A MILHA DO AMOR

Manhã de sol forte na estrada que me leva a Jericó. Caminho silenciosamente. Estava cansado, desgastado, sobrecarregado. Subir a Jerusalém sempre me deixava assim: questionador. Mas, desta vez, em especial, trazia um mundo novo em meu coração: havia me assentado em uma certa montanha para ouvir um jovem Rabino. Nada especial, e tudo muito especial.

No vigor de seus 30 anos, gesticulava forte, caminhava decidido por entre a multidão que O ouvia, encantada. Falava muito com o olhar - Ah! E como falava! Impossível não abaixar as vistas quando nossos corações eram confrontados por aqueles sorridentes olhos castanhos.

Eu O ouvia, atento. Suas palavras fortes deitavam-se doces em minha alma. Eram desafiadoras. Vislumbravam um mundo pontuado por sentimentos nobres e por escolhas recheadas de sensibilidade.

Meus pensamentos passeavam nas lembranças daquela tarde memorável ao sopé da montanha, quando ouvi o tropel dos cavalos e o barulho típico das passadas vigorosas de um grupo de soldados romanos que se aproximava.

"Meus opressores", pensei, amargurado.

Reduzi meus passos... E acomodei minha caminhada fora da estrada, dando passagem àqueles que por tantos anos nos traziam sob jugo opressor.

"Cidadão, pegue minha bagagem. Ande... Rápido. Leve meu fardo por uma milha".

Não foi um pedido: foi uma ordem. E sob força da lei, eu teria que carregar por uma milha o fardo do meu inimigo. Respirei fundo. Meus músculos ficaram tensos e meu coração berrou ressentimento. Mas, era a lei: cabia-me apenas cumpri-la.

Sem que eu ao menos me preparasse, em um minuto, um saco pesado fora jogado em meus ombros: o fardo do meu inimigo. Pesado. Angustiosamente, pesado. Mágoa, ressentimento, revolta... Sentimentos que tornaram muito mais insuportável o fardo que eu carregava.

Em um minuto de trégua na minha ira, a voz forte do Rabino da Montanha soou límpida: "Se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas".

Meus olhos se encheram de lágrimas. Com que rapidez eu me esquecera do que ardeu em meu coração naquela tarde de vida.

Olhei para o soldado que caminhava ao meu lado. A lei romana era clara: um soldado poderia solicitar que seu alforje fosse carregado, sob peso de lei, por alguém na extensão de uma milha. Não se podia negar. Era obrigação, dever cívico.

O Mestre da Montanha sabia disso - todos seus ouvintes sabiam disso. Quantas vezes não tiveram que carregar em seus ombros o fardo do inimigo, do opressor, para que ele tivesse descanso.

Isso dói... Incomoda... Agride. Afinal, já temos nossas próprias cargas. E muitas delas nos são trazidas por ele - nosso inimigo. Uma milha é muito chão, quando se caminha com mágoa.

Enquanto prossigo minha jornada, observo o soldado ao meu lado: está exaurido. Quanto tempo não vê a amada, os filhos? Quanto tempo aquele corpo másculo não descansa em sua cama, em seu lar? Quanto tempo faz que o coração endurecido daquele jovem soldado não recebe uma palavra de afeto, tão acostumado que está em ser bombardeado por ordens gritadas e vazias de compreensão?

Meus olhos passeiam pela alma do meu inimigo... Pelo rosto tenso e desfigurado pelas guerras... Pelos lábios ressecados e esquecidos de como se sorri... E, naquele instante, percebo como seu fardo já não me pesa tanto... Abri a alma para o AMOR.

Caminho em paz, agora. Entendi o significado de molhar o coração do inimigo com o gotejar do meu amor.

"Pronto, cidadão... Pode me devolver o bornal."" Os olhos do Rabino da Montanha surgem nítidos em mim - tatuados que foram em meu coração. E decido amar. "Caminharei mais uma milha com seu fardo, soldado."

Meus passos agora são leves. Percebo, maravilhado, que meus ombros não carregam peso algum: só meu coração está repleto de amor. Vencida a milha do amor, devolvo ao soldado seu fardo.

Ele mergulha seus olhos nos meus. Por alguns minutos falo do meu amor, silenciosamente. E no rasgado singelo de sua boca, no tímido esboço de um sorriso, descanso na certeza de que lhe devolvo um fardo mais leve.

A tropa continua sua jornada. Meu inimigo/amigo também. Quedo-me emocionado na grandiosidade da descoberta: ao me dispor a caminhar a segunda milha - a milha do amor -, meu fardo desapareceu... O meu... E o do meu inimigo.

"Obrigado, Rabino... Obrigado."

Vivian
Enviado por Vivian em 18/01/2006
Código do texto: T100336