"Ex-Tia" =Crônica sobre um passado distante=

Em julho de 1979 eu e a mãe de meus dois filhos mais velhos chegamos à conclusão que nosso casamento havia acabado. Separamos-nos sem grandes traumas, sem brigas, pacificamente. Até que a coisa fosse oficializada convivíamos esporadicamente, batíamos papos como amigos e até dávamos beijinhos de despedidas após os encontros. Afinal de contas um ex-mulher ainda linda merecia sempre um tratamento especial como amiga. A gente nunca sabe o dia de amanhã...

Alguns meses depois eu vinha andando tranqüilamente pela rua São Bento, em São Paulo, carregando uma coleção de livros que logo entregaria a um cliente, quando fui abordado por uma senhora de ar sisudo e muito imponente em sua aparência:

- Fernando, lembra-se de mim?

Ao ver ao lado dela sua bela filha, uma lourinha de olhos azuis inesquecíveis, que se formara em odontologia quase criança ainda, lembrei-me que se tratava de uma tia de minha ex-mulher, uma pessoa a quem vi algumas vezes em meus quase oito anos de casado.

- Claro que me lembro. A senhora é tia da...

- Isso mesmo. E quero aproveitar pra te dizer o que penso sobre a separação de vocês.

A arrogância foi tanta que se não fosse pela filha dela, aquela coisinha gostosinha de se ver, eu a teria logo mandado a um lugar que costuma cheirar muito mal, mas em consideração...

- Acho um absurdo você deixar minha sobrinha. O que você fez com a menina não tem nome e...blá...blá...blá...blá...blá...blá...blá...( e foi, célere, colocando-me abaixo de zero).

A madame, intrometida esposa de um eminente marceneiro que cobrava caríssimo por qualquer servicinho, falou por muitos minutos enquanto eu a olhava impassível, segurando a vontade de rir da palhaçada. Deixei-a falar até que se cansasse, o que parecia que não aconteceria nunca. Quando ela parou, foi a minha vez.

- Por gentileza, mostre-me o documento.

- Que documento?

- Bem, sua sobrinha deve ter lhe dado uma procuração para cuidar do assunto. Não acredito que a senhora se intrometeria tanto assim em nossas vidas sem ter direito a isso. No mínimo deve ter uma procuração assinada por ela dentro da bolsa. Aposto que tem.

A filha apenas olhava-me constrangida, com o belo rostinho avermelhado até a raiz dos cabelos.

- Não tem a procuração? Então responda-me uma coisa, agora que já a ouvi dizendo tudo que quis: foi a senhora quem deu educação à sua filha?

- Claro que foi. Se não quem...?

- Calculei isso logo de cara. A senhora deu toda a educação às sua menina e não guardou nenhuma para uso próprio. Desde quando lhe dei o direito de se meter em minha vida, dona? Agora a senhora vai responder a algumas perguntas minhas...

- E se eu não quiser responder?

- Tenho certeza de que responderá. Afinal a senhora é uma pessoa fina e não há de querer envolver-se em um escândalo em plena rua São Bento; não é mesmo? A senhora nem imagina a capacidade de meus pulmões para berrar desaforos, meu estoque de palavrões e de imoralidades quando fico esquentado. Responda logo: já lhe pedi algum favor em minha vida?

- Não.

- Já lhe pedi algum dinheiro emprestado?

- Não.

- Conselho?

- Não.

- Já a ocupei, ou ao seu marido, ou à sua filha, para qualquer coisa, por mínima que seja?

- Não.

- Já comi na sua casa?

- Não.

- Pedi alguma ajuda de qualquer espécie?

- Não.

- Orientação?

- Não.

- Já tomei a liberdade de lhe dizer alguma vez que a senhora, com esse cabelão armado, ridículo, de mais de meio metro de altura, parece uma caricatura mal feita? A essa eu sei que a senhora dirá não também, porque estou dizendo agora. E, pra completar, caia fora antes que eu me aborreça. Aproveite enquanto estou falando baixo e discretamente. Falta pouco pra me estourar de vez. Caia fora e dê lembranças ao seu marido, minha ex-titia intrometida.

A mulher se mandou rapidinho, mas ainda deu tempo de eu dar um abraço rápido e um beijo na bochecha da linda dentistinha que era a filha dela. Uma simpatia a menina.

Foi divertido ver a mulher ir murchando à medida em que a esculhambava. Caso ela possua alguma memória, deve ter passado a pensar duas vezes antes de se meter na vida alheia. Se é que está viva ainda a velhota intrometida...Há quase trinta anos tenho o prazer de não revê-la ou saber notícias dela. Vá catar lata...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 11/06/2008
Código do texto: T1029272
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