Pés doados

Se você já se machucou ou fez alguma cirurgia a ponto de não poder se locomover, tem uma pálida idéia do que é não poder depender das próprias pernas. Pode levar sorte e ficar perto de uma janela grande e sentir-se um pouco mais parte do mundo, ou azar e ficar entre quatro paredes cinzas, esperando a benevolência de um relógio que teima em trabalhar devagar; pode ter sorte de ter alguém que o carregue para outros lugares e o ajude nos procedimentos mais prosaicos, como ir ao banheiro, por exemplo, mas pode ter o azar de só ter alguém em horários determinados e, ainda assim, atendendo com má vontade, xingando etc. Quem sabe arrume um passatempo, quem sabe entre em depressão, quem sabe, até, desista de viver.

E se você estiver consciente de que essa condição é para sempre? E se não tiver condições e não recebe ajuda?

Convivendo com o Neri – se não leu o livro dele, leia – aprendi muito, não apenas a respeitar, mas a entender como se sente um cadeirante, uma pessoa que usa cadeira de rodas. E a maioria é prova inconteste de que é possível levar uma vida normal e ser feliz, igual a qualquer outra pessoa, com os seus problemas (e todos os temos). Ninguém é ingênuo a ponto de dizer que é fácil e tranqüilo, mas é possível, e os próprios cadeirantes se ajudam mutuamente, principalmente nos aspectos psicológicos, que são os mais difíceis de serem superados.

Mas toda solução passa pela independência, ou seja, a possibilidade de locomoção sem ajuda de terceiros. Leia-se: cadeira de rodas. A sociedade como um todo precisa se adaptar com rampas, portas mais largas, elevadores e assim por diante, mas sem a cadeira, nada disso ajudaria.

A renda da quinta edição do Semeador será destinada à compra de cadeira de rodas. Uma pessoas poderá ir até a cozinha sem pedir ajuda, ao banheiro sem que alguém a carregue e passear pela cidade sem ser amparada. Poderá correr na chuva, procurar a flor mais bonita para presentear sua mãe ou seu amor ou a professora, quem sabe. Poderá observar os pássaros e até, quando ninguém estiver olhando, descer uma ladeira em alta velocidade, expondo-se ao perigo e à alegria de viver. Poderá ir a lugares e fazer travessuras. Poderá esconder-se para chorar só ou juntar-se à multidão para gritar ou cantar. Poderá pegar seu prato de comida e ir para onde quiser com ele. Poderá errar mais e aprender com os erros, e tentar mais e aprender com o sucesso.

Quando as rodas de sua cadeira deixarem marcas no chão por onde passarem, serão as marcas de seus pés, artista, colaborador ou expectador do Semeador, que marcarão o chão. Marcas de pés doados.

P.S. "Semeador" é um show de poesia e música que fazemos anualmente em São Bento do Sul (SC), com mais de 20 artistas (a maioria de profissionais). No último, no dia 27 de maio, havia mais de 500 pessoas assistindo. A renda deste ano foi para comprar cadeiras de rodas.