía

derrotando mais de cem

O comandante Roldão

não perdia pra ninguém

- Confirmando o paladino

sua fama de valente

com a sua Durindana

derrubava prontamente

todo e qualquer soldado

que cruzava sua frente

- Como ele precisava

atacar o rei pagão

para abreviar a luta

e forçar a rendição

quando ele o avistou

foi na sua direção

- Percebendo a manobra

vários mouros em ação

as frentes abandonavam

para atacar Roldão

No entorno do guerreiro

era grande a multidão

- Com destreza absoluta

a espada manejando

prosseguia o paladino

no terreno avançando

Sem errar golpe nenhum

ia a todos derribando

- De repente apareceu

um enorme elefante

deixando cada francês

assombrado e ofegante

com a sua aparência

monstruosa e gigante

- Montado no paquiderme

vinha o melhor arqueiro

procurando alvejar

com o seu arco ligeiro

o mais bravo paladino

só com um tiro certeiro

- Pois no alto da colina

ficou ele esperando

a passagem de Roldão

que já vinha avançando

sem o mesmo perceber

o arqueiro tocaiando

- Choviam setas francesas

no arqueiro vigilante

mas nenhuma o acertava

por estar muito distante

Foi então que Oliveiros

disparou no elefante

- O elefante africano

alvejado pelo flanco

esmagou vários pagãos

rolando pelo barranco

Quem ali não sucumbiu

saiu da batalha manco

- Eram muitos sarracenos

que rechaçavam Roldão

na defesa de Marcílio

o versuto rei pagão

promovente da falsídia

com o conde Galalão

- E no confronto direto

com o biltre rei pagão

o melhor que conseguiu

foi cortar a sua mão

que levando esse golpe

retirou-se da ação

- Com intento de barrar

a investida dos francos

os soldados sarracenos

nos penedos e barrancos

faziam pedras enormes

rolarem aos solavancos

- Os franceses atraídos

para os desfiladeiros

sem ter o conhecimento

dos terrenos traiçoeiros

sofriam grande revés

pela perda de guerreiros

- Nessa hora a batalha

foi ficando mais intensa

Cada baixa dos franceses

era uma perda imensa

que um soldado a menos

já fazia diferença

- E como se fosse pouco

ser menor seu efetivo

foi subindo pela serra

no momento decisivo

outra leva de soldados

com impulso combativo

- Chegavam muitos cavalos

trazendo mouros no dorso

Os sarracenos tirando

vantagem deste reforço

forçavam cada oponente

a lutar com mais esforço

- Quando vislumbrou ali

seu exército minguando

acredito que Roldão

percebeu estar jogando

seu xadrez num tabuleiro

cheio de peças faltando

- Só então que abalado

disse para Oliveiros:

- Não podemos mais contar

com a fibra dos guerreiros

que a tropa vê chegar

seus momentos derradeiros

- Por ter sido vaidoso

com a força do meu braço

e dos outros paladinos

cometi um erro crasso

vendo o nosso efetivo

pelejando mais escasso

- Reconheço que eu sou

o responsável por isso

Não podemos resistir

a outro ataque maciço

Nossa tropa de elite

faz seu último serviço

- A imensidão do vale

as montanhas colossais

a profundeza dos rios

longos e torrenciais

dessa hora tenebrosa

deram todos os sinais

- Assim eram os guerreiros

que aqui eu represento

Por honrarem a bandeira,

seu cavalo e armamento

tem que ser mencionados

sempre com devido acento

- Um perfeito cavaleiro

tem nobreza e coragem

um desejo permanente

de honrar sua linhagem

ser pujante em batalha

e fiel na vassalagem

- Vocês tem o privilégio

de conhecer o famoso

Dom Quixote, cavaleiro

tão honrado e corajoso

que na Espanha não há

um outro mais valoroso

- Sou espelho e resplendor

dos cavaleiros andantes

Maior que Rodrigo Díaz

Amadises e Tirantes

Melhor do que Palmeirins

e guerreiros semelhantes

- Agradeço o tratamento

com respeito e cortesia

que a nós foi dedicado

uma vez que é primazia

dos cavaleiros andantes

toda sorte de honraria

E cada um dos cabreiros

aceitou ficar quieto

escutando Dom Quixote

com seu discurso repleto

de disparates próprios

de um maluco completo

XII - Décimo segundo episódio que trata do que Dom Quixote falou aos cabreiros sobre Dulcinéia e de como salvou uma donzela em apuros.

Um cabreiro que comia

um pedaço de morcela

perguntou a Dom Quixote

se ele tinha uma donzela

por quem era apaixonado

e qual era o nome dela

D. Quixote interessado

em continuar a prosa

ao cabreiro apresentou

uma resposta pomposa:

- Dulcinéia de Toboso

é minha dama formosa

- A sua grande beleza

e todos demais primores

dão prova de genuínas

as palavras e as cores

em tudo que foi criado

por poetas e pintores

- Nem Helena de Esparta

nem a modelo Frinéia,

Vênus, Laura, Beatriz,

Simonetta ou Galatéia

eu considero mais belas

que a minha Dulcinéia

- A sua nobre linhagem

que a virtude sublinha

no futuro certamente

vai levá-la a ser rainha

promovendo sua estirpe

pra maior ventura minha

- O território espanhol

na sua total vasteza

nunca viu e nem verá

dama de maior nobreza,

elegância, distinção,

pulcritude e fineza...

Nos cabreiros o velhote

foi deixando a impressão

de sujeito amargurado

no revés duma paixão

sendo este o motivo

de perder sua razão

Com toda certeza eles

tiveram como respaldo

para pensarem assim

a história de Vivaldo

que estava concluída

com um desditoso saldo

Quixote ficou sabendo

que a pastora Marcela

tinha deixado o rapaz

cego de amor por ela

não querendo aceitar

o descaso da donzela:

- Vieram nos avisar

que o jovem abalado

com a tal desilusão

tinha se desesperado

e naquela madrugada

estava sendo velado

- Não havia uma razão

pra ter sido rejeitado

Era o melhor partido

no florente povoado

sendo formoso no porte

e bastante abastado

- Uns dizem que a paixão

do rapaz foi desmedida

outros que a mão da moça

tinha sido prometida

e somente esperava

ver a promessa cumprida

- Marcela também provinha

de família endinheirada

Por um tio que era padre

em clausura foi criada

Mas ela por casamento

nunca foi interessada

- Certo dia esta moça

causando grande surpresa

dispensando totalmente

os afagos da riqueza

e contrariando todos

decidiu ser camponesa

- E todos puderam ver

a beleza de Marcela

que desfilando no campo

a perfeição da donzela

deixou os ricos e pobres

querendo casar com ela

- E a camponesa sabe

que em toda redondeza

estão os apaixonados

por sua grande beleza

mas pedido de casório

ela nega com firmeza

- Como aqui é muito raro

uma jovem sem marido

estão todos esperando

que ela aceite um pedido

e mantendo a esperança

de ser o seu escolhido

- Nem a sina de Vivaldo

servirá de ensinamento

para esses pretendentes

que ficam todo momento

externando por Marcela

suas queixas e tormento

- Se a maioria deles

numa tola presunção

para oferecer a ela

tem somente a paixão

este nunca foi o caso

do fidalgo em questão

- Se amanhã o senhor

assistir ao funeral

saberá quantos amigos

em consternação geral

estarão com a família

na despedida final

E depois de terem eles

a conversa encerrado

por um dos cabreiros foi

Dom Quixote convidado

a poupar-se do sereno

e dormir sob telhado

Como era a sua praxe

passou toda a madrugada

sem tirar do pensamento

a lembrança da amada

que nem os apaixonados

da história relatada

Prosseguindo a pesquisa

no Arquivo Nacional

encontrei em documentos

copioso material

com relatos de Quixote

presente no funeral:

A família de Vivaldo

no enterro reunida

junto dos amigos dele

lamentando a despedida

recebia condolências

na cerimônia devida

Perguntaram a Quixote

que fantasia era aquela

e o motivo de estar

com a lança e a rodela

como se fosse soldado

na função de sentinela

- Como cavaleiro andante

preciso estar equipado

para defender as terras

por onde tenho passado

É dever do cavaleiro

estar sempre preparado

Por dizer aquelas coisas

e apresentar-se armado

quem estava no velório

pranteando o finado

percebeu que D. Quixote

era um louco arrematado

Pela morte de Vivaldo

muitos culpavam Marcela

mas havia outro grupo

dos que defendiam ela

quando a dita apareceu

no alto duma penela

Grande contrariedade

ou fascínio e surpresa

provocou o surgimento

da singela camponesa

que depois de dar pesares

disse em sua defesa:

- Eu não vim ao funeral

pra causar constrangimento

mas muitos estão dizendo

que enjeitando o casamento

com meu amigo Vivaldo

provoquei seu passamento

- Esperam que eu me case

devido a minha beleza

despertar forte paixão

nos homens da redondeza

mas a escolha que fiz

foi ser uma camponesa

- E se o jovem Vivaldo

viu em mim só a beldade

é sinal que não tivemos

a mais fraca afinidade

e não podem me culpar

por sua imaturidade

- A mulher cuja beleza

deixa os homens cativos

e com isso envaidece

o que faz é dar motivos

pra pensarem que só tem

nada mais que atrativos

- Sem escolha recebi

o favor da natureza

mas com minha formação

sempre tive a certeza

que eu tenho muito mais

do que a fugaz beleza

- Há solteiras como eu

que são igualmente belas

mas ninguém será forçado

a casar com uma delas

tendo apenas por critério

a beleza das donzelas

- A ninguém eu seduzi

ou dei falsa esperança

que ser uma camponesa

é meu sonho de criança

nunca tendo interesse

em viver na abastança

- Recusando a fidalguia

com suas ocas rotinas

meu anseio é somente

andejar pelas campinas

sendo livre e ditosa

entre cabras e cravinas

- Alguém de vocês aqui

tomaria por cordura

obrigar uma mulher

a viver só na clausura

pretextando por motivo

sua grande formosura?

- Alguém de vocês aqui

teria por coisa certa

querer ver uma mulher

completamente coberta

pretextando por motivo

o ardor que ela desperta?

- Declarando que eu sou

responsável por meus atos

fiz aqui minha defesa

de acordo com os fatos

esperando que já tenha

convencido aos sensatos

Terminando seu discurso

a pastora retirou-se

Dispensando a resposta

a camponesa virou-se

e na mata atrás de si

novamente embrenhou-se

Ainda mais fascinados

pela graça de Marcela

e pelo resplandecer

da inteligência dela

alguns quiseram sair

no encalço da donzela

Vendo eles intentando

ir atrás da camponesa

Dom Quixote vigilante

agiu com muita presteza

pois sacando a espada

gritou em sua defesa:

- Terá que passar por mim

quem quiser seguir Marcela

Uma das minhas funções

é socorrer a donzela

que esteja em perigo

como agora eu vejo ela

- Inspirando ser mulher

de conduta continente

o que Marcela falou

foi mais que suficiente

para demonstrar a todos

o quanto está inocente

Calculando ser Quixote

um maluco violento

todos os apaixonados

desistiram do intento

de seguir a causadora

do seu apaixonamento

Como o funeral seguiu

sem ter outro incidente

ao depois dar pesares

a cada amigo e parente

Dom Quixote retirou-se

do meio daquela gente

XXI - Vigésimo primeiro episódio que trata da grande aventura

e preciosa conquista do elmo de Mambrino, com outras coisas acontecidas

ao nosso invencível cavaleiro

Cavaleiro e escudeiro

indo por um matagal

adentraram de repente

em uma zona rural

encontrando no trajeto

um extenso milharal

Quando entraram ali

procurando por atalho

avistaram de passagem

um prosaico espantalho

que era só um boneco

costurado com retalho

E Quixote o apontando

disse a seu escudeiro:

- Não podemos prosseguir

sem examinar primeiro

aquele velho estafermo

de treinar um cavaleiro

Sancho Pança intrigado

respondeu a seu patrão:

- Isto ali é um boneco

de remendo de algodão

feito só pra espantar

as aves da plantação

- Eu terei que repetir

que o seu conhecimento

sobre a lida campeira

é debalde num momento

em que o tema das armas

novamente toma acento?

- Pois ali no estafermo

que deixaram escondido

você vê um espantalho

só porque é parecido

esquecendo que no tema

sou bastante instruído

- Pois você tem o dever

uma vez que é escudeiro

de fazer adestramento

como faz um cavaleiro

ainda que não alcance

o primor de um lanceiro

- Na vara do estafermo

vou amarrar a rodela

Você monta em Rocinante

e avança contra ela

como se fosse Amadís

defendendo uma donzela

E depois que seu escudo

foi no boneco amarrado

Dom Quixote o carregou

para o amplo descampado

que pra ele era o lugar

onde tinha sido usado

Desejando só brincar

Sancho a tudo aceitou

Como se fosse lanceiro

em Rocinante montou

e a lança de taquara

no espantalho mirou

Foi ali que o escudeiro

imitando Dom Quixote

deu a carga esquecendo

já não ser um rapazote

e gritou se aprumando:

- Sou agora Lancelote!

Com a lança apontando

pra sua sorte ou azar

bem no meio do escudo

conseguiu ele acertar

e com a força do golpe

fez o boneco rodar

O espantalho girando

desferiu de supetão

uma varada em Sancho

que deixando um vergão

fez o mesmo desmontar

caindo bambo no chão

Quixote foi acudir

o escudeiro estirado

dizendo que o revide

do boneco era esperado

e ali mesmo no chão

Sancho foi elogiado

O que Sancho retrucou

tem o grau do desatino

de um longo praguejar

o qual repetir declino

pois teria que o fazer

só em verso fescenino

O leitor mais exigente

que procure nos relatos

do cronista Benengeli

uma apuração dos fatos

feita com maior rigor

em impressos correlatos

Sancho Pança pra poder

da queda ir recobrando

precisou ficar sentado

um momento descansando

e os dois aproveitaram

esse tempo conversando

Permeando a conversa

com ditados populares

coisa que o escudeiro

conhecia aos milhares

falaram de cavaleiros

e assuntos similares

Sancho Pança descobriu

que Dulcinéia, a rainha,

era Aldonza de Lourenço

com quem parentesco tinha

sendo ela a concunhada

do avô de uma vizinha

Disse ele que na vila

onde era conhecida

era simples porcariça

que só andava fedida

trabalhando na pocilga

com os porcos entretida

Dom Quixote na defesa

de Aldonza ou Dulcinéia

disse que ela seria

pra sempre a sua tetéia

comparando a sua musa

com a grácil Galatéia:

- Pois vivia numa ilha

um monarca escultor

que no seu belo jardim

trabalhava com ardor

Todo o povo conhecia

seu trabalho e valor

- A não ter uma esposa

já estava decidido

que só damas indecentes

o queriam por marido

mas tiveram todas elas

recusado seu pedido

- E fazendo a escultura

de uma linda donzela

mesmo sem ter uma dama

para ser modelo dela

percebeu que estava ali

a sua obra mais bela

- E a deusa Afrodite

adentrando seu jardim

vendo tanta perfeição

na donzela de marfim

já sabia que na ilha

não havia dama assim

- E ficando Afrodite

nesta hora comovida

desejando dar ao rei

a esposa pretendida

fez então uma mulher

da imagem esculpida

- O rei Pigmaleão

no sonho realizado

com a bela Galatéia

ditoso ficou casado

Pela sua compostura

ele foi recompensado

- Os poetas são assim

feito um Pigmaleão

Quando elegem sua musa

pra lhes dar inspiração

é a quem vão dedicar

versos cheios de paixão

- E assim vejo Aldonza

virtuosa e requintada

que tem uma louçania

só com fadas comparada

e pra mim sempre será

minha Dulcinéia amada

Essa Aldonza que conheço

apenas de ouvir falar

é a princesa perfeita

a quem sempre irei amar

e meus feitos valorosos

sempre a ela dedicar...

Sancho Pança escutando

disse que tinha 1 porém

pois mesmo a sua patroa

a quem mais queria bem

tinha suas qualidades

e seus defeitos também

- É fácil amar a princesa

que nunca lhe dá ensejos

de saber se ela existe

tal e qual os seus desejos

e nem pode transformar

seus suspiros em bocejos

Sancho Pança sugeriu

a Quixote uma idéia

de irem ao povoado

conhecer a Dulcinéia

pra saber se ela seria

mesmo a sua Galatéia

Estando nestas conversas

começou um chuvisqueiro

Montado no seu jumento

apareceu um barbeiro

que distraído subia

na vereda do outeiro

Pra poder se proteger

da chuvinha que caía

o barbeiro colocou

na cabeça uma bacia

e montado num jumento

o barranco ele subia

E Quixote o avistando

disse a seu escudeiro:

- Sancho Pança, veja que

vem subindo um cavaleiro

cavalgando num corcel

que galopa bem ligeiro

Sancho Pança intrigado

disse sem acanhamento:

- Eu só vejo um cidadão

que montado num jumento

vem subindo na colina

com um trote meio lento

Mas Quixote respondeu

já montando no eqüino:

- É mais uma aventura

que nos trouxe o destino

O guerreiro na cabeça

tem o elmo de Mambrino!

Dizendo isto Quixote

seu cavalo esporeou

Na descida do outeiro

resoluto disparou

e pra cima do sujeito

com a lança avançou

Rocinante que descia

galopando no embalo

progredia na ladeira

com tropeço e resvalo

Dom Quixote confiante

foi gritando no cavalo:

- Escute o que eu digo

cavaleiro atrevido!

Me entregue o morrião

que a mim só é devido

ou vai conhecer a lança

dum guerreiro aguerrido!

Sem ao menos entender

o que estava acontecendo

o barbeiro do jumento

bem ligeiro foi descendo

e derrubando a bacia

para o mato foi correndo

Dom Quixote satisfeito

vendo a bacia no chão

disse para o escudeiro

recolher seu "morrião"

que depois de um exame

deu a dita a seu patrão

- Se um dia retornar

para minha parentela

vou limpar esta bacia

com estopa ou flanela

pois parece muito boa

de fazer a barba nela

- Pois foi o mago Frestão

que com a sua magia

fez o elmo de Mambrino

parecer uma bacia

mas é como um bacinete

que tem a sua valia...

- Acontece que isto aí

nunca foi um capacete!

Eu conheço uma bacia

e também um bacinete

A não ser que isto seja

talvez um bacia-nete!

E os dois se revezando

entre falante e ouvinte

as suas próprias idéias

defendiam sem acinte

Vamos ver como ficou

no episódio seguinte

LII - Quinquagésimo segundo episódio que trata do retorno de Dom Quixote ao seu calmo vilarejo da Mancha

No estado em que ficou

Dom Quixote mal podia

subir em seu Rocinante

e por isto não subia

ficando neste impasse

com a sua montaria

O barbeiro e o padre

aproveitando o ensejo

criaram uma estratégia

que forçava o andarejo

a retornar sem demora

pra seu calmo vilarejo

Levariam Dom Quixote

transportado em charrete

numa jaula de madeira

sem poder pintar o sete

Um anão que contrataram

aceitou fazer o frete

Avistando a carreta

recordou-se D. Quixote

do enredo da novela

do guerreiro Lancelote

e foi isto que bastou

pra iludir o velhote

Inquirindo a este anão

que estava na boléia

quis saber se por ali

tinha visto Dulcinéia

quem sabe se passeando

entre as faias em aléia

O anão disse que estava

indo para a fortaleza

justamente onde morava

a referida princesa

e naquele mesmo dia

a veria com certeza

O anão ainda disse

que ele querendo ir

ao lugar mencionado

teria que ali subir

e ficando enjaulado

a viagem prosseguir

Sancho disse a Quixote

que se fosse ajuizado

nunca aceitaria ser

na carreta enjaulado

pois o povo o teria

por bandido condenado

Dom Quixote concordou

que seguir aprisionado

bastaria a um guerreiro

pra ficar envergonhado

arriscando-se a deixar

o seu nome deslustrado

Entretando por receio

de julgar mal a questão

ia ter que desprezar

os alertas da razão

pra seguir aprisionado

na charrete do anão

Como estava para ver

Dulcinéia de Toboso

por estar apaixonado

nada era tão custoso

pois provaria depois

quanto era valoroso

Sem receios embarcou

na charrete o velhote

pensando que repetia

a trama de Lancelote

mas era tudo encenado

pra levarem D. Quixote

Foi nesta carreta que

retornou ao povoado

e na praça onde chegou

num domingo ensolarado

todo povo ali presente

viu Quixote enjaulado

Pois enquanto desfilava

entre o povo na pracinha

um rapaz já foi correndo

avisar sua sobrinha

que o tio em uma jaula

como prisioneiro vinha

Quando Quixote chegou

fraco e emagrecido

a sobrinha e a criada

lamentando o ocorrido

maldisseram os romances

que o fidalgo tinha lido

Chegando também na casa

a mulher do escudeiro

mostrou-se preocupada

com o jumento primeiro

antes de saber de Sancho

se trazia algum dinheiro

Reclamando abertamente

quanto já tinha sofrido

da saudades que sentia

na ausência do marido

ela escutou de Sancho

o que tinha acontecido

O barbeiro e o padre

foram então encarregados

de juntar rapidamente

livros e assemelhados

pra numa grande fogueira

serem no pátio queimados

O fidalgo em seu leito

pela criada tratado

apresentando a melhora

seria mais vigiado

por causa dos desatinos

que já tinha praticado

Mas vendo ele na cama

com a dor a lhe afligir

pra sobrinha do fidalgo

foi bem fácil deduzir

que passariam dez anos

sem o tio querer sair

Essa história continua

em versões outras e várias

mas o mais interessante

é buscar fontes primárias

o que só pode ser feito

com pesquisas necessárias

FINIS

Carlos Alê
Enviado por Carlos Alê em 10/10/2021
Reeditado em 22/02/2023
Código do texto: T7360454
Classificação de conteúdo: seguro
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