Guerra de Camona

A bola de couro, número 4, usada até gastar os dedões, que chuteiras não as tinha – também, chuteira para perna de pau era desperdício puro – com o tempo, gastou também os gomos e algumas costuras. A câmara furava no início de cada jogo. Mudou-se o destino da bola: com alguns cortes, virou capacete de aviador. Um Saint-Exupéry viajando como o Pequeno Príncipe em cima de uma árvore magicamente transformada em avião. O universo todo cabia naquele capacete.

Perto de casa, o Mato do Kobs, tudo assim, nome próprio, construíamos cabanas com sala, copa e cozinha. No centro do mato havia uma cratera, onde construímos um verdadeiro forte, com o conforto de um cipó, estrategicamente nascido, que nos transportava via aérea por cima da cratera. Molecagens eram poucas, a não ser colher algumas batatas doces numa roça vizinha ao bosque, para assar. O Klaus ficava de guarda, trepado em uma árvore, de onde enxergava todos arredores. Se alguém se aproximasse, soltava um som estridente feito com a boca na corneta de uma buzina de caminhão estragada, e sumíamos no matagal. Sim, também caçávamos no Mato do Kobs e muitos outros matos, com fundas, batizadas de “cetras”, sei eu lá por que. No verão, pegávamos borboletas para vendê-las às fábricas que criavam bandejas, quadros e porta-jóias. O Ibama ainda não nos pegou por isso.

A Vanderléia me contou que, em São Francisco, uma das brincadeiras era a “Guerra de Camona”. Perto de casa arrancavam uma espécie de lírio selvagem cuja raiz tem o formato de um revólver e aí começava a guerra. Em São Bento fabricávamos uns revólveres toscos de madeira, mais tarde substituídos por revólveres de espoleta, e brincávamos de “camóim”. De “com’on” para “camona”, o caminho é curto, e de “com’on, boys” para camóin, também. Traduzíamos ambos para “mãos ao alto” ou “teje preso”. Reinventamos o inglês.

Esgrima era outra brincadeira. Espadas de madeira nos transformavam em D’Artagnans desajeitados sem nunca fazer mais estragos do que um ou outro dedo machucado. Acho que as mães não nos viam, pois não lembro de alguma gritando histericamente: “Vai furar os olhos!!!!”.

É, éramos totalmente politicamente incorretos. Ainda bem. Quem dera que as crianças voltassem a brincar de “Guerra de Camona”: iriam se divertir mais e seria bem mais saudável do que toda a violência explícita a que têm acesso em milhares de jogos eletrônicos.