Hotel na Lapa

O cronista, fatigado de noticiários, se tranca no seu quarto de hotel na Lapa e desaba sobre a cama. "Sou um homem comum de carne e de memória, de osso e esquecimento..." Recita silenciosamente uns versos de Ferreira Gullar enquanto os olhos bóiam sobre as imagens da televisão que trás notícias amargas de uma cidade cruel. O livro do poeta está ao lado, fechado sobre a cama, dentro dele uma flor, colhida no Corcovado: uma flor vermelha, arrancada do Corcovado, deixa de respirar para arrancar suspiros da namorada em Brasília. O pai ronca ao lado. Qualquer tentativa de dormir é frustrada pelo ronco do pai, pelo ronco da cuíca, pelas ruídos de música ao longe, nos bares da rua que não dorme.

Caminharam pela cidade o dia inteiro, os dois, pai e filho no Rio de Janeiro, livres como cães vira-latas, soltos pela cidade, gastando o pouco que juntaram, levando a irônica constatação de que até as alegrias mais banais tem o seu preço, ainda que seja à prestação. E subiram o Corcovado, visitaram o Redentor, imprimiram seus passos nas areias de Copacabana. Agora estavam ali, naquele quarto de hotel no bairro da Lapa, exaustos, cheios de histórias pra contar à família, dois meninos largados no coração da cidade. Enfim, felizes.

Mas o cronista estava fatigado de alguma outra coisa que não era apenas a longa caminhada ao longo da orla marítima, de alguma coisa que não era apenas a desesperada correria atrás de ingressos pro jogo do Flamengo; um jogo no Maracanã, no final da tarde de domingo, alimentado em sonho desde as mais remotas peladas da infância. Não era apenas o cansaço natural de quem pretende desbravar a cidade no curto espaço de três dias. Não era apenas o efeito do chope no Amarelinho. Não era. Não era isso. Por esse lado estava feliz, o Rio de Janeiro continuava lindo, não tinha motivos para se queixar, afinal realizaria numa só cajadada o sonho do seu pai, conhecer o Maracanã...

Mas alguma coisa lhe oprimia. Sentia-se inapto, pequeno, frágil, acuado no mundo; incapaz de contê-lo nas mãos, de fisga-lo no olhar. É sempre assim quando chega numa cidade nova. O mundo enorme lá fora, se dissolvendo na noite; o pai dormindo, sentia-se sozinho, precário, e nenhuma palavra seria capaz de salva-lo do aniquilamento. Estava talvez fatigado pelos acontecimentos que norteiam a cidade, que lhe cerca por todos os lados, como ondas de um oceano em tumulto, com suas notícias de jornal “criança é baleada durante perseguição policial na Tijuca”, policiais erram o alvo e matam uma criança”, “Governador avalia como ‘erro fatal’ ação de PMs”, “Não aceito desculpas, desabafa mãe de João Roberto”... O pai roncando ao lado.

Saía dos noticiários como quem saía de um velório. E sua tristeza certamente era a tristeza de muitos, e sua culpa seria também? O desespero da mãe de João Roberto, o pai em lágrimas, os pêsames do governador... Amargava, sozinho, naquele quarto de hotel, o estranho remorso de triste espectador dos acontecimentos. Cada sorriso trazia consigo o germe de sua própria destruição. Qualquer alegria era recebida como um sentimento insensato, egoísta, denunciando sua profunda indiferença pelas tristezas alheias. A cidade em luto. Que poderia fazer para evitar a tragédia? Ele, um turista deslumbrado com a beleza da cidade, um pobre diabo arrastado pela marcha dos acontecimentos? "E agora, José?" Versos lhe acudiam, lhe clamavam respostas.

Mas se tento comunicar-me,

o que há é apenas a noite

e uma espantosa solidão.

Os pensamentos se agitavam confusos, lhe acusavam a responsabilidade pelos últimos acontecimentos. Até quando marchará de forma leviana pelo mundo, vai permitir que ele seja este logro para os teus filhos, teus netos, às futuras gerações? Fará algo para mudá-lo? Poemas, crônicas, diários? Este é o legado que deixará para eles, apenas um punhado de versos medíocres, de crônicas passageiras e diários melancólicos? Pobre cronista, sequer consegue imprimir tua visão de mundo, compor qualquer coisa nova, fica aí pousando de ilustre cronista dos acontecimentos enquanto o mundo explode em bombas lá fora.

E agora, cronista?

Até quando vai ficar aí divagando sobre a vida, filosofando à toa, sem mudar a cara das coisas? Será sua vida apenas esse barco sem norte? Até quando vai permitir que as engrenagens, que esses moinhos de vento, essa roda viva dilacere o melhor que há em ti?

Até quando ficará sendo assim, esse modesto bajulador de homens ilustres? Ah teus poetas, teus artistas, teus profetas do século passado! "Mundo, mundo, vasto mundo!" Há de continuar a ser esse miserável leitor de apostilas, esse infatigável devorador de orelhas de livros, sem ir além da superfície de qualquer romance, sem colher o essencial de cada verso, de cada flor, de cada passarinho?

Meu pobre cronista, esse será teu mundo, apenas assunto rotineiro para tuas crônicas.

E para que você continue escrevendo-as, homens precisarão se dissolver na noite, oprimidos pelo salário de fome, pela pesada carga horária, pela corrupção. E o operário continuará esmerilando seu dia de aço e carvão em oficinas escuras, e homens de vida amarga continuarão produzindo em canaviais extensos este açúcar que adoça o teu café; e crianças, milhares delas, continuarão nascendo, para servir de vítima para policiais despreparados, para traficantes ambiciosos, para professores tendenciosos e para cronistas como você. Assim se dará a marcha do mundo, serão esses teus assuntos, teu pão de cada dia...

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Agora, naquele quarto de hotel, o cronista era apenas mais um pobre diabo, inofensivo, um homem exausto, cheio de histórias para contar, um menino ao lado do pai, dois vira-latas soltos pela cidade. Enfim, felizes.

***

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 17/07/2008
Reeditado em 29/12/2008
Código do texto: T1084657