Só Depois

É esse deslizar de água salgada a escorrer sobre a pele que me prende lá. Essa ardência desconcertante de quente sensação, o queimar das bochechas, a umidade acumulada no pescoço... Tudo isso fecha meu âmago de profundas sensações.

De nada me importa o tamanho da cidade, as pessoas que cruzam meu caminho às vezes esbarrando em meu ombro. O cenário comove: as ondas a quebrar nas pedras ou nos bancos de areia, elevando a espuma esbranquiçada como nuvens que esvaem-se no céu de sonhos que eu construí na esperança de fugir daquele ambiente sufocante, que hoje percebo para o meu desgosto, ser aconchegante. Essa pressa não me mostra nada mais que frieza de pessoas preocupadas com seus próprios problemas, alheias ao que eu posso estar sentindo além deste sorriso estampado nos lábios. Lábios rachados pelo vento frio e cortante de final de tarde, que eu umedeço com a língua doce de canela. Mas não adianta; as fendas voltam a se abrirem na próxima rajada de ar que parece ser tão ou mais forte que a anterior... Parecem querer derrubar a defesa que eu construo todos os dias, a fim de mascarar o descontentamento de uma vida baseada em projetos que nunca chegam a se concretizarem. Aliás, nunca estiveram perto do realizar esperado de meus pensamentos.

Mas eu mesma engano-me: finjo que os dias virão e tudo irá ajeitar-se do jeito que deve ser. Mas não; os dias passam e eu apenas caio na mesma margem de abismos que me circunda, toda vez alarmada por não conseguir encaixar o presente com o passado, as perspectivas de mudança com as realidades de presente que hoje tenho em minhas mãos. E percebo ser impossível ignorar. Esse estremecer de peito, esse suspiro incontrolável que assalta meus pulmões, essa tristeza que toma conta de minhas idéias fazendo-me incapaz de desviar meus pensamentos a outro assunto além da perca de meus rumos. De repente descobrir-me cega em meio a uma guerra de fogo cruzado, ambos os lados desesperados para conquistar a convicção de que o melhor vence.

Mas não existe melhor. Existe apenas o lugar onde o coração paralisou-se. O lugar da saudade, do início de tudo, do início do querer, do ansiar. Mas esse sentimento está lá, trancado com as influências e esperanças de um dia melhor que viria com o esperar de uma quarentena.

E não é fácil. Ter o mundo ao alcance de um toque não é tão simples de manusear quanto a vontade de tê-lo entre as mãos. A gama de possibilidades não abre espaço para escolhas; apenas te faz se deparar com a indecisão, a imobilidade de querer dar um passo, mas descobrir as pernas presas por algum tipo de doença, algum tipo de inércia que fere o orgulho de ter aprendido a andar perfeitamente. Essa paralisia desespera muito mais que a própria morte. Ao menos a morte é certa, inescapável. Quando chega, traz segurança; nada mais de especulações de como poderia ter sido. É implacável.

Quantas vezes ansiei por ela e hoje ao relembrar, julgo-me patética. Morte minha, morte alheia; não importa. Essa não é a resposta e no final das contas, apenas trás mais prejuízos do que lucros; um vazio eternamente irreparável. Fúria e ódio persuadiram meu ser, tão capazes de me fazerem miserável de dor, que agora percebo o quanto vendada eu fiz-me ao mundo.

Esses olhares também não me comovem. Olhares de pena, de preocupação... amigáveis. Do que ajudam? Apenas dilaceram o egocentrismo protetor, envergonham o poder envolvido em meus atos. Incapaz de me esconder deles, de deixá-los passarem despercebidos, eu me enrijeço perante o gelo desse julgamento. Se eu mesma não posso auxiliar-me, de que poderão ser úteis? A caridade é bobagem.

E esse bater desesperado do peito me irrita. Denuncia minha falta de controle, seguido pelo frio na barriga, como se eu estivesse caindo em uma fenda sem fim. Com certeza a vermelhidão migrou para minhas bochechas inchadas e ao chegar lá, irei deparar-me com perguntas tão irritantes quanto esse clima claustrofóbico que me cerca durante a semana inteira. Eu não quero responder, não quero tomar decisões e nem dar-me conta de minha situação. Só que é impossível.

Constantemente essa cidade mostra-me que eu não sou bem vinda aqui, da mesma forma como não era lá. De todos os jeitos, por mais que fosse amada ou querida. Simplesmente pareço não ter um lugar específico onde acalmar-me. Invejo essas águas que chegam até a margem da praia, que se tornam tranqüilas ao alcançar a areia branca após todo o agito do alto mar. Eu nunca serei assim, pareço guardar dentro de mim esses abalos; tudo à sete chaves para lembrar-me depois que nada é verdadeiro quanto parece, que tudo já veio tão distorcido, que será incapaz de se consertar algum dia.

E essas cócegas que as lágrimas fazem? Deslizando até o maxilar e pingando pesadamente nas espáduas me fazem imaginar como seria simplesmente sumir, ser absorvida sem deixar vestígios maiores que um rastro quente e úmido, tão fácil de apagar com as mãos. Só que a minha trajetória é marcada por um fogo furioso que deixa o negro das cinzas por onde passa. Eu apenas me queimo com essas chamas que seguem meus pés, que não sentem remorso em me dilacerarem a cada dia mais, como se não fossem novidades essas decepções constantes. E o mais desconcertante é perceber que eu me dôo a isso. Eu me ofereço a dores novas, acreditando que dessa vez dará certo e eu serei resgatada desse fogo que queima e deixa marcas de pele repuxada. Mas é pura ingenuidade; porque haveriam de agir diferente comigo se eu mesma não me preocupo em extinguir essas chamas? Porque me dariam respeito, se nem eu preocupo-me em impor isso? Sábia a pessoa que proferiu que eu nunca teria o respeito de ninguém. E isso se faz realidade hoje.

Ninguém se prende a mim da maneira que eu gostaria, mas porque haveriam de prender-se? Que vantagem alguém machucado trás? Que desejo podem ter para alguém, com essa cara vermelha e molhada, deformada pelo choro? Essa cabeça dolorida nas laterais que me faz irritadiça? Impossível... da mesma maneira que é impossível parar de fazer cair essa água salgada. Viagens têm esse poder sobre mim: fazem-me pensar demais e expressar esses pensamentos sob a forma de choro. Nem as lentes escuras dos óculos disfarçam.

O sol se põe aos poucos na montanha a oeste, deixando filetes de luz a lembrar-nos da sua presença. Basicamente como aquela cidade faz com minha vida, ao longo dos dias. O coração está lá a palpitar, a saltar a cada memória e isso não é ignorável. Ele trás as pessoas consigo... Pessoas que eu amo e gosto e que têm tanta influência sobre mim, que me fazem cogitar a possibilidade de largar tudo e voltar, como uma criança que escolhe seus brinquedos e depois os larga no chão quando cansa de brincar. Mas obviamente não é tão fácil assim.

Sinto vontade de gritar até minha garganta doer e sangrar. Apertar os olhos com os dedos indicadores até a dor de dentro fazer-se real, sendo assim muito mais fácil de domá-la. Mas não faço nada disso; apenas controlo-me acumulando essa explosão de sentimentos. As lágrimas escorrem e são as únicas provas desse dilema, juntamente com o estalar entrecortado dos meus lábios.

Já estou chegando e a imagem dos arbustos verdes em forma de letras fazem meus lábios e queixo estremecerem. Esse ar pesado, esse céu cinza, esse ambiente cheio de barulhos irritantes, esse cheiro forte me circundando, esse sacolejar da estrada... Não agüento e sugo o máximo de ar para dentro de meus pulmões, causando um soluço enquanto toco o vidro da janela, desabado e derretendo completamente:

- Senti tanta falta...