DIA FÚNEBRE.

Toda vez que vou a Jacarepaguá me perco, oh lugarzinho para ter

contra mão. A caminho e ainda em Sulacap, peguei, como de praxe,

uma rua errada e dei de cara com o cemitério Jardim da Saudade,

desisti imediatamente do meu destino original e entrei na casa dos

mortos. Rapidamente uma questão estalou na minha cabeça, esse

povo todo que está enterrado aqui, quanto será que valiam? E eu

quanto será que valerei até me juntar a eles? Como poderíamos medir

essas questões? Muitos acham que valemos o que aparentamos ser, e

não o que verdadeiramente somos.

Andei bastante, lá você consegue se desligar do urbano, é um lugar

muito belo. Avistei um grupo de rapazes que limpavam a grama, faziam

muita algazarra, estavam celebrando a hora do almoço, tive uma idéia,

andei respirando todo o ar fúnebre que pude, e fiquei no caminho que

certamente eles teriam que passar, era um cantinho deliciosamente

sombreado, derrubei meu corpo no banco, e, esperei a tristeza cair,

fiquei contando os paços das formigas, compenetrei meu olhar no

nada. Fiz-me notar, de soslaio percebi que o respeito a minha

aparente condição de enlutado foi unânime, suas brincadeiras foram

desligadas, comoveram-se com o meu pré-pranto, eu estava sendo

respeitado por uma mentira que havia inventado. Mas como nos

acostumamos com tudo nessa vida, eu passei a não ser mais

novidade, e a bagunça voltou, voltaram a celebrar a sagrada hora do

almoço, até o seu triste fim. Retiraram-se, poderiam até ter ficado um

pouco mais, mas foram, minha presença era incômoda.

Sorri sadicamente. Olhei para a direita e vi a lápide da senhora Maria

Domingas, era o mesmo nome da minha avó paterna, tentei visualizar

o rosto da senhora ali enterrada, mas não conseguia, só vinha em

minha mente o rosto da minha avó. Tentei visualizar a vida da senhora

ali inumada, mas só via a da minha avó, desisti dela. Respeitosamente,

virei meu tronco para a mesma posição da minha cabeça e disse:

-“Bença vovó!”

Olhei para a direita, vi o senhor Estanislau sepultado bem ao meu lado,

a data de sua morte fez minha avó ir embora, era o dia 06 de maio de

1998, se eu pudesse retroceder o tempo em dez anos, estaria eu com

os meus vinte e três anos assistindo o sepultamento do daquele

homem, será que haveria alguém naquele momento, também cultuando

a hora do almoço? Será que se compadeceriam?

Imaginei com facilidade o primeiro dia de vida desse homem, seus

pulmões ardendo pela lufada de ar que acabava de inaugurá-lo, vi o

bebê resmungar pela sensação ruim de sair de um lugar quentinho,

apertado, escuro e confortável, para um outro desconhecido,

iluminado e frio, ele nasceu em julho, o imaginei vivendo com seus dois

pais, isso era comum em sua época, li em minha mente as redações

escritas para seus pais na escola, idealizei um Estanislauzinho repleto

de afeto, uma criança com o rosto arranhado pela barba de seu pai,

que afetuosamente espremia sua bochecha contra a dele para acordá-

lo de manha cedo, seu pai provavelmente também sabia ser duro,

suas broncas deveriam ser intermináveis, ele possivelmente detalhava

tudo que o estava incomodando, fato por fato, um chato como um

bom pai de sua época, imagino também os dois deitados até tarde na

cama nos finais de semana, lendo algo muito interessante, talvez um

Machado de Assis, enquanto isso sua mãe estava já desde cedo no

quintal lavando roupa.

Eu estava sentado como se estivesse em um cavalo, com o corpo um

pouco arqueado para frente sobre a folha de papel, até que senti algo

caindo em frente aos meus olhos, muito próximo, a velocidade e a

aproximação fez com que o objeto ficasse fora de foco, precipitou-se

sobre a folha de papel em que eu escrevia, era uma flor, uma flor

muito grande, suas cinco pétalas eram de um amarelo pálido, que

brotavam de uma base que chamava a atenção pelo seu vermelho

fortíssimo, vermelho sangue coalhado. Aquilo era uma resposta, aquela

árvore estava me presenteando com uma de suas lágrimas, para me

mostrar o que realmente era um verdadeiro pranto, um verdadeiro

lamento, ela assistiu a todos os sepultamentos daquele lugar, ela viu

de perto o corpo da Maria Domingas e do Estanislau serem cobertos

pela terra, ela era triste, o que lhe pesava a consciência era o fato

dela se alimentar de todos os corpos daquele local, aquele casal

separado pelo meu banco, fazia parte do seu corpo, aquela árvore

demonstrava seu sofrimento muito melhor do que eu, ou qualquer um

outro poderia demonstrar, o seu pranto era de sangue, incrustado

para sempre em suas belas flores. Pelo menos era o que para mim

aparentava ser, mas talvez poderia ser somente uma falsa aparência,

quem vai saber?

Sérgio Souza
Enviado por Sérgio Souza em 05/07/2008
Código do texto: T1066125
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