Narrativa jararaca: o milagreiro sortudo
1.
Posso dizer obrigado
Pelo todo dessa vida?
Desse meu desassossego
Dessa intriga entretida
Banhada de desafeto
Para mim comprometida?
2.
Eu sei do meu compromisso
Em não ser ocultamento
De agir pela verdade
Não ceder ao cabimento
De honrar pela palavra
Empenhada no lamento.
3.
Agora venha até cá
Sente aqui nessa cadeira
Não pisque nem o olhar
Não se faça de bandeira:
Tremendo em cima do mastro
Estragando a brincadeira.
4.
Quero dizer desse dia
De morte do Jararaca
Do cangaceiro do rei
Do trono de urucubaca
Na porta do cemitério
Bem dentro da cova opaca.
5.
Eu não tinha nem nascido
Nessa vida aqui de fora
Eu era um anjo torto
Lá do sertão de Miora
Uma velha cega do olho
Da boca de birimbora.
6.
Explico, vamos seguir
Fácil, assim, não vai ser
Mas ponha moeda aqui
Pro gosto aflorescer
As ideias vir tombando
Pro que devo esclarecer.
7.
De graça não tem a graça
De poder desbobilar
A saga do mais cruel
Milagreiro do lugar
Que morreu de emboscada
Sem o ato praticar.
8.
Vou falando assim difícil
Pra poder dizer que sei
Contar e comer farinha
No peito desse tal rei
Que só tinha era farofa
Pra ser o fora da lei.
9.
Assim me contou a cega
Existente antes de mim
Uma nó dada em goteira
Que sabia por tintim
Os entraves dessa história
Que passo a contar assim:
10.
O inferno tão vazio
Precisando diversão
Demônio desanimado
Capetas sem atração
Ouviram falar de lá
De uma certa invasão.
11.
Uma cidade perdida
No planeta cá de baixo
Quente que só a bexiga
De ferver eixo de encaixo
Do juízo do mal maior
Tinhoso do céu abaixo.
12.
O inferno ficou só
O espaço mais festivo
Desse mundo de trambique
Só pra ver o passo ativo
Dado pelo capitão
De juízo desprovido.
13.
Sujaram mais o local
Acenderam mais caldeiras
Vestiram as roupas novas
Compradas nas aroeiras
Guardadas dentro do mofo
Aguardando essas zueiras.
14.
Festa lá e festa cá
Início do tirinete
Das balas de maldição
Nas ruas nem tamborete
Só as bandeirinhas santas
Jararaca e Colchete.
15.
O tal rei tava escondido
Por detrás da algaroba
Não quis nem se arriscar
Quando meteram a baroba
Mesmo no mei da mei-dia
Do macho metido a peroba.
16.
Explico, mas tenha calma
Pra não tragar a história
De forma que dê pigarro
No goto da sua memória
Pra não dá um tranca rua
Na sua língua parlatória.
17.
Eu sou o contador
Eu sei do que estou dizendo
Pois sou é conhecedor
Antes de cê tá sabendo
Eu era o gato da velha
Que andou me discorrendo.
18.
Sei porque estava lá
Quando chegou o defunto
Morto naquela traição
Depois de já tá junto
Da morte velha de guerra
Naquele buraco unto.
19.
A cega girou a saia
Não deu nem o descarate
Do capeta ver o morto
Bater a porta do mate
Se ajoelhar sem poder
No chão daquele iate.
20.
Tratou de fazer feitiço
Pra fazer amarração
Daquele ser condenado
Sem poder pedir perdão
A santa, Divina luz
Padroeira da visão.
21.
Sabendo de onde vinha
O tal deste mequetrefe
Deu a melada no diabo
Fichando seu masotrefe
Assim ela quem chamava
Seu livro de cacatrefe.
22.
Deu a ele uma toalha
Água morna e sabão
Mandou logo tomar banho
Antes de fazer sermão
Ao invés de condenar
Estendeu foi a sua mão.
23.
Mostrou os seus bons anéis
O dente que lhe restava
Os óculos de bom ouro
A pulseira que atava
O impulso da vaidade
Que a ela angustiava.
24.
O cão nada entendeu
Da carne tão esperada
Daquela demora toda
Da gula ser devorada
De se fazer picadinho
Da alma desgovernada.
25.
Ele cuspiu foi um fogo
De labaredas picantes
Espalhadas pelo ar
Dos infernos tão sonantes
Contagiando de choro
Os capetas delirantes.
26.
Miora fazia a festa
Com o tal do bagunceiro
Propondo a ele acordo
De não ser um trapaceiro
Ela ia livrar o doido,
O amigo cangaceiro.
27.
Espia, que véia mais doida
Nesse sertão inventado
Se ele dessa a visão
Ele seria entornado
Passando a fazer milagres
Lá daquele outro lado.
28.
Como ele já tava morto
Um olho não faria falta
Aceitou logo a proposta
Sem picar a dama asfalta
Disse que aceitava
O causo.da cega malta.
29.
E esse foi o primeiro
Milagre do ordinário
Do morto por encomenda
Pra enganar o otário
Da tão falada potência
Cidade do coronelário.
30.
O cão ficou mesmo cão
Velha passou enxergar
O cangaceiro virou santo
E eu passei a contar
Herdado da minha mestra
A arte de enredar.
31.
Só invento umas palavras
Pra aumentar mesmo o charme
Daquilo que tenho dito
E provocar o desarme
De quem fica de butuca
No meu chapéu de alarme.
32.
Se gostou, eu agradeço
Não sou chegado a bobagem,
Se não gostou, eu entendo
Você é a velha vagem:
Não aceita oralidade
Dizendo ser bricolagem.
33.
Só sei que ela está aí
Com seu olho aberto
Andando pelas tais ruas
Enxergando tudo certo
O cão tá lá no inferno
Com os dois cegos-deserto.
34.
Agora eu vou é ali,
Comer uma tapioca
Beber sete copos d'água
Duas doses de ipioca
Pra esfriar as orelhas
Nesse rio de pororoca.
Marcus Vinicius - professor, escritor e contador de história.