Manifesto Líquido

Antes de você ser quase nada, eu já estava presente. Por longo caminho guiei sua semente e, por eu existir, ela conseguiu furar a parede e começar a ser você. Por intermináveis tempos inchei a barriga de sua mãe para protegê-lo. Imerso em mim, nadava em paz. Eu era seu escudo e seu agasalho e sua cama e seu alimento. Caprichoso artista o esculpiu com tempo e amor. E eu também era você. Quase tudo era eu, em cada tecido, cada espaço.

Houve o tempo de amadurecer e você desabrochou. Deixei de protegê-lo, talvez imaginasse sua pequena mente, mas agora é que começava nossa comum história. Lembra que lhe disse que quase tudo era eu? Você não se deu conta, mas eu continuava lhe rodeando, presente em tudo. Você descobriu pedra e era eu, você descobriu grama e era eu, você descobriu mãe e era eu. Você respirava e eu entrava por suas narinas, você se movimentava e eu saía de seus poros, você balbuciava e eu lubrificava sua língua, você comia e era eu que você engolia, você chorava e eu falava sua tristeza. Tudo era eu, e você voltava para mim pensando que era ao aconchego do ventre que voltava. Batia as mãos e minhas gotas desenhavam pérolas com sua alegria.

A vida o puxou para cima e para os lados e seus olhos curiosos me descobriram pintando arco-íris, atapetando encostas e sendo cúmplice de suas travessuras. Você me absorvia rindo para o céu, pisando forte nas poças só para ver-me levantar vôo e traçar curvas na minha queda.

Meio sem notar, você foi definindo caminhos e definindo quereres. Na sua cabeça, nada em mim tinha descanso. E eu com você: lembra da primeira folha de papel em que você escreveu a primeira letra? Fui eu que a fiz para você, assim como a árvore que pariu seu lápis ou o grafite que o preencheu e a mesa onde você se apoiou.

Seu caminho era meu caminho e por isso reguei a terra, para que você sentisse meu cheiro e a semente, novamente, desabrochasse e tivesse alimento e crescesse como você cresceu e que a vida fosse abundante e tudo fosse suficiente para todos e que eu levitasse por causa do sol e pintasse fantasias no céu e me derramasse em generosidade sempre.

Fui você antes de seu início, sou você em cada instante. Abrando seu calor, lavo suas feridas, levo suas dores, sacio sua sede e sua fome. Sou rio, mar, gota, flor e fruto. Sou quase tudo. Sou vida.