Meus pobres livros

Tive-os em estantes e mais ou menos organizados, em gavetas, empilhados, na sala, no dormitório, no banheiro e até na cozinha, alguns com marcadores de onde parara alguma leitura ocasional, outros abertos em um ou outro trecho, enfim, via-os, sentia-os e compartilhava-os pela casa toda. Até a última mudança: acompanharam-me e eu os prendi por falta de espaço para liberdade para a qual nasceram. Encaixotados como foi possível, na lavanderia, espremidos e, o que deve ser o maior castigo para um livro, fechados, à espera, talvez, do dia em que teu tenha mais espaço para podermos, novamente, compartilhar.

Já pensei seriamente na possibilidade de algum ladrão invadir minha casa e levá-los todos. Talvez se espantasse com o conteúdo das pesadas caixas, mas – quem sabe o que vai na cabeça das pessoas? – poderia se encantar e passar a lê-los.

Como será que trataria minhas emoções de criança ao deparar com “O Pequeno Príncipe”, que li com uns oito anos de idade? Sentir-se-ia um herói, como me senti, com “As Aventuras de Tom Sawyer”, aos 11? Com “Quo Vadis”, acompanharia a epopéia de meus 13 anos? Será que agüentaria minha chata fase de Nietzche? Ficaria oprimido ao ler “O Processo” ou “Metamorfose”, de Kafka, ou “Estorvo”, de Chico Buarque, que não me deixou dormir?

Gibran lhe traria tanta luz e beleza quanto me trouxe? E se ele me imitasse e saísse distribuindo “O Profeta”, como tenho feito há mais de 30 anos, estaria remido do crime que cometeu?

O que faria com a velha edição de “Hamlet”, com as folhas caindo e as páginas repletas de anotações de pronúncia e tradução? Respeitaria minha memória naquelas páginas? Enfeitaria uma estante ou sentaria em cima da coleção completa de Machado de Assis? Quantas pescarias faria com Hemingway e por quantas morenas de Jorge Amado se apaixonaria? Henry Miller o escandalizaria? Acharia Saramago pesado e Süskind genial?

Pergunto-me se pararia para ler poesia e se o faria em voz alta, como, na garantia da solidão, às vezes o faço. Beberia o doce lirismo de Quintana ( “Poemas são pássaros que pousam nas páginas do livro que lês”)? Sentiria o peso da palavra de Thiago de Mello (“Faz escuro, mas eu canto”)? Admiraria as pedras trabalhadas por tantos ourives poetas?

Se acontecer de serem levados, só torço por uma coisa: que deixe as dedicatórias. Da incriativa “Com uma abraço de Affonso Romano de Sant’Anna”, até a lírica da Mila: “e temos esta brisa”. e a bondosa da Lair Bernardoni: “irmão pela arte”, e tantas outras que povoam as primeiras páginas. Fernando Karl, com seu definitivo do querer o bem: “Donald amigo, a você todo o céu”, por favor, deixe comigo.