Minhas Origens (minhas experiências na seca de 1968)

Meu querido amigoRosival Albuquerque, obrigado pelo E-mail. este cordel o publíco em sua homenage.

Minhas Origens

(minhas experiências na seca de 1968)

Ao sul do Ceará, em fértil vale,

Dos cariris antiga moradia,

Fica a cidade onde nasci um dia

Do mês de março, é essencial que fale

Que fui gestado estando o mundo em guerra,

E que nasci no ano do armistício,

Não era ainda equinócio, mas o solstício

Estava no seu fim em nossa Terra.

Criei-me livre como os passarinhos,

Vaguei nos montes onde as brisas vagam,

E elas me afagaram, como afagam

As finas plumas que alcatifam os ninhos.

Banhe-me nas nascentes e olhos d’água

Que gorgolejavam entre rochas vivas,

Alimentei-me das frutas nativas,

Ignorando da canícula a fraga.

Banhei-me no riacho cristalino

Que todos por aí chamavam “rio”

Mas que ante o verão virava um “fio”

Fino filete de água; cristalino

Quantos amigos tinham então ...e todos juntos íamos

Caçar, pescar, brincávamos, corríamos,

E na escola fazíamos a lição.

Da mesma geração, de ruas circundantes,

Filhos do que amigos de infância,

Cresceram ali, casaram, e com jactância

Contavam antigas loas, a nós, infantes.

Éramos quase irmãos de peles diferentes, ...Não eram nossos pais antigos companheiros ?

E nossos bisavós dali os pioneiros ?

E ali nossos avós crianças como a gente ?

Não tínhamos igual o amor pela terra ?

Não tinham os folguedos origens iguais ?

E as cantigas de roda não a faziam tais

As moças da cidade, assim como as da serra ?

Não sabíamos todos as mesmas orações ?

Não eram os mesmos os hinos que cantávamos ?

E em qualquer escola onde estudávamos

Não eram os mesmos os livros e as lições ?

No meu pensar ingênuo assim eu via,

Tanta felicidade imaginária,

Própria da inocente faixa etária,

E do meio infantil onde vivia.

Tirou-me do estágio onde estava

Estacionária a alma de criança,

O ler nos rosto a desesperança,

E o cinzento da seca que chegava.

O reflexo da mesma se fazia

Presente, e a miséria era ampliada

E mesmo onde jamais faltava nada,

Assustadora, ela cruel batia.

Em nossa casa, ela sorrateira

Como quem nada quer, veio chegando,

O pouco que restava dizimando,

E nunca mais pudemos ir a feira.

Pelas ruas os bandos de flagelados,

Vagavam tristes, aleatoriamente

Trazendo nos olhares a dor pungente

Daqueles que se sentem condenados.

As notícias dos saques perpetrados

Por famintos em vilas e cidades,

De reações e de barbaridades,

E de homens feridos e trucidados

Formaram-se então bando de varredores

Limpando ruas a troco de comida

Na ânsia de salvar a própria vida

Invertiam-se todos os valores.

Eu era jovem, quase uma criança,

A tudo observava, tudo via,

Confesso hoje, que também sentia

Ir-se de mim o resto de esperança

Meu pai já não ganhava o sustento

Para a imensa prole que gerara,

Sua esperança ao certo esgotara

E se minguara todo seu alento.

Para aumentar a nossa desventura

Nosso poço secou, ficou só lama,

Bem cedo pai foi me tirar da cama

E pôs-me lá a cavar a terra dura.

Desceu-me numa corda, e eu raspava

A lama, e na lata atada à corda

De cima ele puxava até a borda

E a pouca distância a despejava.

Após limpar a lama, o barro duro

Expôs-se, e comecei a cavá-lo,

E no terrível afã de aprofundá-lo

Também me revesti de barro puro.

Depois de duas horas de labuta

Meu pai tirou-me, pois chegava à hora

De trabalhar, e ele ia embora,

Abrir sua oficina, sua luta.

No outro dia mal rompeu a aurora

Pai novamente veio e acordou-me

E novamente a velha corda atou-me

Desceu-me ao poço, escuro àquela hora.

Com vários dias de duro trabalho,

Ao velho poço muito aprofundamos

Grande foi o sucesso que logramos,

Deu água farta e pura como orvalho.

Andar nos brejos, observar a vida

Que em milhões de formas fervilhava

E a passarada que ali revoava

A e vegetação tão colorida

Era uma coisa que eu adorava,

E conhecia bem a região,

Já vira antes o brejo no verão,

Sabia que a terra ali rachava.

Mas juro; jamais antes vira nada

Igual aquilo que agora via

Uma terra crestada e que fedia

De ossos e de carcaças atapetada.

De vivo ali já não se via nada,

Pois i próprio vergel era cinzento,

Nada de verde havia, e um jumento

Estertorava à beira da estrada.

De verde só alguns mandacarus,

Ou alguma outra árvore resistente

A terra emanava um bafio quente

E no céu só se viam os urubus

Perambulei na terra devastada

Cheguei ao rio que agora cortado

Dividia-se em poços isolados

Cercados de imensa passarada.

Segui pois margeando o leito seco

Daquele rio onde sempre nadava

A indescritível mágoa me entalava

E eu arfava em busca de ar fresco

Num arrozal, na várzea que crestava

Ao sol, um homem num esforço ingente

Bombeava a água ainda existente

De um poço do rio que secava.

Ali vi a cena impressionante

Que tocou minha alma de criança

A e gravei de tal forma na lembrança

Que hoje a revejo a cada instante.

Pois em toda área humidificada

Pela água que ele bombeava

Uma multidão de aves disputava

Para pousar sobre a terra molhada.

Carcarás, gaviões, garças, socós,

Avoantes, rolinhas, bem-te-vis,

Marrecas, abrem-e-fecham, jurutis,

Entre urubus, e vi também mocós.

Carcarás eram os que mais haviam,

E uma coisa chamou-me a atenção

Embevecido, com um ramo na mão,

Andei entre eles, que não me temiam.

Parecia uma estória de Trancoso,

E que a paz fora ali decretada,

Pois nem os bichos nem a passarada

Viam-me como algo perigoso.

Voltei ali algum tempo passado,

Do arrozal já nada mais restava

De luz ondulações da terra levantava,

E estava todo o solo esturricado

Muitas das aves que ali bebiam

Dali não mais saíram, não voaram

Suas ossadas brancas ali ficaram

E em meio a outras tantas, lá jaziam.

Depois da grande seca a decadência

Nos atingiu de modo irreversível

Embora nós fizéssemos o possível,

Nunca mais conhecemos a abundância.

Então meu pai talvez esperançoso

Partiu de lá em busca de melhora,

Preparou sua mala e foi embora,

Nosso destino ficou nebuloso.

Comecei a trabalhar e o ganhava,

Entregava a mamãe (como era pouco!)

Trabalhei noite e dia, como um louco

Mas meu esforço pouco adiantava

Só Juarez e eu ali ficamos,

Além de mãe e mais quatro crianças,

Como eram poucas nossas esperanças,

Como foi dura a luta que enfrentamos.

Pai só veio uma vez nos visitar

(com grosso bigode que jamais usara)

atravessando a praça, ao longe o avistara,

achei-o parecido, corri a confirmar.

Demorou pouco, viera a buscar-me,

Mamãe não permitiu, voltou sozinho

Atravessei o brejo, e lá no salgadinho

Chorei desesperado por ele deixar-me

Decidi-me a segui-lo, iria a Canindé,

Iria lá fugido, já que não deixavam,

Lembrei-me dos antigos, como viajavam

E decidi que iria, ainda que fosse a pé.

Olhei nos mapas os riscos das estradas,

O traçado dos rios e riachos

Admirei os antigos “cabras-machos”

Que tangiam as mulas carregadas.

Que venciam as léguas empoeiradas

(Isto meu próprio avô muito fizera)

Sem caminhões ou trens, naquela era

Eram as coisas em comboios transportadas.

Sonhei noites seguidas, que foragido

Descia para o mar, seguindo o rio,

Quanta aventura, quanto desafio,

Ganhava do “Karl May” que havia lido.

Mas foi de trem que acabei partindo

E o destino traçou-me outro caminho,

Não fui a Canindé, pai ficou lá sozinho

E em Fortaleza fiquei residindo.

Desde lá cinco décadas se passaram

Mas as vívidas lembranças que me habitam

Na memória e nos sonhos ressuscitam

Os quadros que meus olhos então fitaram

Mestre Egídio
Enviado por Mestre Egídio em 20/03/2008
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