Carta do pequeno João aos homens de boa vontade

“Estou aqui para contar que até agora não entendi bem o que aconteceu. Claro, tenho apenas três anos e estava numa festa muito divertida. Mamãe nos levou e brincamos muito. Na volta, uma luz forte chamou a atenção de mamãe e ela parou o carro no acostamento. Era a polícia atrás de bandidos eu creio. Sabe, eu gosto muito de carros de polícia. Mas, desta vez, os moços desceram do carro e começaram a disparar. Como nestes filmes da TV. Mamãe disse: - Se abaixa João. Se abaixa meu filho. Depois, jogou a bolsa do bebê para fora. Queria avisar que havia crianças no carro. As balas não pararam. Ela saiu mesmo assim e soube que ficou cheia de estilhaços. Eu fui para o hospital, mas tive morte cerebral. Minhas córneas foram doadas para uma criança e ela agora verá o mundo por mim. Meus pais estão inconformados. Não poderia ser diferente. Contudo, agora que estou olhando as coisas de outro ângulo - não sei se céu ou coisa assim -, posso expressar o que penso com muita facilidade. De repente estou bem articulado e sofro pela dor dos meus pais. Também queria crescer com a minha família. Com eles eu era muito feliz. Meu pai é um cara honesto e eu adorava brincar com ele. É uma pena. Olha, avisa para o secretário de segurança, o governador, o presidente e todas estas “gentes” que de nada adiantam os pedidos de desculpas. Aliás, eles podem criar um novo Tributo: Desculpas Cidadãos pela Insegurança Geral (DCID). E pode até lucrar com isso. Afinal, não é o dinheiro que importa? Sim, porque, os políticos querem ganhar, os bandidos também, os ricos do mesmo jeito... pronto. Transformem as desculpas em rendimentos. Quanto a mim e tantas outras vítimas, basta que os que nos amam de fato possam recuperar a paz. Se possível, pois não sei se os adultos conseguem curar suas dores. Não tive a chance de chegar nesta fase da vida. Vivi uns 40 meses. Agradeço a meus amiguinhos e, principalmente, aos meus pais pelo amor que me deram neste tempo. Levarei para a eternidade, podem acreditar”.

João Roberto Amorim Soares, 3 anos, morto por policiais dia 06/07, após ser atingido por uma bala na nuca.


NR: Esta é uma carta fictícia e não foi psicografada. Na verdade, é apenas um protesto pelo despreparo dos nossos policiais e governantes mais preocupados em retomar a CPMF; visitar e conhecer os países vizinhos para dar “pitaco” no problema dos outros. João é mais uma vítima. São tantas e serão mais tantas. Quando os nossos administradores irão colocar a vida como altíssima prioridade? Infelizmente parece que nunca, pois a violência se alastra e nada é feito de fato. Esta semana um banqueiro, um tal Daniel, foi preso e solto poucas horas depois porque 11 dias antes já havia sido feito este pedido ao juiz, que voltou atrás após se deparar com mais provas de envolvimento do sujeito em falcatruas. E os pedófilos? Tramita no congresso uma punição para quem acaricia crianças, simplesmente pelo fato de a pedofilia só ser vista como tal, até o momento, se houver o ato sexual. Ora, ora, como se o ato não começasse com um passar de mãos muitas vezes pelo próprio pai ou padrasto para, depois, pacientemente, consumar o ato. Falo porque vivi esta situação dentro da minha casa e nunca, em momento algum, desconfiei do meu então marido, que até hoje não compareceu a uma audiência de divórcio, embora o papel chegue até o fórum da cidade onde ele mora. Mas a “parentada” é toda da lei, advogados,juizes, enfim... Fica o dito pelo não dito, mesmo ele estando livre de ser preso pelo crime cometido, pois a vítima só falou a respeito com 19 anos e aí o Estatuto da Criança e do Adolescente não pode mais ser aplicado. Se fosse aos 18! Veja como as nossas leis são absurdamente ridículas. No INSS, não consigo os 25% que tenho direito sobre a aposentadoria porque estou sendo medicada e não quis enganar o perito. Será preciso ir até lá aos trapos e quebrar tudo para mostrar o grau da minha insanidade? Parece que sim.

NR: Texto semanal publicado no site www.cronicascariocas.com
Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 12/07/2008
Reeditado em 24/07/2008
Código do texto: T1076934
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