Fuga

Desmotivado a escrever, simplesmente parei, rezando por um ilusório retorno ao talento. Tentara desabafar em linhas sujas a pressão dos lábios costurados. A vergonha censurara meu pensamento. Nunca fui forte. Por que seria agora? Talvez fosse o remédio para tanta decepção. Dolorosa cura. Naquele momento invejara os corações gelados.

Sem progresso. Dessa forma enxergo as linhas e atento para o cheiro do papel virgem. O que espero para arranhá-lo com desdém realçando meus traumas? Criatividade? Idéias generosas? Não! Falta coragem! A censura pessoal não admite que pensamentos sujos e reflexões ordinárias se acomodem. Qual será a saída? Descrever o belo e encarar o tema com frases que resgatem a dignidade e impulsionem os fracos?

Afogo-me em clichês. A simples travessia de rua se transforma em tragédia, onde os amantes confirmam o destino cruel. Até mesmo o sol conspira contra mim, tostando o cotidiano e enrubescendo aqueles que nunca se envergonharam ao enganar. Não peço muito. Somente quero apertar gargantas com linhas que simulem a aflição do longo cabelo molhado em dias frios.

Decido descansar a mente e arremesso os esforços na dedicatória. Assim ganho tempo até que descubram a farsa poética em meus textos.

Nunca dediquei nada a ninguém. Não por considerar minhas realizações superiores aos que receberiam as homenagens, mas por me preocupar com o choro dos esquecidos. Covardemente prefiro cravar no papel: “Dedico a quem não me conhece e não se sentirá ofendido com o fracasso das minhas palavras”. Engraçado. Sempre reclamei da pressão, mas agora sinto falta da faca no pescoço, aos berros, ordenando que me manifeste. Por que escolhi este caminho? Por que luto contra a inércia filosófica que, com teorias sacais e enlatadas, contribui para que faça parte do bloco em que ninguém se machuca? Humm, acredito que nunca quis estar nele.

Ainda assim junto peças que formem o homenageado perfeito. E se a obra for um sucesso? Milhões de fãs? Contratos que extrapolam a imaginação e atentam contra a realidade da nação? Quem merece a primeira fatia do bolo? Quem merece?

Após recuperar o fôlego lembro do meu sobrinho, proprietário de sinceridade arrebatadora e olhar angelical. Sem olhar para trás, atrasado para o encontro com seus amiguinhos quase adolescentes, certamente diria:

- Texto? Dedicatória? Livro? Pô tio, ninguém merece!

Cada dia gosto mais desse menino.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 19/01/2006
Reeditado em 16/11/2006
Código do texto: T101128
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