Céu e Inferno

Após uma vida justa e cansativa, vai ao Céu, mas, passado um tempo, cansa de tanto anjo e cantoria. Pede para conhecer o Inferno. Por ser um bom homem, permitem que faça uma visita. Lá chegando é recebido com tapete vermelho, banda de música e as maiores mordomias em paisagens paradisíacas. Pede para ser transferido para o departamento mais abaixo. Esgotadas as argumentações sem que o demovessem, e terminada a longa burocracia, é transferido. Faceiro, bate à porta do Inferno: um calor insuportável queima sua face, dois diabinhos o puxam para dentro e o mergulham num caldeirão de óleo fervente. Grita, esperneia: “Mas vim conhecer e era tudo maravilhoso, por isso pedi transferência”. Lúcifer, juntando uma risada infernal, explica: “Você veio como turista; agora é imigração”.

Dizem que no Céu os amantes são italianos os cozinheiros franceses, os motoristas alemães e os mordomos ingleses. No Inferno os amantes são alemães, os cozinheiros ingleses, os motoristas franceses e os mordomos italianos.

Apesar das memoráveis e assustadoras descrições que ouvimos nas aulas de religião e dos escritos de Dante Aleghieri, cada um cria seu Céu e seu Inferno. Meu Céu teria mar, enorme e sujeito a interpéries, que só mansidão cansa. Haveria montanhas para haver contraponto, MPB, Elvis Presley, Beatles e mais alguns iniciados e, claro, clássicos para dar uma aura mais angelical, mas pouco Bach e bastante Beethoven e Mozart para não ser angelical demais. Haveria botões de controle de volume em cada canto e bibliotecas espalhadas. Os peixes brigariam muito, mas não se machucariam, para poderem ser soltos sem traumas, pescar seria só diversão para os homens e peixes. A comida seria farta, mas todos saberiam dosar naturalmente, sem stress. As pessoas se respeitariam, mas discussões seriam constantes, pelo prazer do debate e de manter o cérebro trabalhando; os homens não seriam ingênuos, as mulheres aproveitadoras não poderiam entrar, e a sabedoria seria muito mais valorizada do que o conhecimento e a esperteza. Meu céu seria, então, apenas Céu.

O Inferno teria a cara da televisão nos domingos à tarde: barulhento, sem cultura, “esperto”, mentiroso e cheio de “música” breganeja, funk e afins. Pior não precisa.

Acabaram com o Limbo, pena, pois acho que ele seria igual a vinho tinto doce: tem cor de vinho, nome de vinho e pretensão de vinho, só que não é.