XBL7

A televisão sempre esteve presente na minha vida. No ano que eu nasci, meu pai adquiriu a nossa primera caixa mágica. Não que fossemos ricos, mas o velho João da Cruz, meu pai, sempre seguiu os desejos de minha mãe, e D. Francisca sempre esteve a frente das mães da época. Isso a quarenta e três anos atrás.

Lembro que caixa era amarela, e sem bem me recordo era GE. Éramos os únicos na rua a possuir tamanha maravilha, e com muito prazer a dividiamos com os vizinhos, em uma época que as pessoas verdeiramente se importavam com o bem estar da comunidade em que viviam.

Lembro que seguindo uma educação rígida, a nossa televisão tinha hora e momento para ser ligada. Não era como agora, quando nossas crianças tem acesso a mais de 100 canais e dezenas de programas, e diretamente em seus quartos, a qualquer hora. Além dos programas serem préviamente escolhidos por nossa mãe, e olha que não eram muitos, havia sempre o cuidado de que após a nove horas da noite o acesso a tão maravilhosa janela, nos era proibido.

Mais do que assistir televisão, outro grande prazer, em uma época sem games, computadores e internet, era presenciar o " conserto" da televisão.

Hoje oficinas especializadas, direcionadas para cada marca, dão assistência com profissionais treinados. Mas a quarenta anos atrás isto não existia. Existia sim, o "técnico da esquina" , e de preferência "amigo da família".

Chamar de técnico o tal profissional, é forçar um pouco a barra, mas na ausência de uma outra denominação, que fique o técnico.

Mas, voltando o conserto, o chamado técnico era o herói do dia, seria aquele que providenciaria a reabertura daquela janela, e melhor ainda, nos proporcionaria momentos de puro deleite, pois certamente nosso pai iria tentar aprender como aquela coisa funcionava.

Meu pai após se aposentar da Marinha Guerra, tornara-se um faz tudo. Consertava desde chuveiros a bombas d´água com defeitos. Tinha tantas ferramentas quanto qualquer oficina mecanica. E sabendo todos os vizinhos desses predicados, sempre que algo quebrava dentro dos lares amigos, lá ia João da Cruz com sua mala de ferramentas. Se consertava eu nao sei, mas sei que nunca ouvimos reclamações.

Só que televisão era televisão. Não eram marteladas que a faria voltar a funcionar, ou a simples troca de uma resistência de um ferro... pois é, sou do tempo que existia essa coisa de " resistência", que pra mim soava como um grupo de franceses tentando tomar a Bastilha. Mas voltando ao caso, meu pai cercava o técnico e ficava a observar aquelas dezenas de válvulas, ouvindo explicações que para nós era mais do que grego.

Mas as expressões do meu pai é que estava entendo, pois como é lógico, ele não poderia demonstrar para nós que sabia menos, pois para os filhos era era aquele cara, igual o do filme, tipo " papai sabe tudo".

Quando o Técnico ia embora, perguntavamos o que havia ocorrido, qual era o defeito, e ele sempre respondia: foi a XBL7. Ficávamos assombrados, recebendo o cadáver a válvula criminosa, que logo caíria no esquecimento até o próximo defeito.

Pronto. Tendo aprendido o nome da válvula, todas as vezes que a televisão pifava, ele assumia ares de técnico, abria a caixa e decretava... é a XBL7, mas minha mãe que era mais cética, o obrigava a chamar um técnico, e aí, qual era o diagnóstico ao final do conserto? a XBL7 causara o dano.

A tv tinha linhas na horizontal... era XBL7. O som sumia... era a XBL7... Não tinha imagem.... era a XBL7. Com o passar dos anos, mais sábios, começamos a desconfiar desse diagnóstico. Não era possivel que só esta válvula dava defeito. Mas respeitavámos o Senhor do Lar. O máximo era gracejar. A geladeira pifou... foi a XBL7. A luz faltou... foi a XBL7. Em tempos de ditadura militar, a XBL7 parecia um agente do SNI infiltrado em nossos aparelhos eletrodomésticos.

Aí... começou a época dos transistores. Meu irmão mais velho, já trabalhando, com alegria adquiriu um belo aparelho telefunken ( a marca da moda)... mas um dia também deu defeito. Veio o técnico, já no final dos anos setenta. Só que este era técnico de verdade, chamado através de oficina especializada.

Já erámos adolescentes e não havia mais tanta graça em acompanhar o conserto da televisão. Lembro que voltando da escola, perguntei: aí pai qual o defeito? meu pai resmungou... um transisto queimado. Antes que eu perguntasse o que coçava minha língua, ele completou... equivalia as funções da XBL7.

Oa anos se passaram, infelizmente meu pai já está falecido. Há algumas semanas, passando em uma loja especializada, me deparei com uma dessas televisões de tela de plasma, com menos de um centímetro de largura. lembrei com tristeza do velho João da Cruz. Senti saudades. Saudades de uma época que ele era o meu "papai sabe tudo". Mas a tristeza durou somente alguns momentos, logo em seguida fiquei rindo sozinha, tentando imaginar o que tipo de microchip teria substituído a XBL7. Pelo menos seria isso que meu pai diria.

Marta Cruz de Lima

marta Cruz de Lima

Publicado no Recanto das Letras em 07/07/2005

marta cruz de lima
Enviado por marta cruz de lima em 18/01/2006
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