Calamandrei

Há um livro que foi recomendado por um professor de Direito Civil em meu primeiro ano de faculdade. Alguns anos depois esse professor, ilustre advogado, foi nomeado Juiz do Tribunal de Alçada e hoje é Desembargador. O livro se chama "Eles, os juízes, vistos por um advogado", de Piero Calamandrei. O livro foi escrito entre 1935 e 1956. Segundo o professor, aquele era o seu livro de cabeceira, ao qual consultava nos momentos de maior angústia e, até, descrédito na justiça.

Há alguns anos encontrei o livro, reeditado no ano 2000, e o comprei. Confesso que tentei ler muitas vezes, mas não consegui. Na semana passada descobri que não conseguia fazê-lo porque o danado contém 52 páginas de prefácio e introdução. Pulei, então, o malsinado prólogo, e parti para o texto propriamente dito.

Então pude entender porque meu professor admirava tanto aquele livro. Talvez quando ele recomendou, no primeiro ano da faculdade, eu não tivesse necessidade de encontrar as palavras ali estampadas. Agora, contudo, elas me caíram como uma luva.

Desde o começo de minha carreira tenho lutado contra as opiniões dos clientes, amigos e parentes, que entendem que devo conversar pessoalmente com os juízes, em seus gabinetes, sobre os processos que patrocino. Eu, ao contrário, sempre entendi que a palavra do advogado deve ser escrita em suas petições ou falada em sala de audiências, na presença de todos os interessados.

Vejam o trecho do livro sobre esse assunto:

Com a sua romântica fé na justiça, você manda os clientes à perdição. Fervor, argumentações elegantes, belas frases genéricas comoventes e argutas e, de quando em quando, um hino à honestidade: precisão, doutrina, eloqüência, literatura, moralismo. Verba generalia: tudo está ali. Mas seu adversário, que não sofre dessas fraquezas, conhece outra arte. Em vez de estudar a causa, sabe que precisa estudar os homens que devem decidi-la; em vez de procurar a solução nos códigos, onde só há fórmulas abstratas, é preciso procurá-la nos juízes, analisando-os amorosamente um a um, na sua vida, nas suas dores, nas suas esperanças; examiná-los contra a luz, para descobrir em cada um deles a passagem secreta: amizades, ambições, doenças, manias até - o bilhetinho inocente do político, a recordação do amigo de infância, as conversas à mesa de um café, a partida de cartas, o círculo da esposa, uma poltrona para o teatro, eventualmente o conselho autorizado de um alto prelado, e assim por diante. E a causa está vencida, sem necessidade de perder as noites a folhear os repertórios de jurisprudência.

- Não creio que esse sistema dê frutos melhores que o meu; como quer que seja, todos têm seu método. Sou um dos que continuam a crer que, para fazer o juiz dar razão, não há nada melhor do que respeitar as regras do processo: vestir a beca e dirigir-se a ele em voz alta, na audiência, de modo que todos ouçam, e não ir encontrá-lo em casa para lhe falar a sós, ou esperá-lo no corredor para lhe cochichar algumas palavras no ouvido.

Este é o método do advogado, como eu o entendo. Os clientes são avisados. Sinto-me bem assim. Mas, se eles preferirem outro tipo de serviço, então não procurem um advogado - é melhor se dirigirem a um vendedor de ilusões.

Então concluí que o meu problema já era vivenciado por Calamandrei em 1935 e, ainda, por meu professor em 1984.

Mais importante que isso, concluí que não estou só. Que minha postura não está errada.

Ave, Calamandrei! Ave, Telmo Cherem!

terça-feira, 7 de junho de 2005

Recebi críticas ferrenhas ao artigo sobre os juízes. Ele foi publicado no site do Correio Rondoniense (http://www.correiorondoniense.com.br/?q=news&id=503) e algumas pessoas me questionaram sobre a posição de não falar com juízes. Cheguei até a receber a velha comparação de "ganhadores" com "perdedores", que me acusava de estar colocando em risco causas vitoriosas por dar maior importância à elegância da ritualística, à estética dos procedimentos.

Então é necessário que se diga que, ao contrário do que possa parecer, eu falo com juízes e até compareço aos seus gabinetes, às vezes, no interesse de meus clientes. Seria relapso se assim não fizesse de vez em quando. É o caso, por exemplo, de pedir celeridade em determinado processo ou, ainda, quando um cliente corre o risco de ter prisão decretada por ser depositário em dois processos (e até para pedir a sua rápida soltura após o pagamento, quando o incauto estiver preso). É, também, o caso de alertar o juiz sobre certas características do processo, aos quais ele teria que estudar vários volumes, ou quando algum detalhe passou despercebido. Isso, contudo, se faz sempre com ética e retidão, sem ferir o direito de ninguém.

Há alguns anos um juiz de uma Vara Cível de Curitiba mandou afixar um aviso denominado "Porque Não Atendo Advogados!". No aviso o magistrado discorria exatamente sobre essa clareza que tem que ter o profissional do Direito, não podendo travar conversa com o juiz que não seja do conhecimento da outra parte. Em razão desse aviso a OAB ingressou com protesto junto ao Tribunal de Justiça e o juiz voltou atrás na sua decisão. Claro que nesse caso a iniciativa revelava certa prepotência do magistrado, pois ele não deveria fechar os ouvidos e olhos aos profissionais que o procuravam. O juiz pode perfeitamente receber os advogados e, constatando que os mesmos lhe fazem pedidos ou propostas indecentes, repreendê-los e tomar as medidas cabíveis. É possível ser honesto sem se enclausurar.

Alguém (não lembro quem) disse que a pior ditadura que pode existir é a do Poder Judiciário. É verdade. Se os homens que são pagos para fazer justiça não a fizerem, quem fará? Estar-se-á condenando o cidadão comum, que não tem amigos influentes, a perder sempre. Quando um ditador fecha o congresso e os tribunais, instaurando um regime autocrático, as pessoas sabem que a justiça não será aplicada. No entanto, se os magistrados são ditadores, nada - nem ninguém - pode contra eles se rebelar, pois a justiça é própria dos regimes que respeitam a igualdade de direitos.

Por isso sou um defensor convicto da justiça. Se assim não for estarei transformando meu ofício num balcão de negócios, no qual se discute qual será o preço desta ou daquela decisão favorável, sem escrúpulos quanto aos meios de obtê-la. Não sou ingênuo de imaginar que isso não ocorra. Só estou dizendo que não compactuo com isso e que vou continuar acreditando que justiça se faz com zelo, com ética, inteligência e perseverança. No dia em que não acreditar mais nisso fecho o escritório e compro um carrinho de cachorro quente. Vou vender 'vinas', pães, molhos, temperos e refrigerantes numa esquina qualquer.

Encerro com uma citação de Rui Barbosa que, de tanto ser repetida, já virou "Ode à Honestidade":

"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto". (Senado Federal, RJ. Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t. 3, 1914, p. 86)