Um sorriso honrado

Banheiros, torneiras, ônibus, escolas, igrejas, lojas e o que mais se pode pensar em termos de uso público tinham duas utilidades: para brancos, que usam os serviços de primeiro mundo e para negros, mestiços e indianos, segregados às favelas, aos sub-serviços, à total segregação. Sem direitos, sem cidadania, com um grande dever: a subserviência aos brancos, a minoria no país. Era a África do Sul sob o regime do apartheid. Um dia precisava explodir. E explodiu: Sharpeville, março de 1960, a polícia repeliu uma manifestação de negros, matando 69 e ferindo 180.

Nelson Mandela, jovem advogado, era membro do CNA – Conselho das Nações Africanas, comprometido com o combate ao regime, porém, sem aceitar a violência. Após o episódio, disposto a livrar sua nação do regime terrível, decidiu mudar de estratégia, tornando-se comandante do “Lança da Nação”, braço armado do CNA. A CIA ajudou a polícia sul-africana e não demorou para Mandela ser preso e condenado a cinco anos de prisão. Dois anos mais tarde, nova condenação, desta vez, perpétua.

Durante 27 anos permaneceu na prisão, recusando-se a negociar sua libertação. Preso, tornou-se um ícone da liberdade e da oposição ao regime desumano do apartheid. O clamor popular e internacional, finalmente, fez efeito e libertaram Mandela e seu sorriso, e assim tornou-se mais conhecido no mundo: aquele homem de 72 anos, que tinha todas as razões do mundo para ser amargo, sorria e contagiava a todos. Aquele homem que fora afastado do convívio com seu povo durante mais de um terço de sua vida, acumulou tanta sabedoria que, apenas quatro anos após ser liberto, tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul. Aquele homem, agora presidente de todas as nações que compunham sua Nação, tinha em suas mão a oportunidade da vingança e se vingou. Vingou-se com o exemplo de grandeza: comandou a transição do regime com o espírito do perdão e da concórdia, tornando-se outro ícone, agora mundial, da luta pela conciliação interna e externa. Não conseguiu transformar seu país num paraíso, mas num lugar muito mais justo e melhor para todos, com certeza.

Terminado o mandato, teria todo o direito de curtir seus dias como, onde e com quem quisesse, mas não parou, dedicando-se a várias causas sociais e de direitos humanos. Não teve dúvidas em atacar a política externa de Bush e se dedicar com afinco ao combate à AIDS. Talvez com uma pitada de ironia, talvez em demonstração de superação, deu seu número de prisioneiro – 46664 – à campanha de arrecadação de fundos para lutar contra a doença.

Aos 85 anos, mentiu. Anunciou que estava se retirando da vida pública, mas não cumpriu a promessa, pois continuou na campanha contra a AIDS.

Hoje Nelson Mandela completa 90 anos. Noventa anos do sorriso que ilumina uma nação e que honra a humanidade.

NOTA: Publiquei este texto no jornal A Gazeta no dia 18 de julho. Aniversário de Mandela