Afinal, quem é louco?

O mais famoso Maluco Beleza que conhecemos já dizia: “Controlando a minha maluquez, misturada com minha lucidez”. Para quem achava Raul Seixas realmente um louco, nada de anormal nestes versos. Dizer que “enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual... Eu do meu lado aprendendo a ser louco”, chocou muitos ‘normais’, trouxe autoconhecimento para tantos outros e, principalmente, colocou pra pensar quem tinha algum conceito determinista sobre a loucura.

Afinal, quem são os loucos da nossa sociedade? Esquizofrênicos? Maníacos de todo tipo?

No mês passado, comemoramos o dia nacional de Luta Antimanicomial. Felizmente já há muitas vitórias conquistadas, mas falta vencer o principal vilão: o preconceito. Os malucos sempre foram vítimas dentro da própria família (ou da maluquice da família). Eu mesma ouvi de um psiquiatra anos atrás a história de uma mulher, que conheci pessoalmente. Na época ela já passava dos 80 anos e era a mais antiga ‘moradora’ do sanatório de Vargem Alegre, distrito de Barra do Piraí/RJ, onde era chamada carinhosamente de Xerife pelos amigos, médicos, enfermeiros e funcionários. A doença: tentou fugir de casa, aos 16 anos, por amor. Com tanto tempo de internação, claro, perdeu a razão.

Na maioria dos casos era assim. Qualquer comportamento irregular era motivo para que os familiares encarcerassem seus loucos, por não saberem lidar com o problema, por vergonha, por medo. Alcoólatras, viciados em drogas, epiléticos, ou simplesmente adolescentes apaixonadas, como Xerife, lotaram durante muitos anos os manicômios, pois trancafiados e dopados, escondiam a incompetência da família.

Não recebiam tratamento adequado, claro. Foi a época que os psiquiatras eram praticamente torturadores, num sistema que reprimia a cidadania e a dignidade. Os pacientes eram ‘medicados’ com choques elétricos na cabeça e as temidas injeções de ‘entorta’ (Anatensol). Depois da cruel agulhada, eram isolados na solitária, uma cela minúscula, escura e fétida, onde grunhiam e se contorciam por horas, “para ficar calminho”, diziam os enfermeiros.

Tudo o que conto aqui presenciei quando fiz estágio numa extinta clínica. Foi lá que descobri o que não deveria aprender para exercer a profissão de Técnica em Enfermagem. E me lembro muito bem de não ter convivido com loucos. Conheci, sim, pessoas doces, com sangue nas veias e coração batendo, assim como qualquer ser humano livre, ‘normal’.

Hoje me pergunto: o que é ser normal? O que é ser louco? O pai que atira a filha de cinco anos pela janela do sexto andar? A mãe que joga seu bebê recém-nascido num lago? Filha que mata os pais? O conhecido meu que mata filhotes de gatos a pauladas? O pai que manteve a filha presa, a quem estuprou durante anos e ainda teve filhos com ela? O milionário que pagou uma fortuna para fazer uma viagem espacial? O padre que tentou voar em balões de gás e não voltou? Louca sou eu, que acredita em gente louca, como eu.

A Luta Antimanicomial está aí há mais de 20 anos, tentando sensibilizar o estado e o governo a implantar sistemas que substituam as antigas torturas dos sanatórios por tratamentos dignos e éticos nos serviços de saúde pública. Segundo dados do Fórum Paulista de Luta Antimanicomial, ainda hoje há mais de 60 mil pessoas encarceradas em hospícios no Brasil, em condição de descaso e abandono, trancadas, mas não tratadas. Como se o país se dividisse não por estados ou municípios, mas por séculos – algumas regiões no século XXI, outras no XIX, e ainda outras no século XVIII.

Felizmente vemos aqui por perto as clínicas fechadas e projetos como a Estação Mental, de Barra Mansa, e Usina dos Sonhos, de Volta Redonda, tentando dar o acompanhamento correto a esses pacientes, chamados de usuários. Fico feliz e emocionada ao ver a Banda Mágicos do Som, por exemplo. É gente ‘normal’ tocando e cantando para nós, loucos: “Preconceito é besteira, seja de raça ou de cor, seja de perto ou de longe, o que vale é o amor”.

Giovana Damaceno
Enviado por Giovana Damaceno em 06/06/2008
Código do texto: T1022518
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