"Artista 171" =Crônica do Cotidiano/ Antigo/Atual=

Estávamos eu, um de meus irmãos, meu filho mais velho, e mais dois sobrinhos em um boteco fino de Santos, famoso pelas iscas de peixe, ocupando uma mesa cheia de garrafas vazias e os pratinhos já esvaziados de iscas, quando a mulher chegou com ar de apavorada, desesperada, como quem quer arrancar os cabelos de tanta agonia:

- Gente, pelo amor de Deus, gente, vocês precisam me ajudar, pelo amor de Deus!! Gente, preciso de socorro, por tudo que há de mais sagrado!! Minha filha foi atropelada e está em estado grave na Santa Casa, e eu estou morrendo de agonia, gente...

Olhei pra cara dela, ri, e convidei-a a comer umas iscas de peixe com a gente.

- Não brinca não, moço... Pelo amor de Deus, moço! Minha filha morrendo e o senhor me convidando pra comer iscas de peixe!!

- Pode pedir, então, uma lingüicinha, um sanduíche, sei lá...

- Moço, tenha compaixão, moço...Gente, preciso desesperadamente de um dinheiro para o táxi. É só me deixarem o endereço que eu irei logo até lá devolver.

Ri de novo e ofereci iscas de peixe novamente:

- Não quer mesmo umas isquinhas? Acabaram de sair. Coma algumas enquanto espera.

- Espero o que?

- A polícia, vagabunda. Ou pensa que esqueci que você aplicou o mesmo golpe em meu cunhado, lá na avenida Afonso Pena? Eu avisei que você era pilantra, mas ele te emprestou cinqüenta paus e logo depois te vi bebendo no bar da esquina. E o papo era o mesmo. Era a filha morrendo na Santa Casa e você pedindo dinheiro para o táxi.

A pilantra ficou possessa com a denúncia e passou a xingar-me em altos brados. Ficamos todos quietos, apenas olhando para ela com cara de riso. Quanto mais a olhávamos, mais alto e mais palavrões ela dizia. E eu oferecia iscas a ela com gestos, deixando-a ainda mais furiosa.

De repente, como se tivéssemos combinado, todos nós nos levantamos ao mesmo tempo, arrastando as cadeiras com espalhafato e um de nós gritou:

- Vamos dar um cacete na pilantra, gente!!

A mulher “deitou o cabelo” rua afora. Do jeito que corria nem precisaria de táxi para ver a filha doente. Chegaria ao hospital antes de qualquer carro.

Isso é, se tivesse mesmo uma filha no hospital.

Esse tipo de golpe talvez funcione ainda na capital, mas aqui em Santos acho que a “artista” fica logo manjada.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 19/06/2008
Código do texto: T1041955
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.