Metamorfose

Doutor Jurandir é desses dentistas que se dedicam inteiramente à profissão: cursos de aperfeiçoamento e especialização no exterior; equipamentos moderníssimos de última geração, atendimento de primeiro mundo...

Seu consultório é um brinco: limpo, arejado, confortável. Na sala de espera: sofás de couro, cafezinho sempre quente e fresco, jornais do dia e revistas novas (É: jornais do dia e revistas novas). As secretárias do odontólogo são pessoas finas e educadas. Caro, claro. Tudo tem seu preço e ele sabe cobrar pelo que oferece.

Sábado à tarde, Jurandir estava em seu consultório atualizando fichas e cadastros. De repente, espantou-se ao ver, sentada na beirinha do sofá da sala de espera, aquela figura mirrada. Aparentando mais de 60 anos, a mulherzinha levantou-se assustada. Minúscula, magérrima, cabelos desarrumados presos com uma fita vermelha; na cara chupada, a boca murcha denunciava ausência de dentes; os olhos graúdos pareciam querer saltar das profundas cavidades orbitais enegrecidas: olhos de panda. “Ai, meu Deus! Uma pedinte”, pensou Jurandir.

- O... o... o... o se-nhor é o dou-tor?

- Dentista. Eu sou o dentista.

- Posso falar com o senhor?

- Claro.

Sem encarar o profissional dos sorrisos, a mulherzinha continuou:

- Doutor, eu não sei se dá pra fazer... Meu nome é Derocildes. Eu sou cearense de Crateús e passei minha infância e juventude na roça. Lá, a gente não tinha esse negócio de pasta nem escova... Meus dentes apodreceram e fui obrigada a arrancar tudim... Desde os quinze anos, eu sou desdentada... Isso incomoda e eu tenho vergonha...

Jurandir pensou: “Será que essa coisica quer caridade? Quer que eu lhe presenteie com uma perereca? Ela devia procurar um desses protéticos da periferia... Leopoldo, quem sabe?” A cearense continuou:

- Me disseram que o senhor é bom. Me disseram que senhor é o melhor dentista da cidade... Desde que cheguei aqui, em 1974, venho juntando um dinheirinho pra fazer uma dentadura... Ouvi umas madames dizer que isso não se usa mais e que o senhor faz implantação de dentes... – Parou, levou a mão à boca, e, sem jeito, com a pele avermelhada pela vergonha, mostrando as gengivas nuas, continuou - Eu quero ver se a gente pode se acertar... Quanto custa pra me dar um novo sorriso?

Passada a surpresa, Jurandir sentou-a na cadeira odontológica, fez exames, acertou datas e condições e, ao longo de três meses, implantou 28 alvos e brilhantes dentes naquela boca murcha.

Há poucos dias, num desses sábados, Jurandir estava em seu consultório atualizando fichas e cadastros. De repente, ao chegar à sala de espera, espantou-se quando viu, em pé, desafiadoramente recostada na parede, uma mulher charmosa, calçada em finas sandálias de salto, dentro de um vestido que delineava seu corpo e deixava entrever partes de seus fartos e voluptuosos seios – frutos de um outro investimento; no pescoço, um colar de pérolas; os cabelos em corte chanel, faziam que o rosto fino e bem maquiado sobressaísse. A boca... Ah! A boca, contornada com batom vermelho-carmim, era pura sensualidade:

- Boa tarde, doutor... Lembrado de mim?

- ?????

- Claro que não. Eu sou Derocildes... Há alguns meses, me fez voltar a sorrir...

– Ahn.... – Balbuciou o dentista, estupefato ante a metamorfose.

- Minha vida mudou, doutor. Hoje, sou outra pessoa... Estou estudando, arrumei emprego na Prefeitura – e mostrando a aliança na mão direita – arranjei até um noivo...

- Ah, meus parabéns... Você está muito bonita. – Foi só o que ele conseguiu falar.

- Doutor, eu vim aqui agradecer... Vim agradecer e dizer que o senhor me devolveu a auto-estima e ajudou a matar a saudade que eu tinha de chupar cana e de dar beijo na boca. – E arrematou – Eu tenho beijado muuuiiiito, doutor.

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