OS TECLADOS DE UMA VIDA , estatística infeliz... (crônica-artigo)

Os teclados de uma vida, estatística infeliz...

De Poet Ha, Abilio Machado.

Feridos na alma caminham curvados parecendo mais velhos do que a real idade que têm, empurram uma caixa mal feita com duas rodas, suportam um peso extraordinário, é comum vê-los nas ladeiras fazendo força extra para colocar lá no alto do morro ou da colina o que levam de quinquilharias, papelão, plástico, madeiras, vidro e ferro... Ferrados estão na vida.

A garrafa de cachaça torna-se companheira definitiva, para aquecer ou aplacar a fome, os cachimbos de crack a ferramenta de fuga mais provincial nas mãos trêmulas e esfareladas, fuga de uma vida que foram jogados e que há ainda quem lhes pregue dizendo que têm a vida que têm porque pediram, porque foram desleixados com as chances que tiveram ou porque cometeram erros, que é carma de outra vida...

Os olhos são de uma procura incontrolável, buscam um algo perdido entre o passado e o futuro, entre o que foi e o que ainda não se sabe...

Um cão os seguem meio ressabiado, com medo, magérrimo, mostrando os ossos e a língua caída ao canto da boca tanto foram as bordoadas na cabeça que algum burguesinho violento que descontou no animal sua fúria do descaso doméstico... O rabo abana quase o derrubando quando o jovem joga-lhe a fatia de pão, seca com a mancha do que foi um dia um pedaço de queijo, já carcomido e cheirando a xixi de rato... Mas a fome de ambos do homem e do cachorro é bem maior do que o medo dos ratos, têm medo da fome, da dor da fome...

O lixo ensacado, não separado, fazem-os perder tempo, um tempo que não têm, um deles precisa arrumar os trocados, o neném está com febre e está sem leite, ontem já amamentaram-no com caldo de arroz na mamadeira, mas o arroz hoje não há... Uma lágrima de desespero lhe foge contra vontade pelos olhos.

Sua felicidade é plena quando uma senhora lhe diz que separou um saco de papelão, se esperar ela lhe alcança. Se oferece para entrar e pegar já que esta lhe parece tão frágil e ela se recusa com algumas desculpas que ele sabe que escondem o medo dela de um jovem reciclador entrar na sua casa, o contato é medo, o medo destrói vidas.

Ela lhe traz arrastando quase sem conseguir a saca de plástico abalroada de papelão, ele apenas despeja o conteúdo no interior do carrinho improvisado, devolve a saca e a velha promete que na semana terá mais e que guardará a ele já que foi tão educado e ele segue.

Quando o sol está a pino, sua cabeça queima, o álcool e o calor lhe deixam tonto, precisa parar, encosta na calçada e deixa-se cair exausto sob a árvore... Recém fecha os olhos e a dor de um chute em sua perna o faz saltar do chão ao encontro do tronco da árvore, vê um jovem uniformizado a apontar-lhe o dedo e gritar, o cérebro atordoado demora a reconhecer as palavras, o jovem diz que ali é um lugar público e que ele não pode deitar ali, ele reclama dizendo que se é público então tem seu direito de estar ali, onde o jovem o ameaça dizendo que vai chamar a viatura e levá-lo para uma boa volta de camburão e que aí ele terá tempo de sobra para dormir na cela da delegacia...

Levanta-se e sai novamente rumo ao trabalho forçado, uma pena imposta pela vida, é sua de herança, seus pais eram assim e ele ficou assim...

Duas quadras depois está esperando para atravessar a avenida, o sinal fica vermelho e ele empurra o seu carrinho, ouve uma frenada de desvio, olha, um veículo vem em zigue-zague, na hora ele eleva seu pensamento ao neném doente, à Tereza sua mulher, aos seus poucos amigos da rua e da invasão...

O barulho é ouvido há muito longe, a blazer verde escuro metálico apanha o jovem e o carrinho, tudo o que carregava voa aos cantos da avenida, o corpo parecendo um espantalho cai distorcido e meio sem jeito no centro da floreira que enfeita a cidade que por sinal parece no momento bem mais útil que uma passarela, será?!

O atropelador ainda vai mais uns metros até parar dentro da vitrine da loja de roupas íntimas, de dentro um outro jovem, mais jovem que o outro sai do carro, junto consigo algumas latas de cerveja caem ao descer. Um tanto assustado, não consegue andar direito, um senhor se aproxima para ajudá-lo e o bafo o afugenta bem como as mãos que lhe empurram num saia para lá.

A ambulância chega, a polícia que estava na praça é mais rápida a verificar o óbito e auxiliar no fluxo do tráfego... Quando o sargento se aproxima faz uma careta ao se aproximar do condutor do veículo e identificá-lo:

__E então doutor o que me diz?

__ Mas uma estatística infeliz meu amigo, mais uma estatística infeliz...