Crônica de um observador que observa um observador ser observado.

Pátio de São Pedro, Recife, noite de sexta-feira enluarada, eu em pé, um copo de cerveja na mão, um cigarro na outra, assisto tranqüilamente a uma apresentação musical. Na lateral da igreja uma cadela alimenta sua prole. As pessoas se divertem dançando, bebendo e trocando idéias.

Observo por um instante a multidão, turva, desfigurada... e, silencioso, misturado ao povo, avisto o poeta. Em pé. Com olhos de lince distraídos, ele olha.

Pra onde? Paro, então, meu olhar na imagem do poeta que olha... Ele coça a barba, pisca rapidamente duas vezes, dá um gole na cachaça e volta a olhar para o mesmo ponto. Para onde olha?! Meu desejo era gritar: “Poeta, pra onde olhas? Que abismos avistas?”

Olho para o céu... Penso que de meu lugar não poderei nunca saber o que olha o poeta. Quando disparo novamente meus olhos em sua direção, ele já não estava mais.

Caminhei a passos lentos, discretamente para que ninguém reparasse em meus movimentos, e pus-me em pé no mesmo lugar onde estava o poeta. Olho, tão logo, na mesma direção em que o poeta olhava e não vejo nada. Apenas mais pessoas. Faço mil conjecturas vãs sobre a perspectiva do poeta.

Enfim, cansado de tentar saber o que ele tanto olhava, dou um gole na cerveja e um trago no cigarro. Decido olhar o que vejo, e só.

Olho para o lado, no mesmo lugar onde eu estava uma garota me observa de soslaio. Saberia ela o que se passa? Que abismos avisto? Sorri. Ela também. Sorrimos. Ainda mais...

Assim seguimos olhando abismos e escrevendo encostas.

As linhas, tortas, não cederam aos encantos da mediocridade que percorre secretamente os esgotos da cidade, mas dela extraiu o sumo para versos e mais versos.

O poeta observa. O observador observa o poeta. A observadora observa o observador que observava o observador.

P.S.: o poeta supracitado é o querido Erickson Luna. Falecido em abril de 2007. Por Erickson eu nutria (e, ainda nutro) verdadeira admiração, não apenas pelos seus versos, pela sua história, mas pelos papos em mesa de bar ou calçadas, na calada das noites aparentemente perdidas.

André Raboni
Enviado por André Raboni em 05/07/2008
Reeditado em 05/07/2008
Código do texto: T1066229
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