BALADA PARA UM LOUCO

Encontrei um conhecido ouvindo tango. Normal, considerando que mora no sul e já passou dos cinqüenta. São poucos os tangos que me chamam a atenção, Cambalache, Por una cabeza, Mano a mano, El día que me quieras, En esta tarde gris, La comparsita, Balada para um loco*.

Num tempo em que uma cantada pode ser “já é ou já era?”, o convite de Balada para un Loco, música de Astor Piazzola e letra de Horacio Ferrer, 1969, é, no mínimo, de rever conceitos.

“Num dia desses... você sai pela rua... e, de repente... apareço eu!!!! ... Meia melancia na cabeça, uma grossa meia sola em cada pé, as flores da camisa desenhadas na própria pele e uma bandeirinha de táxi livre em cada mão. Ah! ah! ah! Você ri... você ri porque só agora você me viu. Mas eu flerto com os manequins, o semáforo da esquina me abre três luzes celestes. E as rosas da florista estão apaixonadas por mim, juro, vem, vem, vamos passear. E assim meio dançando, quase voando eu te ofereço uma bandeirinha e te digo: ... A lua nos espera nesta rua, é só tentar. E um coro de astronautas, de anjos e crianças bailando ao meu redor, te chama: vem voar”.**

Este tango difere da linha mestra das letras de tango, pautadas pelas tragédias das perdidas, pelos desenganos, pelos amores mal resolvidos. Enrique Santos Discépolo, autor de Cambalache, 1934, "o tango é um pensamento triste que se pode dançar". O nome mais expressivo do tango foi Carlos Gardel (Buenos Aires cantava no teu canto, Buenos Aires chorava no teu pranto e vibrava em tua voz, Carlos Gardel***). Por volta de 1948, nasce a chamada escola de vanguarda do tango, que se prolongou até à década de 80. O maior representante deste período foi Astor Piazzolla, que deu ao tango características modernas. O autor, talvez para justificar o encantamento no convite, em Balada para um loco, colocou-o na voz de um louco.

“Eu venho das calçadas que o tempo não guardou. E vendo-te tão triste, pergunto: O que te falta? ...talvez chegar ao sol. Pois eu te levarei”.

E daqueles amantes todos que não agem como pessoas normais e que parecem fora de órbita, no mundo da lua, disse o autor: “louco, louco, louco, foi o que me disseram, quando disse que te amei, mas naveguei nas águas puras dos teus olhos... Ah, Ah, Ah, Ah! Louco, louco, louco, louco, louco! Como um acrobata demente saltarei dentro do abismo do teu beijo até sentir que enlouqueci teu coração, e de tão livre, chorarei”.

Como nos tempos em que ofereciam um dote, esclarece e se apresenta: “Vem, eu te ofereço a multidão, rostos brilhando, sorrisos brincando. Quem sou eu? Sei lá, um... um tonto, um santo, ou um canto a meia voz”.

E assim, absolutamente atual, num mundo em que os homens correm para “ganhar a vida” e onde a normalidade está na sociedade de consumo pautada pela futilidade, Ferrer conclui: Viva! Viva os loucos!!! Viva! Viva os loucos que inventaram o amor!

*Querendo ouvir procure em http://www.todotango.com/spanish/biblioteca/letras/letras.asp

**Os trechos citados são de uma tradução/versão de Rogério Cardoso, o Rolando Lero da Escolinha do Professor Raimundo.

*** Carlos Gardel, de Herivelto Martins e David Nasser.