DOMINGO É DIA DE FUTEBOL

DOMINGO É DIA DE FUTEBOL

Chegou o domingo! Meu time vai jogar. Desde cedo vivo a ansiedade e a expectativa de ver meu time do coração em campo. Arrumo meu uniforme, separo o dinheiro da cervejinha, faço e refaço cálculos sobre o desempenho de meu time na competição: “Ganhando, são mais três pontos. Qual a colocação que ele irá ocupar na tabela de classificação?”. Para irritação de minha mulher, que reclama minha presença em casa, a divisão nos cuidados com a criançada, logo no começo da tarde me despeço dela e dos pimpolhos, e vou todo serelepe em direção à parada de ônibus, esperar o coletivo que irá me levar ao estádio.

Apesar de ser domingo, o ônibus demora muito. Ao chegar, já vem lotado de correligionários de clube, a grande maioria componentes de facções de torcidas organizadas. Dividindo espaços no coletivo, crentes, banhistas que voltam das praias, ébrios, homens e mulheres feios e pobres, que com suas criancinhas remelentas e barulhentas, dirigem-se aos parques do centro da cidade.

Os fanáticos das torcidas organizadas competem em gritaria e algazarra com os fanáticos religiosos. Enquanto um coro grita palavras de baixo calão contra o motorista, o cobrador e partidários de times adversários; outro coro grita “Hossanas” e “Aleluias” , condenando ao fogo do inferno os membros das torcidas organizadas, os cachaceiros, a turma que vem da praia, as famílias das crianças melequentas que vãos aos parques, o cobrador, o motorista, e eu.

À essa altura já não tenho certeza exatamente se foi uma boa idéia ir ao estádio ver meu time do coração em ação. A viagem segue: Gritos, odores pútridos de cachaça, suor, colônias de perfumes baratas usadas pelos crentes e pelos pais das criancinhas piolhentas que vão aos parques, bem vestidinhas, com suas roupinhas compradas em camelôs, e coçando efusivamente as cabecinhas cheias de lêndeas, alternado os dedinhos entre seus cabelos pouco higiênicos e o interior de suas narinas.

Os corpos forçosamente roçam-se. Viajo em pé, espremido entre banhistas salgados e com trajes sumários ainda molhados, crentes berrando em altos decibéis em meus ouvidos, uma mão segurando a Bíblia, e a outra meu ombro, para que não caiam com os sacolejos do ônibus, guiado sem nenhuma prudência pelo motorista (não o culpo. Fosse eu o condutor desse veículo lotado de pessoas que gritam em demasia, cheiram e se comportam igualmente mal, já teria o atirado no primeiro poste à minha frente).

De repente os gritos enchem-se de terror. De onde estou espremido, consigo ver entre uma axila mal cheirosa e outra, que do lado de fora do ônibus um grupo de torcedores da equipe adversária prepara-se para atirar pedras. Ao passarmos por eles, somos de fato atingidos por uma saraivada de tijolos e paralelepípedos, que quebram várias vidraças das janelas do ônibus. O pandemônio se instala: Torcedores sangram, cortados pelos estilhaços de vidro. Crentes sangram, velhas desmaiam (uma inclusive caiu por cima de mim, salvando de ser atingido em cheio na cabeça por uma das pedras, ao me jogar, com sua queda, no chão do veiculo.), criancinhas piolhentas choram, berram, aceleram os movimentos de suas mãos, agora variando com mais intensidade entre as cabeças cheias de lêndeas, as narinas melequentas e suas faces molhadas de lágrimas.

Não sei porque motivo o motorista é mais xingando ainda pelos torcedores fanáticos, que aumentam a intensidade dos gritos ofensivos à mãe do condutor do ônibus. Mas ele não para. No meio de todo esse turbilhão, ele continua conduzindo com dignidade o coletivo. Eu estou no chão. Uma velha ainda está por cima de mim, e ela pesa muito. Tento levanta-la, para que eu também possa me erguer. Ninguém me ajuda. Nem a mim, nem a velha. Grito: “Alguém me ajude! Esta senhora desmaiou!”. O barulho no ônibus é grande: Elevam-se os gritos de guerra dos torcedores, elevam-se os gritos de louvor dos crentes. Elevam-se os palavrões dos cachaceiros. A turma da praia também grita palavrões. As criancinhas choram. Os pais gritam. No meio dessa turba, finalmente a mão de um crente levanta a velha, tirando-a de cima de mim. E a viagem segue.

Finalmente a minha parada. Desço. Misturo-me no mar de correligionários rubros que dividem comigo a paixão pelo meu time. Olho com cautela e espanto aquela multidão da qual faço parte. “Como são feios!”, penso. “Como são estúpidos!”, avalio. “Como sou estúpido!”, constato.

Tomo uma resolução: “Aqui não dá para ficar. Vou voltar para casa, aproveitar o domingo com meus filhos, vou dormir, fazer qualquer outra coisa.” Mas já não sou senhor de minhas ações. Faço parte da turba que se dirige aos montes ao estádio. Não dá simplesmente para dar meia volta, e fazer o caminho inverso ao do estádio. O mar de gente é imenso e move-se apenas em uma direção: Em frente, em direção ao estádio de futebol. É como uma procissão sagrada, uma espécie de jornada à Meca, onde milhares de fiéis misturam-se em um oceano de pessoas.

Fui arrastado para as arquibancadas. Aqui estou, misturado à milhares de companheiros de paixão futebolística. Não quero mais estar aqui. Pisam em meu pé, piso nos pés de outrem. Gritam nos meus ouvidos, grito também. È uma mistura impressionante de cheiros, ou melhor, fedores. Fedor de cerveja quente, urina, fezes, peidos, bocas com mau hálito, suvaqueiras, fumaça de cigarro, de fogos de artifício.

Não consigo ver o jogo. Sou empurrado para frente, para trás, de um lado para o outro. Sou alvo e distribuo cotoveladas. Não consigo ver o jogo. Muitas cabeças na minha frente; muitas bocas banguelas gritam ao meu ouvido.

Entre um cotovelada e outro, entre uma cabeça e outra na frente, entre um sopro e outro de hálitos pútridos na cara, consigo ver lances fortuitos do jogo. De repente a arquibancada grita e se espreme em uníssono: “GOOOOOOOOOLLLLLL!” Sou abraçado por um sem números de braços anônimos, sou sacudido, aproveito a confusão para distribuir chutes e tabefes em meus vizinhos. Não vi o lance, quem marcou o gol.

O jogo segue. Segundo tempo, gritos de palavrão contra a mãe do juiz são constantes. Gritos de “Burro!” contra não sei quem. Não vejo o jogo, não sei o que vim fazer aqui, não sei mais quem sou nessa massa amorfa de amantes do futebol. Penso que ao término da partida, depois que chegar em minha casa, o domingo já terá terminado, não terei descansado nada, amanhã logo cedo terei que enfrentar ônibus cheios de novo, dessa vez para ir ao trabalho. Alguém diz a meu ouvido: “42 minutos, vamos ganhar. Faltam apenas três minutos para ter...” Não chega a terminar a frase porque sua voz emudece junto com os outros milhares de torcedores presentes, e um silêncio sepulcral se instala: O time adversário empata. Depois do silêncio, mais gritos, palavrões, vaias, cotoveladas, pisões nos pés, e... outro gol. De novo um mudez mortal. Eis que o time adversário marca outro tento, vira o jogo e o juiz apita o encerramento da peleja. Sou então sacudido de novo, agora em direção à saída do estádio, em meio a uma turba tomada pelo ódio e a frustração. Não quero sair agora de meu lugar, não quero estar aqui, mas o vendaval de pessoas tomadas pela fúria por conta da derrota me joga nas ruas.

Nem queiram saber como foi a volta para casa...

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 23/07/2008
Reeditado em 27/04/2011
Código do texto: T1093986
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