Reflexões

REFLEXÕES

“ Penúria e riqueza, na essência, não constam dos elementos

que possuímos, mas do sentimento que nos possui.” - Emmanuel

Vinte e duas horas... Deitado, envolto em ricos cobertores de lã, lembrei-me dos que ainda circulavam pelas ruas, verdadeiros canais de vento glacial de um outono já ríspido. Lembrei-me daqueles que cumpriam jornada de trabalho ao relento, daqueles que não têm família, nem teto e muito menos agasalho...

Dei-me por feliz pelo meu lar, meu pão diário e meus cobertores...

Assim, envolvido por lembranças que se assenhoreavam no cérebro, o sono veio sem aviso e o corpo – inerte – deixou livre o espírito ao encontro de novas aventuras.

Sonhei, e não sonhei em vão...

“Caminhava pelas ruas e ladeiras seculares do porto a tiritar os olhos. A noite era invadida por um espesso anuviar de trevas. A cerração escondia as estrelas e a lua semi-visível, era o único brilho do céu que me testemunhava.

Fiz parte, naquele momento, do estranho mundo dos abandonados, dos órfãos, dos vagabundos da rua... Calças rotas, sapato sem lustro, camisa aberta ao peito e um peito que se congelava dentro de um paletó fino e sujo.

Entrando pela Rua da Praia, o vento arvorou-se com mais intensidade parecendo trazer nos seus sopros recortados, um lamento sobre-humano, provindo talvez, do outro lado do mar que se estendia além das minhas vistas.

Debrucei-me no parapeito do ancoradouro do Rio Itiberê (*) e fiquei a devassar o infinito de um mundo envolto em sombras, lamento e clemências...

Em minha frente os botos e as sardinhas subiam e submergiam. Atrás, as casas noturnas tocavam um repertório mesclado de ritmos que iam e vinham, levados e trazidos pelo vento. Os peixes eram livres naquele vasto mundo de gotas salgadas... as prostitutas eram almas presas de um mundo diminuto, sem sono e sem sina...

Ao meu lado, dois pobres envolvidos em ralos cobertores doados por nobres almas, tentavam se proteger enquanto não pegavam no sono. Parado, matutando, senti as fibras do estômago o devorar. Não tinha comido um pão naquele dia de peregrinação pelos caminhos da mendicância. A cabeça latejava, não só afetada pela fome e pelo rigor do frio, como também, povoada de pensamentos que se congestionavam no cérebro. Veio-me a lembrança da família amada... todos... todos desfilaram admirados pelos meus andrajos...”

Por quê eu, uma criatura tão cheia de sonhos, crente na perfeição humana, feito à imagem divina, reservado à felicidade, carpia um destino adverso ?

Nunca tinha ouvido a voz do vento que mais parecia a da minha consciência; nunca jejuei a tal ponto de enfraquecer o físico tão cheio de vigor; nunca chorei tanto como o fiz ali, naquele roteiro secular, diante de casarões que têm histórias e segredos a revelar.

Por quê ?

Era uma indagação que ficava no ar, como as indagações que iam e vinham galopando nas ondas do vento marinho.

O sonho continuava...

Lembrei-me do meu leito, do meu lar, dos meus... Tentei voltar o pensamento às minhas origens, apagar aquela imagem negativa e decrépita, livrar-me daquele látego e reconduzir-me ao ponto de onde havia partido.”

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Ufa ! Por fim, acordei...

Travando indômita luta, consegui livrar-me daquele sonho infausto! Acordado e refeito, descobri ter embrenhado em aquelas eras remotas, num tempo em que não me recordo bem, talvez num século anterior, numa existência anterior quando, possivelmente fazia parte do quotidiano dos habitantes que circulavam por aquelas paisagens bucólicas de Paranaguá tão cheias de segredos.

O passado é como as pedras no caminho. Para desvendá-lo é preciso retirá-las e se incorporar nos seus mistérios reveladores. Confesso que senti a repercussão do que fui em momentos idênticos a estes que foram filmados, revelados e projetados numa noite fria de um outono já ríspido.

(*) Nota do autor: Rio Itiberê – rio de Paranaguá que se mistura às águas do mar tornando-se salgado por um bom percurso.

Júlio Sampietro
Enviado por Júlio Sampietro em 04/02/2006
Reeditado em 24/04/2006
Código do texto: T107804