Ao Sabor do Acaso

Campinas, 01 de Julho de 2008

Por Mirabelle

Era isso. Continuava tentando escrever.

A luminária circular piscava três vezes antes de acender-se por completo.

Pisca. Os azulejos brancos refletiam sua cara pálida e enjoada. Pisca. O barulho da caixa d’água enchendo sugava toda a sua concentração. Pisca. Estava cansada de tudo isso. Cansada de chegar em casa na penumbra da noite, faminta e sentindo-se imunda. No caminho de casa, passava pelo centro. Detestava aquele lugar.

Os cinco minutos de caminhada, do ponto até o terminal central, a enjoavam. Era uma mistura de tudo: de cheiros, de gente, de suor e dores de cabeça. As buzinas dos carros e o tráfego não a incomodavam tanto quanto a voz irritante do cara do açougue. E daí que hoje tem promoção? Todo dia tem oferta nessa droga! E daí que o preço da maminha abaixou? Não suportava aquele fedor de abate misturado com suor invadir-lhe as narinas. Aquilo era demais.

Tentava prender a respiração quando passava por lá, mas não surtia muito efeito, o cheiro lhe impregnava.

Desvencilhava-se da multidão rumo ao camelô: caminho obrigatório para quem iria ao terminal. E mais gritaria, mais suor, mais sufoco. Pessoas quase nuas, desprovidas de senso algum, se pegavam na escadaria central: era uma vergonha. Tentava distrair-se, pensar em outra coisa que não fosse aquele inferno público. Chegando perto da sua plataforma, atravessa a rua na faixa de pedestres. Sinal verde. Pode passar. Quase é atropelada. Ah, esses filhos-da-mãe!O que? Ah! Vá te catar! Continua rumando á plataforma e, ao seu lado direito, nota uma novidade: Atenção, banheiros em manutenção! Mais adiante, pode ver uma fileira onde vinte banheiros químicos, na cor verde-água, estavam postos para atender a demanda excessiva de mijões e cagões de plantão. A única vez que havia entrado em um desses, foi no show da sua vida: Evanescence em São Paulo, no Estádio Palestra Itália (eca!). Era cedo, o show demoraria a começar. Sabia que se ficasse segurando por muito tempo, na hora do rock’n’roll, da adrenalina, ia acabar fazendo xixi nas calças.

Pois bem, essa experiência fez com que a repulsa por tais banheiros aumentasse cada vez mais. A cor deles também a enjoava (afinal, o que não a enjoava?): Verde-água. Era algo mais como verde-bosta bosta-agua. Não gostava nada de pensar nessa possibilidade. Decidiu cruzar para a plataforma.

Fila. Abre a mochila. Pega a carteira. Pega o passe. Fecha a carteira. Fecha a mochila. Fila.

Sobe no ônibus. Sua vez. Cobrador lança-lhe um sorriso maroto. Ânsia. Passa na roleta. Sem lugar. Vai em pé. Lotação. Esfrega-esfrega. Ânsia. Suor. Cheiro de merda. Rala-rala. Ânsia. Ônibus em movimento. Freia. Lombada. Vuco-vuco. Ânsia. Cobrador. Sorriso maroto. Vômito.

Enfim a luminária acende. Os azulejos continuam a refletir sua cara ainda enjoada. O barulho da caixa d’água cessa, parece que foi a última vez que se dirigiu ao banheiro para vomitar.

No caderno, apenas o cabeçalho: Campinas, 01 de Julho de 2008, por Mirabelle.