Bendito amor

Exatamente como lhe fora dito, assim seria e assim era.

Entre o beijo da manhã e o beijo da noite, ela acontecia entre as tarefas do dia, as mãos ocupadas ordenando um animal chamado vida. Prá isso fora adestrada, pro seu amor de estender roupas limpas no varal, amor caseiro, amor de esperas, amor de dar cria, e quantas vezes mansa, quantas vezes fera... e quantas vezes fera o pensamento a perseguia como um touro bravo. Seu olhar atravessava a carne numa lamina afiada por um sentimento de corte, salgava o alimento com lágrimas disfarçadas entre cebolas e coentro, numa quase ira deixava na fervura o pensamento até que queimasse ou evaporasse. Por que a perseguia se era feliz na doçura dos seus dias? Sonhos... o que eram sonhos senão doces que ela mordia prá saciar uma fome fora de hora, no meio da tarde, uma fome esquisita. Mas se lambuzava deles como se faminta não houvesse outra escolha, e esfregava as mãos no avental de todo dia como quem tenta apagar vestígios de um ato inconfessável. Ele não merecia, seu amor de dar cria encheu sua vida de razão, da mais palpável lucidez, aguçara seus sentidos mais concretos e colocara sob seus pés o chão que ela varria no ritmo do seu coração que, mais que batia, se debatia no peito protegido pelo tecido do seu vestido de festa.

Mas havia o crepúsculo, a hora do lusco-fusco em que suas cores amorteciam vivas num compromisso com a luz, e era a luz dos olhos dele, do seu amor caseiro que chegava distraído pelo cansaço, alheio ao seu poder de cura. O coração, então leve de culpa, recolhia as roupas úmidas no varal, servia o alimento preparado com açúcar e sal, cantarolava prá adormecer a cria, quantas vezes fera, quantas vezes mansa... e quantas vezes mansa ela repousava, entre o beijo da noite e o beijo da manhã, agradecida e amorosa nos braços do seu bendito amor de esperas.

Assim era e assim seria, exatamente como não lhe fora dito.